terça-feira, 27 de agosto de 2013

Oh, coisas simples mas tão boas!

Tendo falado de funge cozinhado para um jantar angolano, há mais alguma coisa a dizer, primeiro quanto ao enquadramento, depois quanto a relações Açores-Angola. Foi jantar caseiro, ocasião privada mas, apesar de ser boa norma na net termos sempre presente que “nobody gives a shit for what you had for breakfast today”, há ocasiões especiais.

O júnior (já não tanto como isso) da minha morena veio de Harvard, a férias, com nada menos do que 10 amigo(a)s. Deixou a nosso cargo um jantar de acolhimento, sem prejuízo de se ter esmerado na recepção aos amigos e fazê-los sentirem-se bem ao jantar. Com os amigos, eles, mãe e eu, avós, éramos 16, dimensão já de restaurante, a que valeu a enorme descontracção – mas muito educada – dos seus amigos americanos, que se instalaram por tudo onde era cadeira ou banco, até à volta do meu fogão na mesa central da cozinha. 

O pedido foi de cozinha angolana, ainda próxima dele, e sempre de excelente confecção pela mãe. Protestei: e então açoriana, já não valho nada? Falou-se logo no que toda a sua família gosta mais como meu petisco. Fiquei receoso: americanos a gostarem de polvo? Mais houvesse! Do lado da mãe, a sua muamba com funge, também outro sucesso. Dêem a um americano educado qualquer coisa a fugir da "fast food" e vão ver como ele aprecia.

A merecer destaque, duas coisas muito simples, ambas com base em amendoim e com relação com as minhas ilhas. Como um dos aperitivos, pasta para barrar, a quitaba angolana. É simplesmente manteiga de amendoim, a pasta cremosa obtida pisando bem o amendoim no pilão, hoje moendo bem com máquina de lâminas. Depois, só acrescentar piripiri (gindungo) a gosto. Mas também é a manteiga de amendoim (peanut butter, “pinabara”) tão cara aos emigrantes açorianos, que eles também por vezes temperam com “pimenta da terra”, a malagueta açoriana. Angolana e açoriano, encontros que a vida dá.

Entre outras sobremesas, uma coisa simplesmente deliciosa, a não permitir controlo de uma porção após outra, a paracuca angolana. Amendoim não torrado, açúcar e água, em partes iguais, muito bem mexidos ao lume até caramelizar, passados para um tabuleiro a arrefecer e a separar os grãos. Mas não é que nos Açores da minha meninice já eu me deliciava com os amendoins doces (ou de sobremesa), exactamente iguais? Ou também amêndoas, feitas da mesma forma. Como variante, gostava muito das amêndoas com chocolate da minha avó, de receita mais elaborada (quase uma página A4 escrita pela minha mãe), incluindo leite, chocolate e café, mais algum tempero. Estas ficam na minha reserva de coisas de família, agora para desafio de uma grande doceira que eu cá conheço.

domingo, 25 de agosto de 2013

Bom senso e bom gosto

Como sabe qualquer frequentador de restaurantes que se prezem – não falo de restaurantes de bairro ou de tascas – o vinho, depois de aberto, é dado a (a)provar a quem o encomendou, em geral o convidante (ou o homem numa refeição de casal) ou um convidado a quem ele pediu para se encarregar da escolha do vinho.

O que se pretende é que, antes de o vinho ser servido a todos os comensais, se verifique se ele está em boas condições. Só isso e nada mais! Mesmo um bom vinho, por mau engarrafamento, por má conservação, por má rolha, etc., pode estar passado, ácido, oxidado, com rolha, turvo ou com depósitos. Pode também não estar a boa temperatura, embora isto já dependa um pouco mais do gosto do cliente. Um simples exame visual e a prova de um pequeno gole de vinho, eventualmente com momento rápido de avaliação do aroma, dizem-nos logo, em geral, se o vinho está ou não em condições.

No entanto, quantas vezes se assiste ao espectáculo caricato de a abertura de uma garrafa dar origem a toda uma encenação de prova enológica. Pessoas muito entendidas, mas com cuidados não se vá sujar o Armani, agitam longamente o copo, para a esquerda e para a direita, levantam-no à altura dos olhos e voltam a mirar. Inclinam-no para ver se escorre “glicerina”. Enfiam o nariz e dão uma grande fungadela. Depois a prova, com estalos de língua e revirar da bochecha, a antecipar o “fim de boca”. Entretanto, o escanção à espera, com a garrafa na mão. Finalmente, ridículo dos ridículos, longa conversa com o escanção, a discutir toda a análise ultracompetente que fizeram do vinho.

