sábado, 25 de maio de 2013

Dois e três

Alguns dos meus leitores já terão encontrado em ementas de bons restaurantes pratos com “dois serviços”. Trata-se de cozinhar de forma diferente duas partes da mesma peça – por exemplo, uma ave – em geral servindo-as em sequência, depois de se começar por a mostrar inteira. Daí a expressão “dois serviços”. O termo evoca também outro significado de serviço, que não o de baixela, como o de organização e sequência dos pratos, como os bem conhecidos serviço à francesa (uma enormidade) e à russa. 

Para alguns, estes pratos em dois serviços podem parecer coisa moderna e de moda mas, de facto, há casos bem tradicionais. Lembremo-nos do pato à Pequim, tal como emblematicamente servido no Mandarim. É exibido inteiro no esplendor do seu lacado, sendo depois servida a pele, em tiras finas, enquanto o pato regressa à cozinha para acabar de assar e ser servida a carne a seguir.

Um outro prato do mesmo tipo de que gosto muito, já com bons aninhos, é o peixe cozido em vapor do Ribamar, em Sesimbra. O fundo da peixeira tem legumes e ervas e recolhe o caldo de cozedura do peixe, a vapor. A peixeira vem à mesa e o criado (não há nada de pejorativo nesta designação tradicional) arranja e serve o peixe, com um pouco de molho que agora não recordo. O caldo volta para a cozinha, para ser servido a seguir como uma sopa com pão.

Um exemplo bem conhecido de prato em dois serviços – neste caso simultâneos – é a galinha assada do NoMad, em Nova Iorque, concebida e executada por Daniel Humm. A galinha, pequena, é recheada entre a pele e o peito (a galinha recheada dos Açores!) com uma mistura riquíssima de “foie gras”, trufas e brioche. No interior, só limão e alecrim. Forno, e aqui, segundo a minha experiência, está boa parte do resultado. Digo minha experiência porque, com grande sucesso convivial, faço-a às vezes, em versão pessoal obviamente embaratecida, em tempos de crise.

Apresentada a galinha, como boa decoração (até com as unhas pintadas!), volta à cozinha. Separam-se os peitos, que já devem estar bem assados e rosados pela gordura do recheio e as coxas, ainda mal assadas, que acabam de cozer em fricassé com morilhas. Ambas as coisas são servidas em paralelo. Vincent Farges faz no Hotel Fortaleza do Guincho um prato do mesmo género, de codornizes, mas em que os peitos são revestidos com “pralin” de frutos secos.

Também ainda não provei, no Belcanto (quando é que lá voltarei?) o lavagante em dois serviços de Avillez, um prato já com dois anos. Não sei como é, mas ficaria satisfeito se amigos apreciassem uma versão de amador, em que primeiro se serviria a carne das pinças, descascada e fria, em salada muito simples com pontas de espargos e tomate assado (não é tomate seco), com uma espuma de champanhe e nata, com um toque de gengibre. A seguir, a carne da cauda estufada numa variante de molho Thermidor modernizado e incluindo uma redução de moído do tórax, contrastando com arroz negro cozido simples (a variedade naturalmente negra, Venere, “riso nero”, não o arroz de tinta de choco).

Há ainda outros casos de dois em um, no mesmo prato, ou mesmo três e quatro em um, como a mistura contrastada de molhos coloridos que, como pintura expressionista abstrata, Avillez criou no seu prato justamente chamado raia à Jackson Pollard. O uso de mais do que um molho contrastante já começa a ser vulgar nas sobremesas, mas também já se vê nos pratos principais.

O oposto, também inovador, é “um em dois” ou “um em três”. Trata-se principalmente de guarnições, aquilo que popularmente se designa como acompanhamentos. É verdade que é um conceito hoje duvidoso na cozinha moderna, se considerarmos que, para muitos, num prato não há um elemento principal e outros secundários, a acompanhá-lo e ao seu serviço. 

