domingo, 27 de fevereiro de 2011

Coisas que vou lendo (2)

Os meus leitores sabem quão é o meu respeito por mestre João Ribeiro. Até adotei como ícone familiar, de Natal, o seu bacalhau à Conde da Guarda. Li há dias na net a receita, com profusão de fotos, como agora é moda. Cada mexidela cada foto, porque senão ninguém sabe o que é cebola picada (que desprezo têm pelos leitores).
Muito fácil alguém ter publicado essa receita, basta transcrever, como fiz no meu livro, os dois Josés, Labaredas e Quitério (“O livro de Mestre João Ribeiro”, Assírio e Alvim, 1996, Lisboa), que por sua vez reproduziram Manuel Ferreira, antecessor e amigo de João Ribeiro que, ao que se sabe, não deixou registo da receita.
História interessante é a do nome, Conde da Guarda, inquirição que já me deu bastante trabalho, discussão rija com o meu alter ego gastronómico, mas que não vem agora ao caso.
Voltando ao tal blogue, tudo bem na descrição da receita, bastou transcrever. Mais alguns truques que ninguém pode desmentir que, na falta de informação precisa, fui eu que publiquei no meu livro. Isto porque, tendo sido publicada a receita por via indireta - e até porque mesmo que fosse pelo autor não se usava na época dar grandes pormenores - faltam informações importantes, de técnica. E, assim, manda o respeito que se dê grandeza à ideia original enriquecendo-a com a evolução técnica que o seu autor não podia adivinhar.
Agora do que eu nunca me podia ter lembrado era de escrever que também se pode usar “natas” de soja. Mesmo que se considerando que tal sublime prato tem de ser comido num dos tais dias em que qualquer dietista diz “abuse hoje, compense durante o resto da semana”, é inaceitável. Mestre João Ribeiro só não volteou no túmulo porque não sabia o que são natas de soja.

P. S. - A propósito, agradeço ser instruído por alguém que já tenha conseguido trabalhar bem as tais natas de soja. Com algum sucesso, tenho experimentado alternativas a molhos de natas, na minha cozinha diária com restrições dietéticas. Faço ligações quase sem gordura, acho que trabalho bem com diversas féculas, uso composições com produtos magros (leite, queijo, iogurte) razoáveis, mas confesso que ainda não consegui fazer nada aceitável com "nata de soja". Nem sequer, ó coisa que devia ser simples, fazer uma boa emulsão, sem o raio da coisa coagular ou teimar em separar-se. Fazer bem isso deve ser prémio para quem goste de tofu. Fico agradecido por qualquer dica.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Cozinha açoriana

Ontem houve cá no "ninho da águia" grande patuscada do grupo de amigos da cervejada, não muito frequente porque o indispensável Marcelo só lá de vez em quando se digna vir à terra dos mouros. Indispensável não tanto por ele, mas pelos chocolates para alimentar a metafísica da morena e pelo velho Porto do Alcino. Creio que para todos, também para o anfitrião que gosta de exibir o gosto de bem comer, é coisa bem mais agradável do que os encontros habituais de cervejaria, talvez a estimular ainda melhor conversa, pelo menos mais esbracejante, do que a habitual nesses tais nossos encontros.

Desta vez, havia o aliciante de ouvir em direto a narração da tarefa do V, recém-regressado do Bahrein, depois da Líbia, a mando da Al Qaeda, mas aproveitando, à Oliveira de Figueira, para umas especulações de petróleo, que subscrevemos ontem, com lucro de 15% que ele nos prometeu.

Fora um introito de cozinha angolana, feijão de óleo de palma, a marcar copropriedade morena do terreno (desculpem a quase-rima), o resto foi de açorianices que me gabo de ter recolhido com muito critério e certeza de genuinidade, tudo sob o tema de "cozinha de taberna": fava rica, polvo guisado em vinho tinto, torresmos de molho de fígado. Vinho é que não, que pena, porque vinhos hoje de boa qualidade nos Açores não são de mesa, só os ótimos Chico Maria, generosos, da Casa Brum (à venda na Loja Açores, em Lisboa).

Do que mais gostei foi do comentário do meu amigo JMCP. "Fiquei a acreditar na geração espontânea. Quando como por este país fora, estabeleço sempre as relações. Neste caso não, estes temperos são únicos, como é que vocês os inventaram lá no meio do mar?" Lá lhe expliquei coisas que têm a ver com o comércio ilegal das especiarias na volta do largo.