Imagine-se que o cliente, depois de tão aprofundada análise, concluisse que o vinho não era de seu gosto, mesmo que em perfeitas condições. Teria o direito de o devolver, como teria se o vinho estivesse estragado? Por isto, o espectáculo dos nossos “especialistas” não faz sentido, pois não corresponde, com a elegância da simplicidade, ao que estritamente se pretende: garantir o estado do vinho. O resto, a sua apreciação, a conversa sobre ele, o acompanhamento da sua aprendizagem de maturidade ou das suas travessuras ao longo da refeição, é matéria de boa piapação de amigos. 

Tudo isto é mais um exemplo do insuportável novo-riquismo que por aí anda, e que até parece crescer em proporção directa com a crise. Será isto essencialmente português? Por exemplo, será que podemos assistir a tal espectáculo por parte de um francês educado? Para tranquilização das feridas no meu amor pátrio infligidas pelos jotinhas e betinhos locais, tive há dias a comprovação de que uma boca francesa já não é o que era.

Estávamos no bar-esplanada muito agradável (recomendo) de um bom hotel à beira-Tejo e instalou-se ao lado um casal francês. Encomendada uma garrafa de tinto, não é que assisto, da primeira à última cena, ao tal espectáculo? Pior foi que a conversa com o empregado nem foi de exibição provinciana, de competência enófila de frequentador do equivalente dos pedrosianos (segundo a Guidinha, lembram-se?) restaurantes de jaquinzinhos com natas.

O francês que faria envergonhar qualquer mestre francês nas artes de bem comer e beber (mesmo em tascas) protestou foi que o vinho não estava em condições ideais e pediu gelo. Depois deve-se ter arrependido e decidido aquecer a garrafa, porque de todas as vezes que enchia o copo segurava a garrafa em cima, junto ao gargalo, em vez de segurar por baixo, com os dedos à volta do fundo, como sabe qualquer bom amador. Mesmo assim, provavelmente achava que ainda não estava bem quente, porque segurava o copo pelo bojo, em vez de pelo pé.

Julguei que o espectáculo ficava por aí, mas o belo fim de tarde prometia mais. Noutra mesa, uma turista, palpitou-me que americana snob, com aquele ar característico de pateta convencida que pode ter uma intelectual americana de universidade de segunda e especialista em mistura de eurofilia tonta (à protagonista de Woody Allen) e de politicamente correcto.

Fez exactamente o mesmo, mas com dois acrescentos de morrer de rir. Primeiro, é que não ficou satisfeita com a primeira prova e pediu ao empregado para lhe servir mais vinho a provar. Isto repetido quatro vezes! Garanto que não estou a inventar. O outro acrescento vai deixar os leitores entre o riso e o choro: o vinho era um moscatel de Setúbal, generoso. Só faltou aquela cena toda com um bom Porto vintage!

À margem: não vejo hoje o escanção começar por provar ele próprio o vinho, andes de o sujeitar à aprovação do cliente, como ensinava a escola francesa. Há bastantes anos, era o uso corrente de um restaurante que nem era de luxo, mas que tinha, para mim e muita gente, o melhor serviço de vinho, a Isaura (a começar pela carta de vinhos, um tratado). O escanção, o célebre Sr. Costa, aconselhava o vinho de acordo com a escolha dos pratos, trazia-o no cesto próprio, abria-o como deve ser, observava-o à transparência, contra uma vela e decantava-o se necessário. Apesar de já não ir lá há bem trinta anos, lembro-me de que provava ele próprio o vinho antes de perguntar se o cliente o queria também fazer. O mesmo se passou comigo num restaurante três estrelas inglês onde jantei há pouco tempo (a convite…). Era eu que tinha escolhido o vinho e, respondendo ao escanção após ele ter provado, declinei a proposta, como sinal de reconhecimento da sua capacidade de garantir o estado do vinho.

