Tenho dúvidas sobre isto. Devia ter escrito o título com ponto de interrogação. Os clássicos da etnografia micaelense (Luís Bernardo Ataíde, Carreiro da Costa) não abrem capítulos de relevo para a gastronomnia e os costumes culinários, assim como também não o fazem os recoletores de receitas, como Augusto Gomes. Eu tenho um longo trabalho de recolha de cozinha tradicional, tanto popular como aristocrática-burguesa, mas nunca fiz um estudo sério sobre as cozinhas específicas, de festas religiosas ou profanas ou de acontecimentos familiares. Sei alguma coisa, mas muito superficial. Não me arrisco a sistematizá-la e a descrevê-la como norma.
Claro que o que mais fixado está na minha memória é o uso de família, sempre rigidamente codificado e inalterado. Ainda hoje relativamente cumprido por três irmãos que já não têm presentes - fisicamente - as duas gerações anteriores que lhes ditaram essas memórias. Todavia, não posso garantir que tudo o que disser reflete um costume geral.
A consoada era pautada pelo horário dominante da missa do galo. Comia-se qualquer coisa ligeira em jantar normal e fazia-se a consoada no regresso da missa, com a oferta dos presentes e algumas orações junto ao presépio. Tanto quanto me lembro, era uma ceia sem padrões rígidos. O bacalhau não era tão obrigatório como no continente e até nem havia propriamente grandes pratadas fosse do que fosse. Coisas ligeiras, sempre uma canja rica, alguns salgados, profusão de doces, principalmente docinhos de forma. Essencial, também o bolo de Natal, uma especialidade única, desaparecida no continente em que o bolo rei abafou outros bolos natalícios. Bolo rei que não se comia nos Açores no meu tempo de criança, tanto quanto me lembro.
Os fritos doces não tinham grande expressão. Fazem-se muito nos Açores todos os que cá são comuns, mais variantes de filhoses e coisas que já não vejo cá, como as rosas do Egito. Principalmente, mais as malassadas (melaçadas?) tipicamente micaelenses (embora com umas primas afastadas madeirenses). Não se fazem é no Natal, mas sim no carnaval.
A grande festa é o jantar familiar do dia 25. Nunca o almoço, cá muito vulgar como refeição de festa familiar (julgo que muito por hábito de antigos colonos). Novamente, tanto quanto sei, o bacalhau não fazia regra. Com exceção de uma ou outra casa que escolhia carne assada ou, por menores recursos, pratos populares como os torresmos de molho de fígado, a regra geral era a galinha, em muitas receitas que fazem parte do ementário micaelense mas principalmente nas várias variantes de assada, particularmente recheada, servida quente (S. Miguel) ou, como na minha casa de mãe e avó terceirenses, fria trinchada em fatias mistas de carne e recheio. Recheio rico de pão em canja, muitos ovos, especiarias, fígados, azeitonas e colocado não só no bucho mas também, e principalmente, entre a carne e a pele, o que lhe dá um assado completamente diferente do recheio no interior da ave. A receita, com longa conversa evocativa, vem no meu livro “Gosto de Bem Comer”.
Creio que não posso garantir que fosse hábito popular, mas desde criança que era autorizado a coisa especial, partilhar simbolicamente com os adultos a bebida obrigatória com este prato, champanhe. Fora os açorianos, julgo que seria muito raro, nos anos 50, servir-se champanhe à mesa portuguesa a acompanhar um prato de carne. Claro que não era coisa que merecesse nome de champanhe. Francês não havia e se houvesse a bolsa não chegava. Era coisa de nome que me ficou na cabeça desde menino, Raposeira. Mas lembro-me de que semi-doce, coisa que hoje não consigo beber.
Se a galinha dominava, não faltava quem já comesse antes peru, muito mais do que no continente. Influência dos açorianos dos Estados Unidos? Mais raramente, mas coisa que me ficou de alguma memória da casa dos meus avós paternos, o capão. Muito mais tarde, instalada toda a família em Lisboa, recuperámos este uso, quando se começaram a vender os bons capões da Galiza. Entretanto, filhos e netos vão tendo de repartir o seu tempo pelas várias famílias, o núcleo tradicional vai-se reduzindo e este ano, como no anterior, volto à galinha. Agora uma pularda de belo aspeto e imponência (2,8 kg). Vamos a ver como se vai dar ao elogio, amanhã ao jantar.
Para sobremesa, coisas variadas, mas tradicional predomínio dos doces de tacho, com destaque para os tradicionais arroz doce, barriga de freira, doce de vinagre. Claro que também o ananás. Vinho do Porto ou licores. Com o café e o chá, os docinhos de forminha, muitos e muitos, de uso generalizado ou orgulhosamente segredos de família. A lista é imensa. Só de invenções da minha avó, uma doceira genial, conto com quase uma dúzia. Agora tenho uma mulher de negócios que acha que são uma excelente oportunidade de exportação...
Licores e doces de forminha tinham grande importância pelos dias fora, até ao dia de Reis. Eram os dias de visitas inumeráveis de ir dar Boas Festas em tempos sem SMS e e-mail (já me enjoava ao fim desse dever de ir com a minha mãe à tia X e à amiga Y), mas com algum proveito. As mesas estavam sempre postas e eu tinha direito a um golinho miserável do licor obrigatório, a “mijinha do Menino”. Um dia destes tenho de tentar reproduzir a especialidade da minha tia Lurdes, licor de poejo. Fico-me entretanto pelo tradicional licor de leite, segundo a receita excelente do meu pai, que também vem no meu livro.
(A foto é de um presépio da Ribeira Grande. Quando eu era miúdo, era excursão obrigatória ir-se ver o enorme presépio animado da matriz da Ribeira Grande. Leio hoje, com muita satisfação, que já há competição entre vários presépios animados. Este é um deles. Não deixem morrer as tradições, a não ser as que hoje são execráveis como anacronismos civilizacionais, de opressão, de obscurantismo)
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