A própria composição visual do prato tende a realçar a sua integração ou, pelo contrário, a distinção mais ou menos clássica dos “naipes”, como há pouco tempo vi num restaurante estrangeiro superestrelado: um lombo de halibute claramente separado, em empratamento tradicional, de uma grossa fatia de funcho glaceado. E, por falar em música, numa sinfonia todos os músicos se combinam, mas não num concerto para instrumento e orquestra.

Deixo um exemplo de “um em três”, inovador, numa receita de Raymond Blanc, a mesma coisa mas cozinhada de três maneiras. Vieiras coradas, acompanhadas só com couve-flor de três formas ao mesmo tempo: em puré simples, depois de cozidas em leite; fritas embrulhadas em polme bem temperado com especiarias, como “bhajis”; e cortadas em fatias e caramelizadas. Como se vê, o essencial aqui é o contraste, mas dificultado por ele não poder vir do uso de componentes diferentes. É só um, mas tendo de se conseguir aquilo que é sempre a fórmula desejável do contraste equilibrado: sabor, aroma, cor, temperatura, textura.

domingo, 19 de maio de 2013

Entre o Praiense e o Real Madrid

Um dia destes falarei de uma grande experiência gastronómica recente, em Inglaterra, que hoje me serve de pretexto para outra conversa. Bray é uma pequena aldeia a umas dezenas de quilómetros de Londres que tem a particularidade de aí se localizarem dois dos quatro restaurantes ingleses com três estrelas, o Waterside Inn e o Fat Duck. O que mais conta para esta nota é que são conhecidos por representarem extremos de conceção e estilo de alta cozinha. A família Roux, do Waterside Inn, cultiva uma cozinha claramente influenciada pela alta cozinha tradicional francesa. Heston Blumenthal, o chefe do Fat Duck, é um criador original, que gosta de surpreender, quase que provocar, mais próximo em conceção da cozinha moderna de Adriá e da cozinha molecular e de desconstrução.

Isto passa-se com outros restaurantes de topo que, muitas vezes, seguindo, por exemplo, a orientação do já falecido Santi Santamaria, de Arzak, ou dos irmãos Roca, agora com o “melhor restaurante do mundo”, ou, em Itália, a Osteria Francescana de Massimo Bottura. Claro que, não conhecendo nenhum destes restaurantes, falo com base no que leio e, principalmente, da consulta das suas ementas. Parece-me visível que praticam uma cozinha pessoal, inovadora e criativa, mas sem rotura radical com “a cozinha da família” e também uma cozinha articulada com o mercado local e os seus melhores produtos.

É claro que não há uma divisão bem definida entre estas situações. No que respeita à maior ou menor proximidade entre a cozinha tradicional e a cozinha elaborada, há muitas distâncias, em boa parte dependentes da capacidade esperável do cozinheiro. Um cozinheiro amador mas com criatividade, bom gosto, experiência e técnica, embora não vá jogar na primeira divisão de campeonatos de cozinha, pode ganhar o aplauso real de amigos para quem cozinha, pode ter a gratificação de ensinar a outros, pode acariciar o ego por ter conseguido um bom resultado. As mais das vezes, não é preciso muito: um aperfeiçoamento técnico, melhor jogo de condimentos, um toque pessoal percetível. Verão depois porquê, vou exemplificar com o vulgaríssimo fricassé.

Toda a gente sabe o que é um fricassé: um guisado cujo molho é engrossado com gemas de ovos. Em Portugal, é mais vulgarmente de galinha ou frango, mas também de pescada. Mais raramente, como era hábito açoriano da minha família, também de língua ou de almôndegas de carne ou peixe. Na cozinha tradicional francesa, para além da galinha, a vitela, mais raramente pombo ou borrego. Tradicionalmente, e no essencial, a galinha cortada aos pedaços é alourada em refogado e guisada, por vezes com vinho branco, temperada com sal, pimenta branca, louro, eventualmente salsa. O molho, amornado, é engrossado com gemas de ovo e sumo de limão, habitualmente adicionados diretamente ao molho, sendo servido com salsa picada. 