Coisas que vou lendo (1)

Não estou certo de que se justifique uma nota como esta. Se um escrevinhente razoável de português vier fazer notar o erro cada vez que lê “à dias que vi isto”, não faz mais nada na vida, quando talvez pudesse fazer muita coisa útil. No entanto, pode contribuir para que, hoje um, amanhã dez, comecem a reparar nos erros. E, com isto, a irem procurar leituras mais seguras, começando até pela cada vez mais credível wikipedia.

Perdendo tempo precioso com blogues de amplificação/deturpação (“traduttore, traditore”) das receitas e notas “gastronómicas” de revistas de cabeleireira, dei por um texto sobre “fondue” - valha que, ao menos, de queijo, porque há quem ache que fondue é só a recente-inventada borgonhesa, de carne, frita em óleo e embebida em molhos industriais, uma delícia! Diz o autor que a fondue se acompanha em França com presunto (“à propos”, onde é que se usa presunto em França?) e na Suíça com carne seca. Creio que estará a pensar no “boeuf (langue) valaisan”, de um cantão em que até a fondue nem é coisa típica. Vivi na Suíça e não preciso de revistas de tias para lhe conhecer a cozinha. Carne com a fondue? Nunca por nunca! Quando muito, mas só à moderna, com a raclette, coisa muito diferente e essa sim, tradicional do Valais (juntamente com os guardas suíços do Vaticano...).

Já agora, também mais duas notas. Primeiro, os queijos. A fondue mais genuína, a do Vaud, é só de Gruyère. Em Friburgo, junta-se vacherin. No resto da Suíça, para embaratecer, um terço de Ementhal. Tudo o mais que se diga por aí de queijos pode ser aceitável, como regionalização (também já a fiz com S. Jorge) mas não é canónico. E não canónico de todo é fazer a fondue em tacho, ao lume, como se vê na figura que acompanha essa receita. Caquelon, em cerâmica, que de facto pode começar por ir ao lume mas, tipicamente, vai à mesa sobre uma lamparina! Aliás, é coisa que toda a gente conhece dos restaurantes, não se percebe como se pode publicar na net coisa diferente.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Enchidos de Barrancos

Já houve tempo em que, querendo vulgarizar a minha cozinha açoriana, tão dependente da unicidade de muitos dos seus ingredientes, tentava sugerir alternativas continentais. Deixei de o fazer, pelo menos em relação aos leitores da área de Lisboa, por terem fácil acesso a eles nas duas lojas gourmet açorianas de Lisboa, a Loja Açores e o Espaço Açores Gourmet.

Esta nota breve não vai ao contrário, é apenas uma curiosidade interessante, um desafio a amigos açorianos cá residentes. Há dias, como escrevi, fiz um cozido e sobrou arroz de carne, também dito arroz vermelho. Despachou-se ontem com uns enchidos assados na chapa. Era um sortido da Casa do Porco Preto, de Barrancos, comprado no Pingo Doce. Muito bom chouriço de sangue, também um salsichão de carne e vinho. Marcante foi provar um que não conhecia, linguiça de porco preto. Começa logo pela semelhança com o hábito açoriano de chamar linguiça a um enchido com a grossura de chouriço, não da cá vulgar linguiça fina. Depois, o tempero, alho, pimentão, malagueta. Comparem com uma linguiça micaelense, fora esta ter a especialidade da vinha de alhos com limão galego. Claro que, para conhecedor, a linguiça açoriana é diferente da barranquenha, mas para quem apenas a comeu lá numa ida turística, será surpresa a semelhança.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Sela de borrego, segundo Santi Santamaria

