segunda-feira, 30 de abril de 2012

Falar sem saber



A gastronomia hoje é um mundo, tão grande como o mundo. Quem a pode dominar? Depende do rigor dos autores. Há quem o limite ao que sabe, por conhecimento de infância, estudo ou prática. Escreve Miguel Esteves Cardoso no Fugas, do Público.
Nos Açores mas, sobretudo em São Miguel, existe o maravilhoso hábito de comer o queijinho fresco com pimenta da terra — uma massa de malaguetas suaves, que só eles têm e sabem preparar, que é o piri-piri mais delicioso e aromático do mundo. A melhor é a caseira porque as versões em frasco tendem a ser salgadas de mais.”
É difícil escrever tantos erros ou imprecisões em tão curto texto. Todo o texto anterior do artigo fala de queijo fresco de ovelha. Este parágrafo fará pensar que é também o queijo fresco nos Açores. Sempre foi de cabra (“quêje de cóbra”), embrulhado em folhas de conteira e excelentemente a ir com bolo lêvedo. A brucelose obrigou à mudança para queijo fresco de vaca, que não era tradicional, mas que, muito bom, é o que hoje mais se come nos Açores. E se formos à descrição de forma, até ela é desleixada no tal parágrafo. O queijo fresco de ovelha, no continente, é tradicionalmente um cilindro alto e estreito. Dificilmente se pode qualificar como queijinho um queijo fresco como o micaelense, achatado e com cerca de 10 cm de diâmetro.
Comido com massa de malagueta? Admito que MEC, ao falar do “maravilhoso hábito” - com que concordo - não esteja obrigatoriamente a considerá-lo tradicional. E não é. É invenção recente de restaurantes e pequeno almoço de hotéis. Nunca foi coisa da mesa da minha meninice e dos meus amigos, o que não quer dizer que não seja bom.
Abrindo parênteses, é como a "tradicionalíssima" (?!) morcela com ananás, coisa recente que alguém inventou quando os madeirenses inventaram juntar banana ao peixe espada. É bom, mas deixemos em paz respeitosa a tradição, que aqui não é tida nem achada.
A malagueta não é um piripiri. Quem sabe de pimentas de género capsicum não diz uma barbaridade destas. Há centenas de espécies e variantes, das quais o piripiri (gindungo em Angola) é apenas uma. A malagueta açoriana (essencialmente micaelense), provem da costa da Guiné (dizem as crónicas que do Benim) e é uma das malaguetas grandes, achatadas e com baixo índice na escala de picante de Scoville, como a da Caiena. O piripiri é uma pimenta/malagueta pequena, muito picante e com sabor pouco vincado, vulgar na África sub-equatoriana e na Índia.
Ao contrário do que escreve MEC, caseira e industrial não diferem em picante e em sal só por isso, mas pela forma como se faz (tirar ou não as pevides, mais ou menos tempo a curtir, lavar mais ou menos depois da salmoura). Há industriais muito suaves, há caseiras de quem gosta delas rústicas e muito fortes.

(Editado, 1.5.2012)

Os malefícios do bufê!

Hoje, à minha frente na fila do bufê, alguém que se deliciou depois à mesa com o prato que compôs (o preço é o mesmo, é fartar, vilanagem). Coisa gastronomicamente elegantíssima. Começou, na secção das saladas, por encher o prato com um monte de cenoura ripada, o must gastronómico de agora. Mais muita salada russa, queijo fresco e milho. Passou aos quentes e juntou à gamela batata frita, arroz e brócolos cozidos. A coroar, uma grande colherada de... coelho à caçador.

sábado, 28 de abril de 2012

Conhecem Múrcia?