À margem, 2: Sobre garantia de estado do vinho, lembro-me de um episódio que me mereceu crítica. Como se sabe, o hotel do Buçaco tem uma excelente garrafeira, incluindo brancos antigos, que envelhecem como se fossem tintos. Uma das preciosidades, dos vinhos mais velhos do hotel, é mesmo um branco, de 1944. É caríssimo, só mesmo para ocasiões excepcionais. Há anos (os tempos não eram tão maus como agora), três amigos nascidos em 1944, eu incluído, resolveram festejar o aniversário no Buçaco, bebendo um vinho da nossa idade. Fiquei surpreendido por o hotel ter informado que não garantia o estado do vinho e que nós é que éramos responsáveis pela sua prova pré-consumo, mas pagando o preço da garrafa se não estivesse boa. Considerei isto inadmissível. Mesmo admitindo que isso se reflectisse no preço de venda de cada garrafa, é o hotel que é responsável por experimentar periodicamente o vinho e retirá-lo da lista se começar a haver um número significativo de garrafas estragadas.

P. S. (25.8) – Esqueci-me de dizer que, no primeiro caso, o vinho era tinto, de marca que não consegui ver. Também que depois o beberam com suchis, escolha que não seria a minha, mas que é questão de gosto (embora também de técnica – tinto com coisa suave como suchi duvido de que fique bem).

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Funge

Há quem, frequentando alguns restaurantes de cozinha africana ou valendo-se de memórias antigas, considere que o funge é apenas o acompanhamento típico da muamba (ou muambas, sendo a mais tradicional de galinha, mas tendo eu comido também, com frequência, a de peixe). Quando me refiro a memórias antigas não falo dos muitos tipos e níveis de mestiços ou aos “brancos de segunda”, que sabem da poda, mas sim aos metropolitanos que foram à guerra mas que, como eu próprio, não aproveitaram bem para conhecer todo o interessante património culinário de Angola. Funge vai com muito mais, desde logo outros pratos angolanos como o calulu ou o musongué.

Começo pela nomenclatura. Funge é uma papa de farinha e água, de diferentes farinhas. Fuba é a farinha. Sem mais nada, subentende-se que é de mandioca ou farinha de bombó. Mas há outras, especialmente a fuba de milho, com que se faz o funge de milho. E atenção, muito importante: a fuba ou farinha de mandioca com que se faz o funge não é a farinha de pau, finamente granulada, que se torra para polvilhar pratos já cozinhados ou para fazer a farofa. É uma farinha muito fina, como a nossa farinha de trigo e peneirada. Esclareça-se também outro termo que usei, bombó. É a mandioca seca ao sol, de que se faz a farinha, não da mandioca húmida tirada da terra.

Nunca gostei muito de funge (de fuba de mandioca), por ser um pouco insípido e ter consistência grudosa. A quem partilha o meu (des)gosto recomendo o funge da minha sogra, uma especialidade. E nem é invenção de “desdenha-o-preto”, é de quem desde menina, lá no Golungo Alto, aprendeu todas as artes das mais velhas. O funge da família da morena tem mistura de fuba de bombó e de fuba de milho e não deixa de ser genuinamente angolano.

Ainda ontem o fizemos, a várias mãos. Muito diferente em técnica do que eu via no Quissalongo, à beira da Pedra do Feitiço dos fuzileiros. Aí era a panela sobre o lume feito no chão, a farinha e a água bem mexidas pelas mulheres, com uma colher de pau muito forte e de cabo longo, para elas trabalharem quase de pé, com a criança às costas. Agora, é com batedeira.

A receita que se segue é indicativa e foi feita para 12 pessoas. 
Peneirar bem as farinhas. Aquecer, entre morno e quente, 8 dl de água e levar à fervura 2,5-3 l de água. Diluir na água morna 300-350 g de farinha de milho, acrescentada aos poucos. Juntar à água que já está a ferver, mexendo. Juntar em porções a farinha de mandioca, cerca de 400 g de farinha de mandioca, enquanto se mistura sempre bem com batedeira e se mantém lume médio. Quando bem homogeneizado, pode-se deixar de bater. Aguardar até fazer grandes bolhas. Está pronta.
E só para muamba? Nada disso. É um óptimo acompanhamento para qualquer prato com bastante molho. Uso-o com diversos guisados e deixo o desafio à vossa imaginação. Com uma última nota: a cada garfada (ou à colher), com o funge bem embebido em molho, a dose é obrigatoriamente a necessária para encher a boca, saborear e engolir, nunca mastigando! Também pode dar um toque pessoal. Por exemplo, incorporar no fim amendoim ou caju torrado e picado grosso. Ou misturar quizaca (folha de mandioca, que se vende em lata nos supermercados) escaldada e picada grosso.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Olha-se e experimenta-se