A minha versão pessoal respeita o essencial da tradição e é influenciada por uma preparação francesa semelhante e também tradicional, a “cuisson à blanc” ou a “poulette”. Deixo as quantidades à vossa experimentação. A galinha ou frango do campo é marinada em vinho branco, alho, louro, sal, pimenta preta e pimenta da Jamaica, com um raminho de salsa e uma haste de tomilho, atados. Num tacho largo, com tampa, a lume brando, salteio em manteiga (ou, por razões de saúde, em margarina dietética de cozinha) chalotas cortadas ao meio ao longo do comprimento e retiro-as antes de alourarem demasiado. Uso essa gordura para alourar os pedaços de galinha durante um ou dois minutos, a temperatura mais alta, junto a marinada coada, tapo e deixo cozer, a lume baixo. Eventualmente, se necessário, removo gordura a mais, para garantir boa mistura final do caldo com a base de fricassé. Um pouco antes de pronta, volto a juntar as chalotas e removo as ervas. 

Entretanto, já está preparado o fricassé, aquecendo em banho-maria fundo de galinha e ligando-o com vara, até espessar bem, a gemas misturadas com nata, sumo de limão e noz moscada. Fazê-lo à parte permite controlar a proporção entre o fricassé e o molho. Antes de servir, passo a galinha para a travessa, desligo o lume, deixo arrefecer o molho durante poucos minutos, junto o fricassé e levo a fervilhar, mexendo bem com a vara para misturar bem, a lume muito baixo. Derramo na travessa e polvilho com salsa picada.

Note-se que, ao que julgo, a minha variante não desvirtua o prato e as diferenças são criteriosas e valorizam. As chalotas, reintroduzidas no fim, dão elegância e contraste, a nata suaviza o fricassé, o tomilho liga bem com a salsa tradicional, sem a demasiada variedade do ramo de cheiros, a pimenta da Jamaica é imagem de marca da minha cozinha e a noz moscada liga bem com o fricassé. Às vezes uso só, como erva, o estragão, aquela que, para meu gosto, melhor vai com preparados de gemas.

Há dias, encontrei na “net” receitas de fricassé de dois chefes portugueses conceituados, conhecidamente com estilos bem diferentes, à semelhança, como disse acima, de Alain Roux e de Heston Blumenthal. Vítor Sobral prepara um fricassé de frango muito clássico, quase minimalista em condimentos, sem refogado. A ligação de gemas é feita à parte, como indiquei, mas aqui é que aparece a mestria e a invenção (presumo). 

O líquido a que, em banho-maria, Sobral junta as gemas para ligar como base do fricassé não é um tradicional fundo, como eu e quase toda a gente usa mas, nessa receita, é uma mistura de sumo de laranja e polpa de maracujá. Uma pequena diferença que faz toda a diferença e da parte de um cozinheiro que não se destaca muito pela faceta de invenção ou provocação na sua cozinha. Assim, vejo bem este prato numa ementa de restaurante de Sobral.

Mais estranha é uma receita de José Avillez de pescada de fricassé com espargos e finas fatias de presunto. Fora a combinação de ingredientes, menos usual, a técnica é absolutamente a tradicional, na versão de ligação de gemas feita à parte. A pescada é cozida com vinho branco e ervas aromáticas. Retirada a pescada quando quase cozida, parte do caldo, coado, é usado para preparar à parte o fricassé, ligando com as gemas e sumo de limão, voltando-se a juntar ao resto do caldo e à pescada arranjada. 

Nada, portanto, que faça lembrar a cozinha muito original e inventiva de Avillez. Ao contrário do que disse de Sobral, não vejo esta pescada de fricassé numa ementa de Avillez (ou melhor, talvez sim, lembrando-me do seu bacalhau à Brás do Belcanto e, antes, do Tavares). Quando voltar ao Belcanto (isto é, quando Gaspar deixar) talvez haja um fricassé verdadeiramente inovador e surpreendente.