Estive uns dias em Múrcia. Já lá não ia há trinta anos, e como as coisas mudam. Hoje uma cidade desenvolvida e agitada. Antes, nessa tal vez, lugar de uma inesquecível memória minha negativa. Em Agosto, com calor insuportável, passei por Múrcia, em viagem de Córdova (ou Granada? Já não me lembro) para Cartagena. Lá cheguei a Múrcia por volta do almoço, apertado de fome e de outra coisa que adivinham. Aliviar a fome, impossível naquele poço de calor todo a dormir a sesta, nada aberto, nem uma sandes em loja de estação de serviço. Quanto ao outro aperto, não digo como me desenvencilhei. Só tive tempo para um olhar para a fachada da catedral, que confirmei agora ser o mais magnífico exemplo do barroco na península.
Múrcia é uma região autónoma. Dizem-me amigos meus, por piada, que quando se desenharam as autonomias, foram inquestionáveis as nacionais, até com língua própria, Catalunha, Galiza, País Basco. A seguir, outras muito respeitáveis, Castela a velha, Aragão, Estremadura, Andaluzia, os arquipélagos, etc. Toda a gente estava feliz até que repararam que havia no mapa um sítio em vazio, que ninguém queria: Múrcia, que lá ficou com a sua autonomia.
Em alguns dias, consegui conjugar o trabalho com alguma experiência gastronómica, graças à excecional hospitalidade de Joaquín Hernández, da U. Católica de Múrcia. “Insinuando-me” como apreciador junto de chefes de mesa, que num caso até me levou ao de cozinha, fiquei a conhecer alguma coisa da cozinha murciana, que me era alheia.
É uma cozinha rústica e simples, mas saborosa e principalmente com excelente qualidade de produtos hortícolas (por exemplo, o seu pimentão é excecional). É um deserto, quentíssimo e seco, mas com rios e ribeiros que ainda hoje são muito bem explorados com recurso à velha tecnologia hidráulica dos árabes. Claro que também hoje, como se vê por toda a parte, o regadio é completado por muita estufagem. Com tudo isto, eles falam sempre da “horta murciana”.
Não posso dar registo extenso de muita coisa interessante que comi. Por exemplo, uns pastéis magníficos de massa folhada mas tão fina que mais parecia massa filo, e recheados de carne ou de peixe (comi ambos). Uma salada de ovo cozido passado por mandolina e apertado em bolo com tomate e pimentão picados e um pouco de vinagreta, coberto com filetes de anchova. Os tais pimentos recheados com refogado e carne picada, mais uma. Um arroz confecionado ao estilo do levante espanhol, neste caso apenas com carne de porco (de uma raça regional, derivada do porco preto). Peixe grelhado com molho de tinta de polvo ou choco, mais tomate e pimentão pisados.
Nunca tinha ouvido falar da “mojama”. Pareceu-me preparado exatamente igual ao bacalhau, salgado e seco ao sol, mas feito com barriga de atum. Aconselho aos pescadores de atum da minha terra. Servem cru, em fatias muito finas, de sabor muito forte. Excelente, embora, para meu gosto, um pouco enjoativo quando já se vai no terceiro prato! Comi acompanhado com fatias cruas de ovas de atum fumadas, que não conhecia. Também acompanhamento obrigatório, em toda a cozinha murciana, excelentes amêndoas
Deixo para terminar uma coisa “oh simple things!”, como diz o meu amigo Pedro Aniceto, a única coisa que aprendi a fazer por informação do chefe e que reproduzo tão fielmente quanto consegui anotar. É o “zarangollo”, que seleciono porque é só e simplesmente um produto da tal horta murciana.
Não tenho quantidades, adaptem: curgete, cebolo ou cebola com rama, ovos, azeite, sal. Nada mais. Picar o bolbo da cebola e a rama. Cortar a curgete em fatias finas, com ou sem pele, a gosto.  Alourar bem a curgete em azeite quente mas a lume médio, em frigideira, até perder bastante água mas sem tostar. Juntar a cebola e continuar a refogar, a lume baixo, temperando com sal. Cerca de 15-20 minutos depois, juntam-se os ovos, inteiros, não batidos! Disseram-me que era o segredo (afinal, a técnica dos “huevos rotos”). Só quando a clara já está coagulada mas a gema ainda líquida, é que se embrulha tudo, fortemente. Vi fazer, é muito fácil. Comi quente, mas disseram-me que também fica muito bem frio. 

P. S. (30.4.2012) - Almoço de ontem foi de teste, quando ainda vinha com as papilas a mandarem chispas de memória recente: "zarangollo", com uma boa mistura de chouriços murcianos. Não é para me gabar, mas creio que ficou excelente, mas só pela razão que disse. Por mais cuidada que seja a escrita de uma receita, só se consegue reproduzi-la fielmente de duas formas: tendo-a feito ensinado por quem sabe; ou logo a seguir a ainda se ter bem de memória os sabores e os aspeto. 

