segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Aldrabices e coisas boas


É muito arriscado julgar-se que se conhece uma cozinha estranha quando não se a provou no sítio, repetidamente, em restaurantes aconselhados ou, melhor, em casa de amigos bons conhecedores e com boa memória dos sabores de criança. Quem fica por mostras, feiras, eventos, cá no sítio, arrisca-se a que lhe aconteça o que vai acontecer aos clientes de um restaurante americano que vai organizar uma semana de cozinha açoriana
Aconselho vivamente, vale a viagem! (espero que não levem a serio esta ironia). A ementa alista coisas tipicamente açorianas!..., como polvo à lagareiro, pastéis de bacalhau, arroz cremoso de peixe, carne de porco com amêijoas e gelado de figo. Palavras para quê?
Entretanto, quem me alertou para esta pérola também me deu a conhecer uma iniciativa que não conhecia, patrocinada pela companhia aérea açoriana, a SATA. É um sítio da net que merece visita, TasteAzores. O texto de apresentação está correto e as receitas, embora compreensivelmente em número quase simbólico (só 3), são genuínas. Ou a responsabilidade do sítio não fosse de uma minha estimadíssima cozinheira de mão cheia, com um grande património de cozinha familiar açoriana.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Lagosta, em tempo de crise

Em tempo de crise, pode parecer snob, mesmo sádico, escrever uma nota sobre lagosta. Desculpar-me-ão se disser que é suscitada por ocasião especial, o passado dia de S. Valentim, e por o pretexto serem umas lagostinhas de Moçambique, congeladas, bastante saborosas - mas nada chega à lagosta norte-atlântica - e a 30 € o kilo. Não é preço de faneca mas também não é loucura. E permite fazer em casa, com igual qualidade, comparado com os preços loucos que nos cobram numa marisqueira.
Antes de ir adiante, uma nota sobre a lagosta atlântica. Refiro-me à do oceano do norte, porque as tropicais, que bastante usei em Angola, ao preço da chuva, e a que agora vem muito de Cabo Verde, são para meu gosto inferiores à da costa europeia e, principalmente, à lagosta açoriana. E esta para mim ainda ultrapassada pelo cavaco açoriano, a lagosta da pedra. Mas já indo para a costa americana de nordeste, que conheço bem, sempre me serviram como preciosidade as lagostas do Maine, de Long Island, etc. Para mim, ficam em terceiro lugar, ainda depois das tropicais.
Lagosta de primeira, a começar pela açoriana, não daria para nota. Apenas dizer o banal, porque a sua qualidade dispensa preparações complicadas: cozê-la em água do mar, comê-la o mais simples possível, para mim apenas com o tradicional "molho verde" açoriano de vinagreta de cebola, salsa, malagueta e açaflor.
Já as lagostas “de segunda” permitem usos culinários mais complexos, porque não é tão imperioso salvaguardar o seu gosto sem mais nada. Vou por três preparações que fazem as minhas delícias. Ressalve-se que duas das receitas são, originariamente, para lavagante, mas vão igualmente bem com lagosta, principalmente, como fiz há dias, com lagostinhas pequenas, de cerca de 200 g cada, que a congelação não estraga muito. São a lagosta suada à moda de Peniche, a lagosta à americana e a lagosta Thermidor.