Já muitas vezes, e até no prefácio do meu livro Gosto de bem Comer, deixei homenagem à minha principal raiz gastronómica, a minha avó Adélia, de solteira Adélia Guiomar Fagundes, família de pequena aristocracia rural, “sociedade bem” praiense em que o património culinário era muito considerado. Simplesmente, a minha avó ia muito mais longe, porque foi uma grande criadora, principalmente em pastelaria, com fama por toda a ilha.

Mesmo em coisas icónicas, como a alcatra terceirense – cuja receita de família, hoje minha e dos meus irmãos, julgo não ter rival, e os três a fazê-la muito bem, em variante rica de carne e vinho de 1ª, com muita técnica exigente – aventurava-se por sugestões das amigas, de que tinha de “dar fé” [*], nem que fossem, que me lembro, uma alcatra com linguiça e outra com canela, com a minha mãe a repreender, “lá se foi tão boa carne”.

O melhor exemplo, lembro-me tão bem, foi quando o meu pai, um dia, comprou uma novidade, línguas de bacalhau, que não se vendiam nos Açores. Como fazer aquilo? Para a minha avó, nada mais fácil. Língua é língua. Na nossa família, língua de vaca é de fricassé, e assim ficou a receita familiar de línguas de bacalhau em fricassé. Curioso é que, muitos anos depois, vim a descobrir que é uma forma, embora não muito vulgar, de as cozinhar na cozinha burguesa continental.

A que vem isto? Aqui na cidade ao lado, Amadora, hoje mais encantadoramente de pretos que de brancos, mesmo do outro lado da estação, há uma boa mercearia só de produtos exóticos, africanos, brasileiros (anote-se: o único sítio em que encontro hoje carne seca para a feijoada) e agora até ucranianos. Há dias, havia uma coisa que não conhecia, o jiló. Parece quiabo, mas é redondo e mais curto.

Como fazer aquilo? Hoje tenho a net, que a minha avó não tinha, mas nenhuma receita me convenceu, embora a leitura tenha sido útil para ficar a saber de algumas características da coisa (por exemplo, como o quiabo, precisa de demolha). Aqui fica então o estufado de jiló com farofa.
2 pessoas. 500 g de jiló, 3 dentes de alho, 2-3 c. sopa de azeite ou óleo, 80 g de charque (ou bacon), 1 dl de leite de coco, coentros, sal, pimenta, piripiri. 1 cebola, 150 g de farinha de mandioca grossa, 4 c. sopa de óleo de palma, 2 c. sopa de leite, 2 ovos, sal, pimenta. 
Cortar os jilós em quartos e deixar libertar o “ranho” em várias mudas de água quente. Se se usar charque (carne seca), demolhar. Alourar o alho laminado no azeite ou óleo e saltear o jiló, cortado aos quartos. Molhar com o leite de coco, temperar e estufar. Refogar em óleo de palma a cebola picada e saltear com a mandioca entretanto amolecida com leite. Misturar com os ovos batidos, incorporando a lume baixo e temperar.
[*] O “dar fé”, expressão açoriana para se conhecer alguma coisa pela primeira vez, era coisa muito característica da minha avó. Muitas expedições de dar fé combinava ela coma Ascensão, memória querida da minha casa de criança. E quantas vezes a minha avó, já toda branca, se queixava de que o genro tão amigo ainda não a tinha levado a “dar fé” do que era um jogo de futebol? Para o meu D, sempre reservado e meu grilo criticamente falante, eu estou a violar a nossa privacidade de família, mas eu sei que isto também lhe puxa pela lágrima.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Éme, albacora dos Açores é qu’é bom

Isto hoje evoca-me amigos. Um deles passou por tempos em que, solitário, pouco mais lhe apetecia do que abrir uma lata de atum para o jantar. Uma merceeira amiga e com pena deu-lhe a conhecer o atum Santa Catarina, dos Açores. Do sacrifício da conserva, passou ao gosto de excelente acepipe.