Volto a Santí Santamaria, em homenagem. Nunca fui a El Raco de Can de Fabres mas SS tinha por bom hábito divulgar uma ou outra das suas receitas emblemáticas. Uma das que já reproduzi é a célebre sela de borrego. Permitam-me uma nota pessoal, a justificar a minha ligação a tal prato. Estava eu nos meus vintes economicamente fraquinhos, assentei como regra coisa pouco vulgar. Ia raramente a restaurantes banais e reservava o dinheiro para uma ida anual ao Tavares e ao Aviz. Depois, alarguei ao Conventual e ao Gambrinus. Era o que valia a pena, entre fins de 60s e princípios de 70s. Isto teve um efeito colateral. Prescindindo de restaurantes banais, comecei a cozinhar eu, em casa, a fazer festas de amigos ou simples jantares de casal, a apetecer mais. Daí o meu critério de muitos anos, só gosto de um restaurante de onde saia a pensar que eu não faria melhor. Ainda hoje vale.
Ora um dos grandes pratos do Aviz era a sua sela de borrego. Não tenho a receita, há muitos anos que não como, mas tenho ideia de uma sela bem esfregada com um pouco de alho e sal e ervas, creio que principalmente tomilho e alecrim. Assada no ponto, a carne destacada dos ossos antes de servir, no ponto, suculenta. Guarnição, já não me lembro. Sei que era minha predileção.
Mas aqui vai, em versão livre em português, a receita de SS, uma excelsa combinação da carne e legumes. Na receita que recolhi, falta a indicação da quantidade de alguns ingredientes (SS também não era tão mau empresário ingénuo que fornecesse a receita exata). Acertei-a por mim e para meu gosto, quando a faço, mas seria desrespeito indicá-la aqui. Fica ao critério daqueles meus leitores que o poderão saber fazer, exceções na blogosfera das receitas de revistas de cabeleireiro.
1 sela de borrego ou cordeiro, desossada, mistura de cogumelos selvagens (quanto?), 3 cenouras, 1 bolbo de funcho, 6 couves de Bruxelas, 1 curgete, 3 alhos franceses pequenos, couve flor (quanto?), 2 chalotas, cebolinho, manteiga q. b., azeite q. b., sal, pimenta da Jamaica, salsa, coentro.
Esfregar a sela com sal e pimenta e estalar bem, numa assadeira metálica, num pouco de azeite. Passar para o forno, com manteiga. No fim, pincelar com bastantes coentros picados misturados com azeite. Cortar em troços, ao comprido da sela. Colher, misturando, o molho e o suco que escorre ao cortar a carne.
Entretanto, escaldar os legumes, exceto a chalota, em água com sal, a ferver, até ao dente, escorrer e reservar. Cortar em pedaços relativamente grandes e saltear em azeite, a ficarem crocantes. Cortar os cogumelos em pedaços grandes, saltear muito bem em manteiga, até bem dourados, juntando a meio a chalota picada e, antes de servir, juntar o cebolinho e a salsa.
Servir uma coroa de cogumelos, com os legumes ao centro, ao lado das fatias de carne regadas com molho.

Nota - Quem por acaso tiver lido receitas minhas verá que vou muito por Santi. Bons produtos, captação das essências da cozinha tradicional pesada para a transformar em cozinha leve, elegante, moderna. Técnicas de restaurante profissional que não podem ser reproduzidas em casa, ótimo para ir comer ao Bulli, mas não me interessam no dia a dia. Receita é para mim coisa que eu também consiga fazer, com desvanecimento dos meus amigos visitantes do ninho da águia e gastrónomos apreciadores e exigentes. Por isto, muitas ficam impublicáveis, é o gozo da partilha exclusiva com o "inner circle".

(Editado em 20.2.2011, por erros na transcrição da receita, verificáveis num vídeo de SS que só agora encontrei)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Que tenha uma grande cozinha lá no alto

Morreu Santi Santamaria, morreu novo, tanto ainda teria a dar. Dele e do seu rival Adriá nunca conheci a cozinha, ao vivo, não me pronuncio. De leituras, livros e artigos, não tenho dúvidas em situar Santi léguas à frente de outros gastrónomos atuais - entenda-se: gastrónomos, teóricos da cozinha, eruditos, construtores de gosto palatal de alto nível, não apenas grandes cozinheiros executantes, muito menos os vendilhões do templo da "gastronomia" da net e blogues. Mesmo o mais amador dos gastrónomos não pode deixar de ter o seu "Palabra de cocinero" (Ediciones Peninsula, 2005, ISBN 84-8307-715-9) - muito frustrante para a blogosfera, não tem uma única receita tipo "que delícia!" Também, claro, o polémico "La cocina al desnudo" (Ed. Temas de Hoy, 2008, ISBN 978-84-8460-714-4) .