De Peniche passou para o indispensável livro de M. Lourdes Modesto, “Cozinha Tradicional Portuguesa” (pág. 201). A lagosta é “sangrada”, cortada em anéis, viva (barbaridade!...), e estufada com cebola, alho, salsa, louro, tomate, azeite, vinho branco, aguardente, Porto, e temperada com sal, pimenta branca, colorau, malagueta e noz moscada. É muito boa mas não a minha predileta. Sendo rústica e com sabores fortes, prefiro comer coisa tão preciosa de forma mais elegante, como as duas confeções francesas.
A lagosta/lavagante à americana tem história bem conhecida. Pierre Fraysse dirigia um famoso restaurante parisiense, “Chez Peter’s”, um nome que evoca a sua experiência anterior como cozinheiro nos EUA. Diz-se que certa noite, já a fechar a porta, lhe apareceu um grupo de clientes especiais a quem não podia falhar e que pediram lavagante. Fraysse foi à despensa e teve de inventar qualquer coisa nova com o que havia, o marisco cortado vivo em pedaços, salteados em azeite, estufados numa base reduzida de chalotas, alho, cenoura, tomate, aguardente e vinho branco. Parece que começou por preparar a base enquanto se perguntava como resolver a falta de tempo para o tradicional, cozer os bichos em caldo. Daí a inovação para a época, cortá-los crus e estufá-los na base.
Porquê “à americana”? Aqui entra a fantasia de cada um. Mais prosaicamente, os convidados terão perguntado o nome daquela novidade e saiu-lhe a sua referência americana, possivelmente com sentido de “marketing” de associar o prato à marca do restaurante. Há quem diga que os convivas eram americanos e que ele os quis homenagear. Também que o que hoje denominamos é corruptela de “à l’armoricaine”, embora a cozinha armoricana não tenha nada a ver com esta receita.
Recorde-se que a base criada por Fraysse, com variantes, ainda hoje é usada para múltiplos pratos, de marisco ou de peixe, até uma receita de cogumelos que li em qualquer parte. E, como nada verdadeiramente se inventa, há quem diga que a base de Pierre Fraysse lhe veio da memória aprendida de velhas preparações do mesmo tipo, nomeadamente os camarões à bordalesa e os mariscos bonnefoy das tabernas de Paris.
Em todo o caso, a lagosta à americana está relativamente codificada e as variações entre as receitas publicadas são menores. Diferente é o da lagosta Thermidor, outro clássico da cozinha francesa de restaurantes do fim do séc. XIX. Parece-me que ainda no tempo de Escoffier não merecia muito empenho. Descreve-a em simples linhas, como lagosta ou lavagante cortada em metades, grelhada, cortada em fatias e gratinada com molho de nata à inglesa com mostarda. Livros mais recentes, como o Larousse Gastronomique, não trazem a receita.
Vi muitas na net e fiquei surpreendido com a diversidade e diferenças essenciais de dezenas de receitas, cada uma a pretender-se genuína. Como é vulgar, cada uma inova juntando qualquer coisa, de forma a que, no fim, há receitas que usam tudo o que há no frigorífico e na prateleira dos temperos.
Assim, tive de fazer a minha própria receita, mas com o rigor que me é possível. Nestas situações, vou pelo meu gosto, pelo meu estilo mas muito também pela interpretação do que fica omisso nos mestres. O que queria dizer Escoffier por molho de nata à inglesa com mostarda? O que me saiu soube-me muito bem e pareceu-me de fino recorte parisiense tradicional, bem como à minha convidada/parceira/etc. exigente. A receita vem no sítio do costume.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