Outro amigo meu viu em qualquer sítio que o LIDL vendia com a marca NiXe atum anunciado como açoriano e ofereceu-me uma lata (de peso invulgar, 1 Kg de peso líquido). Lembro-me também de um “post” de blogue que dizia o mesmo, mas agora não o consigo localizar. É possível que tenha sido assim no passado, mas o atum que me veio do LIDL é de origem catalã.

Já houve tempos em que isto seria importante, pela dificuldade de obter no continente atum açoriano. E vale a pena? Estou certo de que sim. É que nem é a tal coisa subjectiva (ou publicitária) do “melhor do mundo”, é questão de diferença consensual. Por exemplo, é objectivo que o atum açoriano é vendido logo nos seus mares aos navios-fábrica japoneses, país onde vivem os considerados maiores e mais conhecedores apreciadores de atum.

Com a mesma classificação de género, há espécies diferentes de peixe. Deixemos por um minuto o atum. Já referi porque é que qualquer pessoa de gosto nem sequer obrigatoriamente muito apurado distingue o excelente chicharrinho açoriano do seu irmão carapau continental. São espécies diferentes. No continente, o carapau vulgar é o Trachurus trachurus, branco. O carapau das ilhas é o azulado, Trachurus picturatus, com sabor claramente diferente. Os pescadores continentais conhecem-no como carapau negrão ou carapau do alto, mas não era vulgar vendê-lo. Ultimamente, vê-se esta espécie à venda como “carapau azul”. É pena que muito grande, comparado com os “charrinhos” açorianos.

Da mesma forma, o atum, com muitas variantes todas pertencentes ao género Thunnus, com diversas espécies, mas principalmente com diferenças de qualidade relacionadas com o habitat físico e biológico. O atum mais pescado, nomeadamente no Atlântico e no Mediterrâneo, é o rabilo (assim dito nos Açores), rabilho (no Algarve) ou “bluefin” (T. thynnus), também pescado nos Açores O atum açoriano reparte-se também entre outras espécies, nomeadamente o muito apreciado patudo (T. obesus), considerado o melhor para “sashimi” e o atum voador (T. alalunga).

É principalmente este último, o atum branco, que se pesca nos Açores e a que se chama lá o atum albacora (que não é a mesma espécie que o T. albacares, tropical, "albacore" em inglês ou “yellowfin”, que não existe nos Açores). É o atum açoriano mais conhecido e de melhor qualidade, aquele que os navios japoneses compram no mar alto às traineiras açorianas. É a sua característica de voador que permite a pesca tradicional de “salto e vara”, com isco vivo de peixes pequenos (daí a falta de uso vulgar da sardinha, desviada para isco para o atum). Ao contrário, por exemplo, do Algarve, nunca se pescou atum nos Açores por cerco. Diferença importante é que a pesca de salto e vara é totalmente sustentável biologicamente, ao contrário da pesca de rede, lesiva até para golfinhos.

Passando às conservas, discuta-se os seus tipos. A forma tradicional de enlatar o atum é em flocos, comprimidos na lata. A maior relação entre peso e volume torna esta produção mais atraente para um consumo familiar. Sucedeu-lhe o atum em posta, mas ainda facilmente lascável e, mais modernamente, os filetes de atum, que mantêm a textura original da carne.

Quanto ao líquido, pode ser, como tradicionalmente na maior parte das nossas conservas, um qualquer óleo alimentar, mais recentemente, e por moda do dito, o azeite e, último método, a simples água. Neste caso, como um tipo de conservas da fábrica de S. Catarina (e também da Cofaco – ver adiante), até pode ser conserva em água, embalada em frasco de vidro. A todos títulos excelente!

Até há poucas décadas, era difícil encontrar atum dos Açores no continente. De vez em quando, mas com irregularidade, via à venda conservas Corretora, a empresa de conservas mais importante dos meus tempos de criança – até com uma gama muito diversificada e inovadora, que passava por legumes, almôndegas e pequenos hambúrgueres, muito bem temperados com pimenta e noz moscada, que faziam as minhas delícias.

Uma conserva característica da Corretora, que se vende cá nos hipermercados, é a de atum temperado, muito bom como base de pasta para aperitivos ou para barrar sandes. Se quiserem fazer a vossa própria base, partam de atum, cebola, tomate, pimento, malagueta e açaflor (comprem numa das lojas açorianas; não substituam por curcuma, o açafrão amarelo, indiano) e vão adiante segundo o vosso gosto e imaginação.