P. S. (19.2.2011) - Como tenho estado a analisar o que é a blogosfera gastronómica portuguesa, dei-me ao trabalho de ver o que havia sobre a morte de Santi Santamaria. Só um "post", além do meu, e até nem num blogue, antes num portal, de Virgílio Gomes, um caso notável de exceção na mediocridade da net "gastronómica" portuguesa. A blogosfera culinária, de centenas de autoproclamadas cozinheiras, não tem nada a ver com cultura gastronómica, é circo de tias que circulam entre receitas de revistas de cabeleireiro. Se 10% alguma vez ouviram falar de Santi ou de Ferran, fico satisfeito. Se 5% têm e leram o livro de Escoffier, fico abismado. Até dou de barato, quantas têm o Olleboma ou até o Larousse? Virgílio Gomes, vamos continuar a ser irredutíveis gauleses?

Escrever isto é apenas ressabiamento de velhote amargo e desgostoso com a mediocridade? Não, é atitude de quem acha que um leitor um dia, outro no dia seguinte, começarão a criticar o que por aí se publica e a dizer que o rei vai nu.

A latere, porque escrevi acima "não tem nada a ver". Há dias, José Rodrigues dos Santos disse na TV "não tem nada a haver". E é escritor que vende aos milhares. Será que isto não tem a ver ("tem a ver!") com o gosto de bem comer? Claro que sim, tudo é cultura.

P. S. - Provavelmente não conseguem ler na figura uma frase mesmo à Santamaria. "Cambio chef por tomates frescos".

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Cozido à portuguesa

Vale a pena escrever sobre coisa tão banal como o cozido à portuguesa? 1. Desde logo, quase toda a gente gosta de cozido mas não o faz, por razões bem conhecidas que abordarei a seguir. 2. Depois, não é assim tão banal, merece respeito técnico. 3. Ainda depois, não faz mal nenhum fazer pensar um pouco ou dar algumas informações sobre coisa tão velha e icónica da nossa (?) cozinha.
1. Cozido era coisa de grande refeição de família. É impossível fazê-lo para duas pessoas, nem mesmo para quatro. Claro que se pode fazê-lo para jantarada de amigos (melhor, almoçarada) mas passou de moda, injustamente. Eu próprio, com exceção de uma ou outra vez de demonstração da brincadeira (enfim…) do cozido das Furnas feito em casa, há anos que, até este último fim de semana, não fazia um cozido. Mesmo reduzindo ao mínimo as quantidades, fiquei com cozido, sopa, roupa velha para toda a semana e ainda há-de restar com que inventar alguma coisa antes de bolorarem os restos. Mas dizia que o deixar de se fazer em casa não significa que o cozido tenha perdido popularidade. Veja-se o sucesso do “dia de cozido” de muitos restaurantes familiares.
2. Passemos à técnica. Velha regra, indiscutível, é que o princípio do princípio de um cozido é a qualidade dos ingredientes. Obviamente, começa pela carne. Creio que muitas pessoas têm pouca experiência de decisão sobre a peça de carne que usam nos seus cozinhados. Vão ao talho e pedem bife, carne de assar, de cozer, de guisar. Não tem mal, o talhante sabe. Para o cozido, mestre Olleboma preconiza carne de primeira qualidade, ganso redondo. Já experimentei mas acho que fica um pouco seca e que a relação preço/qualidade não justifica. Eu gosto de uma outra carne de 1ª, a maçã do peito, que dá pedaços limpos, com muito bom aspeto final e um caldo suculento. Muitos talhos sugerem carnes de 2ª ou 3ª, como prego do peito, cachaço, chambão ou pá. Eu sugiro também, como usei há dias por falta da minha preferida, as abas, principalmente a grossa, mas aceitavelmente a delgada ou da costela. De porco, compro pá, toucinho com carne ou entremeada e chispe (deixados de véspera com sal grosso, bem limpo na altura de cozer). Não gosto de orelha e não se usa na minha terra. De frango, uso só coxas, porque hoje se vendem separadamente e acho que é o que vai melhor no cozido (mas é questão de gosto pessoal). Enchidos, claro que de grande qualidade, dos que já conheço previamente.
Talvez menos cuidada hoje, mas no uso das nossas avós, é a cozedura separada, coisa que duvido muito que se faça no “hoje há cozido”. Nem vem em boas recolhas de cozinha tradicional. Cozido são quatro panelas! Cozedura mais demorada - sem mal nenhum, hoje à pressão, cerca de uma hora - só as carnes, em água com sal e pimenta (nos Açores, como faço, com mais tempero, como direi adiante). No fim, juntar os tubérculos (batata, nabo, cenoura, batata doce) e acabar de cozer. Segunda panela a dos enchidos, só em água, sem sal. Terceira a das hortaliças, em duas vezes (não é regra tradicional, mas faço-a como técnica básica de boa cozinha). Água já a ferver, hortaliças a escaldar em lume alto, 1 minuto. Rejeitar a água e passar as folhas por água fria, depois escorrer. Voltam a cozer em nova água, com um pouco de sal, em lume alto, com a panela destapada, a manter bem vivas as cores. Quarta panela, melhor um tacho, para o arroz, de que falaremos depois.