S. Valentim está a chegar


Não tarda o dia dos namorados. Quem julga que é coisa só de jovens faça favor de não ler esta nota. Muita gente encontrará formas bem amáveis de demonstrar à ou ao namorada/o como há sempre encanto no namoro, seja em que idade for, e sabendo-se que namoro não é exatamente só amor-base, é complemento muitas vezes esquecido com o tempo - mas quando falha... E um jantar especial de namoro não calha bem? 
Claro que todo com feminilidades, aquelas coisas chatas e pirosas que evocam sempre rendinhas e florzinhas, ademanes, quequices, dengozices, chocalho na canela, cravo e canela, mas que afinal nos derretem. “Le poète a toujours raison, la femme est l’avenir de l’homme”. Flores, velinhas, meia luz e Chopin, obrigatório. Claro que deve meter coisas doces, suaves, aromáticas, chocolate e licor. Se champanhe, sacrifiquem uma noite por ano o vosso bom gosto por um bruto e sirvam um semi-adocicado. Aqui vai, sem receitas (inventem, que eu já as tenho preparadas mas só para a morena) uma sugestão de ementa de jantar de S. Valentim.
Vai começar cor de rosa, com salmão, em creme de sopa. Um toque de leite de coco para “o meu coquinho tropical”. Ovas a evocar a fertilidade feminina. Ervas subtis a lembrar piquenique no campo, à Cesário, só faltando o ramalhete rubro de papoilas e o jerico. E as duas rolas é só para quem se lembrar do excelente poema.
Marisco simples, só com um toque de tempero de pimenta rosa, tinha de ser. Mais uma juliana de caiota, também coisa suave e feminina, cozida em chá ou temperada com um agridoce de licor de poejo açoriano e sumo de limão (galego). Ou então, ainda não me decidi, apenas uma flor de tomate confitado, bem aberto em gomos.
Bife à café, à maneira tradicional lisboeta, mas desta vez condescendendo com o café como coisa a mais do que no nome. O bife (ou turnedó) sairá polvilhado com café em pó e com molho de natas amargado de chocolate. A acompanhar, fora o mais que vos apetecer com bom gosto, “trufas” gratinadas de pasta de cogumelos selvagens e nozes.
Para sobremesa, mousse de chocolate branco, maracujá e Biscoitos Chico Maria (na falta, Porto). Um toque de gengibre, para lembrar as Mil e Uma Noites.
Café bem perfumado, mais arábica que robusta, com licor de leite de S. Miguel e com biscoitos da Gabriela (de cravo e canela).
E para vinho, já que faço todo este exercício de ajoelhamento diante das mulheres, um Grandjó. Elas gostam...!