Por volta do 25 de Abril, formou-se nos Açores uma grande empresa conserveira, a Cofaco. A partir daí, ou pelo menos na última dúzia de anos, deixou de ser difícil encontrar atum dos Açores (embora, para mim, seja o menos bom dos que conheço): com marca Bom Petisco, está em todos os supermercados. A Cofaco também outra marca, Pitéu, mas de conservas de outros peixes ou de atum não açoriano.

Finalmente, a minha preferida, Santa Catarina, antes uma pequena fábrica em S. Jorge, agora com cada vez maior sucesso. Para mim, as melhores conservas açorianas, mas admito que é questão de gosto pessoal. Muito menos vou dizer que são as melhores do mundo. Começaram por se vender nas lojas dos Açores em Lisboa mas hoje já as vejo com presença permanente em todas as grandes superfícies.

Da gama variada da Santa Catarina destaco a conserva de ventresca. Com o senão de não ser nada barata (cerca de 3,7 € por 120 g líquidos), é a maior delícia de entre os atuns, nomeadamente os atuns açorianos. A ventresca é o nome da barriga do atum, a parte mais nobre e rica, que se desfaz em lascas firmes. Tem cor rosa pálido e sabor muito suave. Com o nome de “toro”, é a parte do atum mais apreciada no Japão e, forçosamente, a mais cara. Os peritos japoneses dividem-na em “kama toro”, uma pequena peça muito gorda e com aspecto marmoreado e em "toro" propriamente dito, dividido em três níveis,  medium (chutoro), regular (toro), e supremo (otoro). O meu conhecimento de atum não vai tão longe que me permita dizer o que é, para um especialista japonês, a ventresca de Santa Catarina.

Terminemos com a culinária, a começar pelo atum fresco. Note-se a diferença terminológica. Vulgarmente, atum é o de conserva. Pelo menos em S. Miguel, o atum fresco é mais frequentemente chamado apenas de albacora. Apesar da importância da pesca do atum e da indústria conserveira (ou por causa disso), a culinária da albacora fresca não é muito variada. Quase que se limita a variantes do bife frito (não grelhado), com molhos diversos, de vilão, cebolada, tomatada, ou de vinha-d’alhos e assado no forno.

Já o atum de conserva tem largo uso na cozinha burguesa. Desde logo “à la minuta”, aberta a lata, passado o atum para o prato com batata cozida e ovo cozido, tudo regado com azeite e vinagre ou qualquer molho mais imaginativo, a gosto. Mas, de longe, a utilização mais vulgar é com salada russa e maionese, o que, no meu tempo e como cá, se chamava só maionese de atum (tal como se fazia também com peixe cozido, galinha e, em dia especial, com salmão de lata (caríssimo) e, mais especialmente ainda, com lagosta. 

Na minha casa de criança havia ainda outras receitas de confecção frequente: bolo de atum, arroz frio com atum, moldado e revestido a maionese, salada de atum de cebolada, com batatas, etc. Também eu tenho muitas. Há dias, fiz uma salada simples e rápida, para a época, que, ao contrário das minhas regras, publico por irresistível necessidade de homenagear os pescadores de albacora da minha terra. Aqui vai a salada verde-rubra de atum.
Para duas pessoas em dieta. 1 lata de filetes de atum Santa Catarina em azeite, 1 curgete, 1 tomate grande, 1 maçã, 50 g de miolo de noz. Molho: 1 c. sopa de vinagre balsâmico, 1 c. sopa de mel, 1 pouco de massa de malagueta. Azeite, flor de sal, pimenta preta. Cortar a curgete em rodelas finas, sem descascar. Cortar o tomate em metades, esvaziar das pevides e cortar cada metade em rodelas finas. Alourar as rodelas de curgete em azeite, sem queimar, virando-as a meio. Temperar e reservar. Levar ao forno o tomate, regado com um pouco de azeite e temperado, até assar ligeiramente, sem amolecer demais. Deixar arrefecer e empratar ambas as coisas, lado a lado, em dois semi-círculos. Cobrir com a maçã aos cubos pequenos e as nozes partidas grosso. Por cima os filetes de atum, escorridos. Regar com o molho, preparado a cru.