É coisa de que ainda falarei, a importância da memória gustativa. A mais da recolha de receitas, da inventividade, os grandes chefes sempre disseram que o essencial do seu sucesso era uma volta por outros restaurantes e o regresso com a memória viva, não escrita, dos pratos que provaram. Isto também devia valer paras os críticos. Há algum crítico que escreva sobre Mozart sem ter ido antes a Salzburg e trazer de memória a mais recente e inovadora interpretação?

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Sala e cozinha

A última das para mim imperdíveis crónicas de Virgílio Nogueiro Gomes (VNG) trata do seu desgosto, justificado, com o que de tratos de polé anda a sofrer o serviço de mesa nos nossos restaurantes. Ainda há tempos tivemos uma conversa privada sobre isto. Todavia, parece-me necessário esmiuçar um pouco mais este assunto.
VNG elabora  a sua crónica, como é tão vulgar fazermos, em torno de uma experiência concreta, mas que sentimos como generalizável. Compreensivelmente, não identifica o restaurante mas ficamos assim na dúvida sobre a sua representatividade. 
Pelo que me pareceu, é um restaurante daqueles “famosos no bairro e cercanias”, onde se vai comer à tradicional e sem pretensões, e onde não se espera - desculpe lá, Virgílio - preocupações dietéticas em relação à sopa que desejava. Amesendação popular, toda em papel, a tal ementa na ardósia, empregados de jeans, T-shirt, tatuagens e unhas sujas. É castiço, mas já tenho pouca pachorra para este “comer bem” que fica longe do comer bem na minha casa, e hoje cada vez mais caro. Deixo a crítica para o fim.
Talvez discorde de VNG é no que se refere ao serviço nos restaurantes de primeira classe (é certo que ele não fala nisto). Pelo que vejo, empregam jovens de muito bom nível de escola de hotelaria com chefes de mesa de muito boa qualidade. Para não me alongar, só alguns exemplos. O serviço no infelizmente finado Vin Rouge, sob batuta da proprietária, era de grande qualidade. O chefe do Mensagem, que ombreia em estrelas abaixo do vizinho Feitoria, é um senhor. Os empregados de mesa do Feitoria conhecem toda a confeção dos pratos, para informarem o cliente. No Assinatura, outro dos meus prediletos, mesa de dois, como é sempre a nossa, é servida ao mesmo tempo, um prato a cada um, por dois empregados. E muitos exemplos mais.