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

E mais sopas


Como escrevi antes, tanto me perco por um refinado consomê como por uma boa sopa de “enfarta brutos”. Pelo meio, coisas mais específicas, a encher uma refeição mas sem ser tudo ao monte, como por exemplo uma açorda alentejana, uma canja com bastantes fiapos de carne e pedaços de fígado, uma sopa rica de peixe (com destaque para a sopa de agraço de S. Miguel, cuja receita de especialista, um amigo de patuscadas do meu avô, vem no meu livro), uma sopa de função do Espírito Santo terceirense ou, nas estranjas, a sopa de cebola parisiense.
Nas “enfarta brutos” incluo como exemplo da cozinha continental, mesmo que relativamente recente, a sopa de pedra, com expoente turístico em Almeirim. Claro que há muitas mais deste tipo por este país fora (sopa da panela da Beira Baixa, variados caldos de unto, sopa seca, sopa de grão e rabo de boi, muito mais e até, se quisermos considerar como sopa, os ranchos ou, nos peixes, as caldeiradas ou as sopas transmontanas de bacalhau). Mas esta sopa de pedra começa a ser emblemática e já vejo muitas pessoas - até muito próximas - a esmerarem-se a fazer “a sua” sopa de pedra. Até testemunho que podem ser mesmo coisa de boa cozinheira.
Isto leva-me a dar a conhecer (embora já as tenha escrito) algumas sopas açorianas deste tipo. Algumas vêm em recolhas como a de Augusto Gomes. A última que vou descrever é a que me diz mais, minha coisa de criança em casa micaelense com muita cozinha terceirense.
Lembro, sem voltar a dar receita, a sopa da função e a excelente sopa de funcho. Esta, cuja receita publiquei algures (googlem...), faço-a cá com o funcho em rama que agora se vende nos supermercados mas não é nada a que se faz lá com funcho selvagem, do campo, não só as folhinhas terminais mas também os talos. Também não vou falar da sopa de nabos de S. Maria, de que já publiquei a receita, mas que tem o contra de depender essencialmente da especificidade da variante local de nabo, que nunca vi vender cá. Ficam outras duas.
Couves aferventadas. É uma sopa rústica com a característica comum a todas de ser um retrato da situação económica. O meu povo de pé descalço comia só as couves com um pouco de toucinho. O “remediado” acrescentava umas carnes de vez em quando. Portanto, como base, o caldo de couves. 
1 molho de couves (cerca de 750 g), 250 g de repolho, 2 batatas médias, 2 batatas doces médias, 1,5 c. sopa de banha ou toucinho derretido, 1 cebola, 2 dentes de alho, 1 folha de louro pequena, 1 c. sopa de massa de malagueta, 1 c. chá de colorau, 3 cravinhos, sal e pimenta preta, 3 l de água.
Como se vê, em relação a tantas sopas de hortaliça continentais, a diferença caracteristicamente açoriana do uso generoso de temperos. Ripar a couve, sem talos grandes, e o repolho. Esfregar a couve, entre as mãos e escaldar as hortaliças, durante 1 minuto, em 1 l de água já a ferver (isto de escaldar previamente é meu, não é hábito popular). Escorrer, passar por água fria e cozer em mais 1 l de água, também já a ferver, com os restantes legumes e a banha.
A versão mais rica leva carnes: 1 chispe (nos Açores diz-se chanco), 150 g de carne de cozer (cachaço), 80 g de toucinho, 70 g de linguiça. Deixar esfregados com sal grosso, de véspera, o chispe e o toucinho. Lavar bem por água corrente e demolhar mais 1 hora. Cozer em 1 l de água as carnes, a cebola picada com os cravinhos, o alho, o louro, a banha e os temperos (sal moderadamente). Reservar as carnes e escumar, desengordurar e coar o caldo. Neste caso, a couve e o repolho são cozidas como disse, com os outros legumes, mas à parte. No fim, misturar as hortaliças, as carnes cortadas em pedaços pequenos e a linguiça às rodelas. Juntar 1 l do caldo de carnes e 4 dl do caldo de hortaliças. Rectificar o tempero de sal.
Melhor ainda é juntar netos, simples bolos esféricos, relativamente pequenos, de farinha grossa de milho amassada com caldo de carne e cozidos no fim da cozedura da sopa.
Sopa de cavador, terceirense. Tendo base no feijão, legumes e enchidos, pode parecer mais próxima da sopa de pedra. Mas vejam, principalmente, a diferença subtil e de grande classe dos temperos.
300 g de feijão rajado (no continente, feijão catarino) ou, na falta, de feijão vermelho, 300 g de abóbora, 2 batatas doces, 4 batatas grandes, uma linguiça, 125 g de toucinho, um chispe, uma cebola grande, 3 dentes de alho, uma folha de louro, 6 grãos de pimenta da Jamaica, sal, 6-8 grãos de pimenta preta e uma c. café de canela. A linguiça açoriana não é a de cá. É mais próxima de um bom chouriço de carnes, mas mais temperada e picante.
Fazer a sopa com o feijão, as carnes e os legumes cortados em pedaços pequenos e os temperos, com água só a cobrir tudo. A canela só se junta quando a sopa estiver pronta. Sendo um tempero pouco vulgar em sopas, aconselho que se experimente a quantidade de canela a gosto. Mas que marca enorme diferença para qualquer sopa que conheçam não me parece haver dúvida.
Apostila - Já tenho escrito sobre as especiarias na(s) cozinha(s) açoriana(s). Esquecendo agora as ervas, não conheço nenhuma cozinha regional portuguesa que tão bem use as especiarias. Creio que há duas razões seculares, que são da cultura geral dos meus leitores. Primeiro, a importância e custo das especiarias tem muito a ver com uma coisa elementar, não haver frigoríficos. Os produtos comiam-se mesmo quando já começavam a ficar imprestáveis e as especiarias disfarçavam os estragos. Segundo, a única alternativa, desde tempos em que nórdicos, fenícios e depois romanos já o vinham comprar a Portugal, era o sal, para a conservação por salga.
Nos Açores, combinaram-se ambos os fatores. Sal não se podia lá produzir, com costas alcantiladas sem zonas baixas para evaporação da água do mar. Todo o sal era importado e caríssimo. Em contrapartida, por venda legal do quinhão dos tripulantes ou por contrabando, as especiarias das naus da carreira das Índias eram acessíveis, todas as armadas lá passavam. Era a obrigatória volta do largo, no regresso da Índia, a tomar nos Açores a latitude de Lisboa (nada mais do que Colombo também fez e agora justifica teorias mirabolantes sobre o seu ofício de espião de D. João II).