Não há mal em outra possibilidade, como Maria de Lourdes Modesto descreve nos cozidos transdurianos, a da cozedura sequencial na mesma panela, retirando carnes já cozidas e acrescentando outras coisas. Claro que é maneira tradicional, quando só havia uma panela ao lume da lareira. A técnica das panelas diferentes tem uma grande vantagem, a do caldo final de bom gosto. Reservam-se, separadamente, as três águas de cozedura. O caldo final é a sua mistura, em doses equilibradas e a gosto. Para mim, carnes:enchidos:hortaliças em proporção de cerca de 6:2:1.
3. Tudo isto é sobre o “cozido à portuguesa”? É coisa que não existe. Há um cozido europeu, para não dizer mundial, e há muitos cozidos provinciais portugueses. Definir o que é, a nível intermédio, o “cozido à portuguesa” não é fácil. Cozer simplesmente carnes e produtos da horta, o que há à mão, é coisa milenar e, por estes lados europeus, com registo histórico na cozinha romana e bárbara e, na Europa que conhecemos, com coisas tão próximas de nós como a “olla podrida” espanhola (com tantas variantes regionais como cá), o “pot au feu” francês, os cozidos italianos da Toscânia e da Ligúria, entre outros, até os cozidos magrebinos de borrego com legumes, hortaliças e hortelã.
Por outro lado, “zooming in” para Portugal, quantos cozidos, claro que com forte matriz comum, mas com a variação inevitável que decorre da essência do cozido: é feito com aquilo que, do talho ao fumeiro e à horta, faz parte do uso regional. Alguns ingredientes respeitosamente referidos por clássicos como Olleboma até nos podem parecer hoje bizarros, porque caídos em desuso: feijão verde, abóbora (gosto e às vezes uso, mas não me parece habitual), brócolos, ervilhas, miúdos de galinha, pombo.
Outros ingredientes caracterizam as variantes regionais. Desde logo os enchidos, que não vou comentar, tão conhecida que é a distribuição regional dos nossos enchidos. Também casos típicos de diferenciação, como o uso de rabas em Trás-os-Montes, de morcela na Beira e nos Açores, de feijão branco no Ribatejo ou na Estremadura, ou de grão no Alentejo e no Algarve. Afinal, talvez se possa dizer que há um cozido à portuguesa: o de cada um, aquele que cada família faz com misturas personalizadas de todos estes ingredientes, a gosto. Um gosta de meter salpicão, outro presunto, outro orelheira, outro farinheira, outro batata doce, até a luso-tropical mandioca (porque não?), etc. Carnes, enchidos, legumes, hortaliças, sabores naturais com quase nada de tempero extra, é a definição. Desde que não se junte cogumelos, peixe, polvo ou camarão, tudo bem. E a variedade até é um elemento de desafio ao visitante bom gastrónomo para provar muito e decidir voltar a casa com a "sua" receita de cozido.
O cozido que me habituei a fazer é fundamentalmente o cozido que me habituei a comer, o de S. Miguel. É relativamente simples: carne de vaca e de porco, chispe (chanco, como lá se diz), toucinho, galinha, linguiça, morcela, chouriça moura, batata (inglesa, como lá se diz, porque batata tout court é a doce), batata doce (saliento, porque já há cá e eu não consigo comer cozido sem batata doce), nabo (não obrigatoriamente), cenoura, couve e repolho açoriano (cá o repolho pequeno fechado, não a couve lombarda). Além do sal, tempera-se também com pimenta preta e pimenta da Jamaica (na Terceira), e quem gosta - como eu - também com um raminho pequeno de hortelã, que em alternativa pode ficar só para a sopa. Como não sou fundamentalista intransigente, incluí desta vez, a pedido insistente de gosto especial mas sem eu comer, farinheira. Pela mesma razão, porque gosto muito e me evoca a meninice, junto para mim coisa que, apesar de tão usada nos Açores, não entra no seu cozido, o inhame.
A outra grande variante, pelo que aí se vê, mas não segundo a tradição, é o arroz. Se não me engano, ao ver o cozido nos restaurantes, o que noto é arroz cozido com tempero do caldo, quando não simples arroz branco cozido. Cozido em caldo, a ficar solto, é o uso estremenho e meridional, mas no norte usa-se o arroz de substância, refogado, com carnes, molhado em caldo e acabado no forno. 
O agora cozido famoso das caldeiras das Furnas, em S. Miguel, não levava arroz. Um dos restaurantes que o faz serve arroz branco, a pedido. Outro, serve por rotina. Nem pode deixar de ser arroz branco, porque o cozido das Furnas não tem caldo. É melhor que o sirvam branco do que com cubo Knorr. Já o cozido tradicional micaelense, em panela, é acompanhado obrigatoriamente com um arroz único, o “arroz vermelho” ou “arroz de carne”, o que eu faço. Tem como base um refogado de cebola e alho em banha (hoje, dieteticamente, azeite) que se “ferra” no fim com um gole de vinagre e um pouco de concentrado de tomate, colorau, sal e massa de malagueta. Junta-se o arroz carolino (eu salteio-o um pouco) e o caldo, um raminho de hortelã e deixa-se cozer. Como se vê, mistura o hábito do Sul e do Norte. É refogado e bem temperado, mas não leva carnes nem vai ao forno.