Claro que depende das pessoas. Estou a lembrar-me, por exemplo, que na última - e mesmo última! - ida ao Eleven, o empregado era displicente e desagradável - tinha de gerir as três horas de uma refeição para dois - mas, no fim, fomos atendidos por um encarregado dos queijos muito sabedor e simpático, interessado, a perder uns minutos de tempo para saber visivelmente curioso alguns segredos de queijos açorianos.
Classe seguinte é a dos restaurantes entre fast food e não sei quê mais que empregam principalmente jovens brasileiros. Às vezes, esses tropicais são verdadeiramente toscos, mas tão simpáticos e divertidos que até levamos as falhas numa boa. Diferente é quando restaurantes caros e pretensiosos empregam este tipo de pessoal, como um restaurante na moda, em Oeiras praia, em que um jovem principiante me serviu o vinho branco no cálice em que entretanto eu tinha tomado um Madeira de aperitivo.
Depois, há a Charrua defronte da minha casa, para o almoço de sábado, como muitas Charruas por aí fora. Tudo familiar, pai a gerir, mãe no fogão, dois filhos muito simpáticos a servir, futebol na televisão. Toda a gente se conhece, tudo é entre vizinhos e amigos, brincadeiras com a miudagem, pode-se pedir a esquisitice que se quiser que se é sempre atendido com um sorriso. Se falta qualquer coisa que eu deseje, é só um minuto, vão comprar ao minipreço defronte. Ainda por cima, "a cozinha da minha avó". Só um snob pretenderá serviço de mesa de qualidade neste tipo de restaurante. Já muito fazem quando aceitam a minha razão para não querer vinho branco servido em flute, a última moda das Porcalhotas (sem ofensa; é o meu concelho).
O pior, vou com VNG, é o caso do que não é nada disto, deixou de ser a tasca de amigos do bairro, não chega a restaurante de nível mínimo, mas é arrogante. É o tal restaurante que “justifica uma ida de um bairro a outro” (?), mas com a mesma ementa, a mesma cozinha, a mesma degradação de quem vai vendo morrerem as avós que sabiam de colher e tacho. Os restaurantes inefáveis que ainda têm honras de crítica em jornal de referência. Com esses elogios, o seu serviço faz-me lembrar os velhos criados da Brasileira e do Nicola, que se achavam superiores a qualquer cliente e que arrastavam preguiçosamente os pés ao servir a bica, olhando-nos de cima para a falta da gravata. 
Nada mudará enquanto houver críticos a porem nos píncaros estes restaurantes, a quem afinal, na crítica, apontam graves defeitos (por exemplo um museu do presunto, em Trás-os-Montes, só com presunto espanhol, com coisas de porco preto em Trás-os-Montes do bísaro, com petiscos mal feitos, mas no fim muito bem classificado na crítica, porque é típico!). Talvez porque não consigam criticar a alta cozinha que vamos tendo, haverá sempre restaurantes de gato por lebre mas elogiados e em que, obviamente, o serviço não é tido em conta como melhoria do restaurante.
NOTA 1 - Fui buscar um excerto do meu próximo livro, que há tempos mandei ao VNG. Aqui fica.
“(…) Obrigatoriamente, nada disto é trabalho para empregado de mesa, por melhor que seja. É para o chefe de mesa, aquele profissional indefinível que nos encanta pelo bom porte, traje distinto (ainda se lembram do jaquetão preto e calça de fantasia, com gravata cinza pérola?), olhar no olhar mas na justa medida de se mostrar ao serviço, sem arrogância, sorriso franco e conversa inteligentemente comedida. E que se retira com toda a técnica teatral da saída de cena, para dar lugar ao escanção, em ajuda à escolha da ementa. O chefe de mesa é tão importante como o chefe de cozinha, com quem tem de fazer boa equipa. Só não exijo que teorize sobre teologia e a virgindade de Maria, como o chefe de mesa buñueliano da Via Láctea.”
NOTA 2 - Voltando aos críticos, às vezes parece-me que alguns parecem apostados numa cruzada de combate entre a sua cozinha tradicional e a cozinha erudita. Não faz sentido, porque elas não se excluem e, para mim, até o que me dá mais gozo é a reconstrução da cozinha tradicional. Depois, parece-me que partem em combate à cozinha moderna e erudita sem a conhecerem bem, sem a saberem fazer, sem experimentarem na sua cozinha doméstica as imensas variações que lhes enriqueceriam a imaginação crítica. Com isto, enchem crónicas com elogios contraditórios a coisas que, pontualmente criticam, mas que valem no conjunto porque é restaurante de ambiente e motivação tradicional. Mas então porque é que não leio uma crítica dessas ao Varunca, ao Pereira, à Kottada, à Alice, ao Vallecula, ao Solar dos Nunes, à Adega da Quarta feira, ao Azinheirinha, etc.?

sábado, 7 de abril de 2012

Ainda as cocottes


Já aqui disse que me estou a entreter com cozinha de cocotte, em frascos herméticos em banho maria. Dia em que a morena me deixa sozinho é boa ocasião para exercitar esse entretenimento, como foi o almoço. Nada mais simples, mas sempre seguindo a minha regra das 3 camadas.
A camada do fundo foi simplesmente tosta esmigalhada grosso depois de embebida durante algum tempo em caldo de galinha (não estive para grandes requintes, não o tinha congelado, fiz com a versão recente da Knorr, em “tacinhas”). Segunda camada de ovos mexidos, muito moles porque batidos com varas com bastante nata. Para terminar, vi que tinha no frigorífico uns banais cogumelos parisienses em risco de se estragarem. Salteei-os com queijo ralado e um toque de Porto, temperei com pimenta preta e um toque de Jamaica, um pouco de sumo de limão e salsa, e esmaguei muito bem. Foi a imprescindível terceira camada da cocotte. 

