quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Abóbora à Marcus

Um prato exemplar do Marcus, de que falei em nota anterior, desafia toda a técnica e toda a capacidade do cliente para avaliar o que ele é de “contranatura” em composição de sabores. Mas sabores do mesmo material, a abóbora, o que é particularmente difícil, porque lida com diferenças subtis, apenas derivadas da preparação. Também conhecia um exercício semelhante com couve flor, de Raymond Blanc. É assim que se justificam as estrelas. É o máximo grau oposto à tendência, muitas vezes disparatada, de combinar coisas diferentes, mesmo com contrastes pesados e desarmónicos. A menos que se queira comer Stockhausen…
O prato, uma das entradas, baseava-se numa abóbora italiana que não conheço cá, a delica, muito suave e perfumada. O principal componente era a abóbora esmagada a rechear agnolotti (uma massa fresca piemontesa semelhante aos ravioli). Vem com creme da abóbora, crocante de pevides e um pouco de pimenta de Espelette (ainda não encontrei em Portugal), a rodear.

Maravilhoso! Vou tentar reproduzir, mas não sou Marcus Wearing. Em todo o caso, pareceu-me adivinhar os ingredientes e temperos. Mas não digo, até dar prova a quem partilhou connosco o jantar e cá estarão no Natal. E também o meu alter ego gastronómico, que gosta de nos presentear com jantares à ... Da próxima, serei eu a tentar fazer um jantar à Marcus, e sem ter ajuda de receitas. Só a minha excelente memória gustativa e as fotografias.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Trio

Como disse na nota anterior, fui há dias a um restaurante que não conhecia mas que anda muito celebrado, o Trio. Pequeno, simpático, bem decorado mas não muito bem amesendado (loiça rústica), com excelente serviço de mesa, e com cozinha chefiada por Manuel Lino, anteriormente no Tabik.
Manuel Lino tem imaginação e aprendeu técnicas, talvez sem as dominar, mas, principalmente, tem “mão muito pesada”. Nas combinações, nos sabores, nos contrastes. É pena que, possivelmente, confie demasiado no seu gosto. Um bom restaurante tem uma grande equipa de cozinha, com chefes adjuntos, que se constituem em júris de prova, por vezes a fazer com que um prato demore longo tempo a ser afinado até à versão que o cliente prova. Um restaurante pequeno não dispõe desta facilidade, mas pode fazer refeições de prova, com convidados de gosto gastronómico diverso, totalmente abertas à crítica. É neste sentido que escrevo esta nota, já que não posso discutir face-a-face com Manuel Lino. Mas dar-lhe-hei conhecimento desta crítica, publicando a sua eventual resposta.
Como amuse bouche, vem um dim sum de alheira. Pesado, com a alheira a não ligar com a delicadeza da massa chinesa. Um simples mas bom couvert, só de dois pães (queria-se mais) com um excelente azeite (embora eu não seja nada apreciador do pão molhado no azeite, a não ser com flor de sal, que faltava) e uma boa manteiga de alho.
Depois, um crack industrial de camarão com um pouco de carapau fumado e gel de pimentos. Cumpre bem, sem maravilhar.
Pedimos o menu Trio, de 5 pratos, a 50€ (mais 20€ para bebidas, que não pedimos). Imaginativo, equilibrado, mas infelizmente a não satisfazer as papilas. Talvez para quem queira apenas modernizar e ir à moda, mas com o peso e rusticidade tradicionais da nossa cozinha.
Primeiro prato, beringela assada com gema curada e salada de ervas. Tudo bem, exceto o inaceitável salgado da gema curada (passe a ideia de bom conhecimento de usar gema curada). Faltava um toque agridoce ou de queijo (cabra?) a cortar a banalidade dos sabores.
Batata salteada com essência de iscas. Boa ideia, iscas sem elas. Mas sabor muito forte  (embora muito bem temperado) do molho das iscas e cebolas de curtume não lavadas, muito ácidas.
Corvina com mousse de sardinha. A corvina excelente, embrulhada em couve coração. Ao lado, couve à caldo verde desidratada, agradável no crocante mas com sabor exagerado. Tudo com uma mousse de sardinha só por si muito boa, mas que dava contraste forte e exagerado a um prato delicado.
Ensopado de borrego. bem desconstruído, a peça de borrego (perna) bem estufada, no ponto e ida ao forno com crosta de pão, com um picado de tomate no molho do ensopado. O prato mais conseguido.
Cremoso de abóbora, crumble de sésamo negro e gelado de natas e especiarias. faz lembrar a ligação tradicional de requeijão e doce de abóbora.  O cremoso saboroso mas com grumos, o gelado mais o crumble inaceitáveis de excesso de tempero, com predominância de pimenta preta 8que até uso muito, mas com critério e medida).
Há uma base de partida promissora neste restaurante mas faltam muitas correções e, principalmente, um golpe de asa. E que a refeição justifique o preço.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Estrelas

Já tenho ouvido coisas contraditórias e pouco abalizadas sobre classificações de restaurantes. Admito que também às vezes fico perplexo pelas disparidades de classificação, por exemplo entre o guia Michelin (estrelas) e os Top 50.
Que é tudo forjado e jogo de cumplicidades. Que se premeia a extravagância e a moda. Que só um bom cozinheiro percebe a diferença. Que muitas vezes não compensa a relação preço/qualidade. Não creio em nada disto, e muito menos na afirmação de que isto só é coisa para quem sabe de técnica culinária. É tão verdade como ser necessário saber muito de técnica operática para se distinguir especialmente Plácido Domingo ou Jonas Kaufmann. É só questão, neste caso, de se saber optar, por mero gosto, entre cantores de bel-canto e “spinto". Bom gosto e bom senso.
Há semanas, na nossa breve digressão a Londres, tínhamos prometido ao nosso querido jovem casal anfitrião irmos a um bom restaurante, extravagância que bem merece economizarmos cá em ir a restaurantes banais e tentar cozinhar bem em casa.
Os de três estrelas estavam esgotados e fomos a um biestrelado, o Marcus, no Hotel Berkeley, com chefia de Marcus Wareing.
De regresso, festejámos poucos dias depois o meu aniversário num restaurante lisboeta recente que anda muito falado, o Trio, pela originalidade e qualidade da sua cozinha. Não é muito “fair” (já que vim de Londres) criticá-lo, mas hei de fazê-lo, por estar bem presente o Marcus.
Quem tiver esta experiência comparativa nunca mais pode dizer o que exemplifiquei acima. São coisas que só um “come por comer” não vê: a qualidade e frescura dos produtos, a leveza, a subtileza dos sabores, a harmonia dos contrastes, a “sonoridade” exata do prato, até o ritmo do serviço. E não é preciso nenhuma extravagância. Em Inglaterra, por exemplo (e fora, um pouco, o caso de originalidade bem fundamentada de Heston Blumenthal) o que ainda vale é a base francesa da chamada “cozinha europeia moderna”. 

É também o que vi, noutra ocasião, no único restaurante três estrelas que conheço (a convite, claro!), vizinho do Heston, o Waterside Inn, em Bray. Por exemplo, uma entrada “oh, simple thing!”, de carne de pinças de lavagante, espargos verdes, caviar de cultura e espuma de nata com vodka. Tentei reproduzir em casa a cor, o brilho e a textura daqueles espargos mas só me aproximei. É o que faz a diferença para as estrelas.