P. S. (30 de Abril de 2011) - Postumamente, dedico esta entrada a David Lopes Ramos, recordando as muitas mensagens que trocámos sobre isto.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Simples e com qualidade

Coisa muito compreensível, o desejo de muita gente de cozinhar para dias especiais de família ou para jantares de amigos com um toque de fim de boca e de elogio que deixe agrado especial. É disto que vive o circo da blogosfera culinária. Melhor, para a tal boa gente ansiosa por uma ajuda de bem comer, é visitar uns bons "sites" de confiança, até recolher os folhetos da caixa do supermercado, que são feito por profissionais ou por amadores de alto nível.

E as dicas de um bom cozinheiro? Talvez difíceis? Não obrigatoriamente. Vi hoje, confesso que pela primeira vez, o programa de Henrique Sá Pessoa, na RTP2, o Ingrediente Secreto, hoje versando sobre o banal salmão, de aviário. As suas receitas foram simples mas de indiscutível qualidade, acessíveis, rápidas, claramente dirigidas a um público com reduzida capacidade técnica. No entanto, dando-lhe dicas muito práticas, como fazer um carpaccio simples, com folha adesiva, como cuidar da pele do peixe no saltear, quanto tempo marinar em sumo de citrinos. Afinal, a simplicidade de quem sabe bem o que é preciso saber-se de complicado e técnico para explicar simples. Como sabe qualquer bom professor.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Peixe assado, da tradição portuguesa