Truques e dicas, novamente


Volto aos comentários sobranceiros que alguns leitores-críticos me enviaram sobre as minhas dicas e truques, a seu ver elementares, isto apesar de ter recebido comentários favoráveis de outros leitores menos experientes. Morto por ter cão e morto por não o ter. Hoje, sai brincadeira para os meus leitores exigentes. Uma espécie de jogo de adivinhas, esperando que me respondam.
Vai-se tratar de coisa muito simples, empadas. Vou fazer hoje, para a festa pascoal de amanhã, à maneira antiga da minha ilha materna, a Terceira, as tradicionais empadas de peixe ("O Gosto de Bem Comer", pág. 309). Que até não se faziam em casa, compravam-se nas pastelarias, como a famosa do Athanázio, meu tio avô. Aqui ficam algumas perguntas.
1. Vou assá-las a 220-230º. Outras empadas asso a 180-200º. Porquê esta diferença?
2. Porque é que não unto antes as formas?
3. Porque é que deixo  o recheio algumas horas no frigorífico?
Não estou a brincar, tudo isto é importante e não é preciso ter-se tirado curso em escola de hotelaria. Basta ser-se amador com auto-exigência e com muito bem comer por este mundo fora, alguma leitura, experiência, gosto e humildade de se confrontar com as críticas de amigos sabedores.
Tudo isto resulta de muita experiência, de muito testar. Não há nenhum grande músico que não treine solfejo, nenhum pintor que não treine desenho, também nenhum cozinheiro que não treine sempre a técnica. Ontem que comi cabrito (em sexta santa, que horror!), pior do que noutro lado onde costumo comê-lo, pergunto: a diferença era no bicho? Não. Nos temperos? Não. Era na técnica! Aquilo que faz a diferença na cozinha tradicional, a “mão da cozinheira”, ou a “cozinha das avós”.
A net está cheia de blogues, que costumo chamar de tias cozinheiras, que são veneno para o bom gosto culinário. Uma começa por recolher uma receita e tem de a adaptar, para não ser só plágio. As leitoras não percebem que a açúcarzinha ou a dona do bistrot não domina minimamente a técnica e que a tal sua adaptação só piora uma receita já de origem banal. No fim, depois de vários ciclos destes, a coisa é intragável. Mas como é que blogues de gente com critério publicitam essas tias?

quarta-feira, 4 de abril de 2012

De Espanha, nota breve

Estive há dias em Espanha. Não pude experimentar a melhor cozinha de hoje em Madrid, porque fui só com preparação de última hora e os restaurantes estrelados ou garfados têm de ser reservados com bastante antecedência. Mesmo assim, comi bem, desde o clássico Museo del jamón até àquilo de que muito gosto, tapas variadas. Destaque também para bons almoços nos restaurantes de museus, Prado, Thyssen, Reina Sofia, um em cada dia, porque o trio exige largas horas de visita, mesmo que seja só para rever velhos amigos.

Mas esta nota é principalmente sobre coisa bem diferente, novidade para mim em relação a Portugal. Por razões de saúde, tendo a evitar bebidas alcoólicas. Cerveja é vulgarmente sem álcool, atualmente muito mais aceitáveis do que aí há uns anos. O que não vejo cá é o que há hoje em qualquer cervejaria de Madrid: muito boa cerveja sem álcool e à pressão. Da primeira vez, até pensei que me estavam a levar à certa.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Truques e tricas - Foie gras