Os bons chefes também sabem cozinhar simples e de forma tradicional. É claro que estas duas receitas não retratam exatamente a sua cozinha. São para o grande público, que não se interessa por alta cozinha que não consegue reproduzir. Além de que as receitas mais exemplares da criatividade do chefe são segredo de negócio do restaurante e não se partilham na “net”. Essa partilha, anunciada como contributo para o gosto alheio de bem comer (ou como manifestação de alguma vaidade…), é para amadores com pretensões. Não é desculpável? Sempre é melhor do que se divulgarem como maravilhas receitas de “socialites”, masculinas ou femininas. Saia um fricassé à Lili Caneças!

terça-feira, 7 de maio de 2013

Luso-exageros

Há uns anos, comecei a ouvir falar do melhor bolo de chocolate do mundo, feito em Lisboa. Devo dizer que, para meu gosto, não chega nada a um que o meu filho faz muito bem, segundo receita obscura cuja origem já esqueci. Mas adiante. Achei graça ao tal epíteto, que tomei como brincadeira e golpe publicitário. Se não fosse, qualquer meu aluno de “racionalidade científica” diria candidamente que tal coisa é impossível porque ninguém consegue comer e avaliar comparativamente todos os bolos de chocolate do mundo.

O mal é que a moda pegou e se tornou irritante e tonta, até porque me parece ser tratada a sério. Em escala geográfica mais reduzida, fazem-se provas para se escolher o melhor pastel de nata de Portugal ou o melhor bolinho de bacalhau. Da riquíssima variedade de cozinha tradicional, extraem-se umas curtíssimas sete maravilhas.

Até coisas mais eruditas, a justificar maior cuidado gastronómico e técnico, são objeto do mesmo mau trato. Já aqui tentei desmontar o caso da cataplana, tida por alguns, incluindo chefes conceituados, como o melhor instrumento de cozinha do mundo. O que dizer dos cestos chineses de cozer a vapor, das “daubières” francesas, do “caquelon” suíço, do “wok”, da "paella", até, em Portugal, a púcara ou o alguidar terceirense? Nenhum é melhor em absoluto, foram apurados foi como o melhor instrumento para um uso específico.

Mais intensa é a campanha que nos martela com “temos o melhor peixe do mundo”. Não faço ideia se sim ou se não. Já comi peixe em muitos lados e sei, por exemplo, que o peixe de Cabo Verde, que comi o ano passado, era em geral muito bom. Mas é melhor ou pior do que o nosso o peixe argentino, chileno, japonês, alasquiano, etc., só para falar de águas frio-temperadas, mais comparáveis com as atlânticas? Não faço ideia, nunca comi. E duvido que nunca o comeu o Dr. Marinho E Pinto e os variados jogadores de futebol e quejandos que juram no jornal que “temos o melhor peixe do mundo”. E que peixe? O que é descarregado nas nossas lotas mas pescado sei lá onde? O peixe apanhado em águas pouco fundas, em pesca artesanal, ou apanhado em mar alto? O do continente ou o dos Açores? O da plataforma continental portuguesa ou da galega ou cantábrica, que afinal se continuam umas às outras?

Outra coisa melhor do mundo que parece indiscutível que temos é o queijo. Ainda há pouco tempo me diziam que a melhor tábua de queijos franceses ou suíços não chegava a um portuguesíssimo queijo bem rústico de ovelha, curado. Nem sequer um Serra ou um Azeitão. Não é de estranhar, quando a nossa cultura gastronómica quanto a queijo é reduzida e até tão frágil que aceita hoje a moda de péssimo gosto do queijo como entrada em vez de sobremesa. E já nem falo da incapacidade geral de distinguir, por exemplo, um Topo de um Rosais ou um 3 meses de cura de um 7 meses. Claro que estou a falar de S. Jorge, o queijo português que, para mim (admito que é questão de gosto), é o que melhor figura faz numa tábua internacional de queijos de qualidade.

E também não é que temos dos melhores vinhos do mundo? Vá lá, o "de" sempre faz diferença. Um dia destes vamos ter a melhor batata do mundo.

Agora, a sério, o que nunca imaginei foi o que me aconteceu há dias e me motivou para escrever esta nota: comprei num hipermercado uma coisa que, vi ao chegar a casa, dizia garrafalmente no embrulho: “o melhor pão de forma do mundo”.