Comprometi-me com a receita da semana. Em princípio, seria ou coisa inventada no fim de semana ou coisa da enorme lista de invenções ainda não publicadas. Afinal, não vai ser receita minha, vai ser coisa mais que clássica, mas a recomendar-se em bom nível de técnica, um peixe assado à tradição portuguesa. Até porque vem na sequência de um “post” anterior. E perguntando: em que restaurante ainda encontram peixe assado?
Assim, porque a morena - e eu a ver - se esmerou num pargo assado à boa maneira portuguesa, vale a pena registar receita banal, dela e da sua infância com ligeiro toque meu, mas talvez muito esquecida. Mais, com indicação dos truques.
2 pargos pequenos (cada um para uma pessoa). 1 cebola grande, 4 dentes de alho, 1 folha de louro, 1 tomate bem maduro, 2 c. sopa de polpa de tomate, 1 c. sopa de massa de pimentão, 2 dl de vinho branco, 4 c. sopa de azeite, 1 raminho de salsa, 2 hastes de poejo, sal, pimenta preta e branca (1:1), 4 grãos de pimenta da Jamaica. 300-400 g de batata.
Anote-se que, em relação ao uso da morena e também da minha tradição familiar, eu acrescentei, à açoriana, a Jamaica e, a meu gosto e acho que muito bem, o poejo (para a próxima, experimentarei hortelã da ribeira). Outra “asneira”, ao contrário da receita, é que, dieteticamente incorreto mas a lembrar-nos a infância, usamos óleo em vez de azeite. No nosso tempo, nos Açores ou em Angola, azeite era coisa cara, só para temperar peixe cozido e saladas.
Dar dois golpes na diagonal ao peixe, de cada lado e dispor numa assadeira, com espaço à volta. Cobrir com a cebola às meias luas, o alho, o tomate aos cubos pequenos, as polpas, as ervas, os temperos. Preencher o resto do espaço com as batatas aos cubos, sem passar para cima do nível de altura do peixe. Molhar com o vinho e o óleo/azeite e levar ao forno pré-aquecido a 200º. Assar a esta temperatura, cerca de 30-40 minutos, vigiando com frequência e passando para cima algumas colheres de molho.
Importante é quando tudo começa a crestar e o molho bastante diminuido. É altura de o tomate assar semi-seco e de as batatas assarem em vez de cozerem. Subir ao máximo a temperatura do forno, a tostar tudo muito bem, durante cerca de 10 minutos, molhando com uns pingos de água de dois em dois minutos. No fim, com as batatas bem assadas, a cebola bem dourada, juntar água suficiente para aumentar o molho, sem o diluir.
Afinal, vale ou não a pena divulgar uma receita tradicional, banal, mas que pode exigir alguma técnica? Exigir que a morena ainda hoje sinta o cheiro e os sabores da cozinha da avó?

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Carne "assada" à família terceirense

Os leitores que tiveram interesse em olhar um pouco mais cuidadosamente para os meus pastéis de massa tenra - de família, e até de família afim - viram que coisa essencial é o recheio ser feito com restos de “carne assada”. Vai entre aspas, porque é forma antiga, pelos vistos, pelo que a casa gasta, não só forma açoriana de designar carne muito bem estalada em tacho e depois estufada em molho, que acaba por apurar bem. Remeti para o meu livro “O Gosto de bem Comer”, sem me lembrar de que o livro está praticamente esgotado, até eu fazer uma edição de e-book, no meu sítio. Assim, aqui vai a ligação para a receita.
Disse que temos ambos a tradição de a carne assada ser de fato/facto (?) estufada, sem ver forno. Mas a semelhança fica por aqui. A da minha família lateral é, nos ingredientes e no tempero, à moda continental, levada para Angola: refogado, tomate, cenoura, temperos tradicionais portugueses. Não é melhor nem pior do que a minha, é diferente. A minha, tradição de família, é marcadamente açoriana. Marinada em vinha de alhos, especiarias “açorianas”. É esta receita, coisa muito invulgar para o hábito de cá, que descrevi na minha página de receitas.
No entanto, anote-se que, como acontece frequentemente com o que chamo a minha tradição culinária açoriana, é uma variante rica, mais refinada, de receitas populares. O caso mais paradigmático, como já tantas vezes escrevi, é o da alcatra, em que aceito a tradição popular, embora seguindo a erudita.
Mas voltemos à carne assada terceirense. A melhor recolha ainda disponível de cozinha terceirense é de Augusto Gomes (“Cozinha Tradicional da Ilha Terceira”, 5ª edição, Tabacaria Angra, 2002). É pena que, muitas vezes, liste receitas um pouco acriticamente, sem as enquadrar gastronomicamente. Pior, muitas vezes limita-se a uma descrição muito genérica, de quem não é cozinheiro e não faz bem ideia do que, ao ler uma receita, um cozinheiro precisa de informação para a fazer bem feita. Por isto, não consigo relacionar bem a minha receita de família com outras receitas listadas nessa recolha. Também por isto, tentei pormenorizar ao máximo a minha receita.

P. S. - Escreveu-me um cozinheiro "ai que delícia" a opinar que esta receita não vale nada, porque é simples e erudita (sic). Dá para entender?