Morto por ter cão e morto por não o ter. A pedido de muitos leitores, publiquei aqui algumas notas simples de coisas técnicas que me pareceram fora do conhecimento geral da gente comum. Muitos me agradeceram. Mas também recebi comentários sobranceiros de quem achava que eu estava a escrever banalidades.
Ora, em coisas de técnica, há léguas de caminho, do mais elementar ao mais desafiante. Aos meus detratores da minha simplicidade de dicas, vou subir a parada: sabem trabalhar bem o foie gras? Vou restringir a questão. Um verdadeiro foie gras de ganso, tradicional, trufado ou não, trabalha-se bem, não vou escrever sobre isto. Mas agora vende-se por aí, nos hiper, a metade do preço, um bom foie gras de pato, inteiro ou em bloco. É traiçoeiro para qualquer cozinheiro que se preze. Na primeira vez que o fiz para amigos, foi uma desgraça. Conto a seguir.
Em bloco? Começa aí toda a diferença. Vende-se uma variante em peça, um lobo do fígado, mais consistente e mais trabalhável. Um pouco mais vulgar e mais barato é o foie gras de pato em bloco. Parece-me uma preparação comprimida, provavelmente usando muita gordura de pato para homogeneizar a mistura. E aqui é que está o problema.
A maioria das boas confeções de foie gras usa-o em escalopes de cerca de 1-1,5 cm (para o preparar a quente, quanto mais grosso melhor). Comece-se pelo foie gras inteiro (“foie gras entier”), o próprio fígado, inteiro ou separado nos seus dois lobos. Pode ser cru, semi-cozido ou cozido, o que já implica alguma diferença de tratamento. O foie gras sem outra especificação é em geral uma prensagem de lobos de fígado. 
Mais difíceis de trabalhar, para realçar o que, de qualquer forma, têm de muito bom, são as preparações industriais, mais vulgarmente de pato, as tais que hoje se vendem a preço razoável. Não vou referir-me a coisas boas mas menores, como terrinas, pastas, mousses, “parfaits”. O que vale bem a pena são os blocos de foie gras, comprimidos com gordura (comprados frios, vê-se bem a gordura fria e sólida, amarela, a envolver). Este é que é o problema.
O que vejo à venda, de pato, é “micuit”. Há formas excelentes de o comer como tal, frio, com uma guarnição fria imaginativa, ou em sandes ou em salada. Por exemplo: uma tosta embebida em caldo de galinha coberta com fatias de foie gras e estas por sua vez cobertas com uma variedade de coisas: compota de laranja amarga e redução de vinho do Porto; estufado simples de brunesa milimétrica de espargos brancos ou de caiota, com um toque de uma especiaria exótica; mistura de carne de caranguejo com uma base à americana; abacate, papaia ou manga moídos com um vinho generoso e um toque exótico de gengibre e canela; cebola em fatias finas, glaciada; um agridoce de tomate-cereja e ananás; etc. A única recomendação técnica é sobre a remoção da gordura envolvente. Nada mais simples: retirá-la com um pano bem aquecido.
Mais difícil é cozinhar este foie gras bloco em escalopes quentes. Um verdadeiro foie gras trabalha-se muito bem, braseando-o em frigideira ligeiramente untada ou mesmo seca, porque basta a gordura que o foie gras vai destilando. Pode-se brasear só de um lado ou de ambos. Gosto mais da primeira forma, porque dá contraste de textura. Se tentarem tratar assim um bloco de foie gras de pato, muito mais rico em gordura misturada, as fatias estalam, desfazem-se em gordura, desmancham-se. Dizem os especialistas que há uma ótima técnica que, obviamente, nunca experimentei: congelar o bloco em azoto líquido (coisa banal do meu tempo de laboratório) e passá-lo logo para a frigideira seca.
Por mim, só encontrei uma solução, “queimá-las com maçarico”. Sai toda a gordura, mantendo-se a forma e a textura dos escalopes de foie gras. Sobre papel de alumínio, tem uma vantagem: escorre a gordura para o alumínio e deixa-se solidificar no frigorífico, para excelentes usos posteriores, conforme o vosso bom gosto.

domingo, 1 de abril de 2012

Cocotte (II)


Já vai longe uma entrada que escrevi sobre a cozinha em “cocotte”. Volto a ela por causa de um comentário que lá deixou Jo, autora de um imaginativo blogue culinário, “Blackberry eats”. Pensei a princípio que ela estava a brincar, mas fui confirmar  e achei muita piada à ideia.
Trata-se de uma sugestão pelo menos invulgar de Lisa Casali: cozinhar a temperatura controlada usando… a máquina de lavar louça. Claro que deve funcionar. Só me pergunto é se o custo da eletricidade, ao fim de algumas vezes, não dá para comprar um banho maria regulado.
E não é muito caro ter um banho desses, artesanal, como tenho. É só ter os préstimos de um irmão eletrotécnico ou de um bom eletricista. Uso um tacho largo, de tamanho adequado, com água. Dependurado no lado interno uma daquelas bem conhecidas resistências para chaleiras. A meio do seu cabo elétrico, intercalado um dispositivo tipo interruptor, acionado por um termostato ligado a uma sonda termométrica, do tipo dos termómetros de assados, também mergulhada na água. É tudo. Claro que também essencial, mas à parte, um banal cronómetro de cozinha.
Também escrevi, então, sobre cozinha a vácuo. Ambas as coisas estão ligadas, porque a cozinha a vácuo é a baixa temperatura. Para vácuo, não há grande dificuldade. Por preço não exorbitante, os estabelecimentos de eletrodomésticos anexos aos hipermercados vendem máquinas de fechar sacos de plástico que também aspiram o ar a fazer vácuo.
Experimentem e fiquem ufanos por verificarem que um amador pode fazer coisas fora do vulgar que por vezes pensa estarem só ao alcance dos profissionais.