segunda-feira, 23 de maio de 2011

Arroz japono-açoriano

A cozinha de fusão é muito de sabores, mas não só. Creio que também de técnicas. Já aqui disse, honestamente, que não me permito fundir cozinhas que não domino, mas esta da assimilação de técnica pode ser coisa facilmente aceitável. É o caso das cozinhas orientais, em que a técnica, tão diferente da nossa, vale tanto como os ingredientes. Cansado da cozinha chinesa de tlinta e tlês, tenho pouca alternativa em relação à cozinha chinesa. Mandarim, é claro. Mas também o pioneiro, que revisitei há dias ao fim de muitos anos e que continua a marcar diferença, o Dragão de Ouro.
Ultimamente, tenho-me rendido à cozinha japonesa, que começo a tentar fazer. Coisa que tenho estudado bastante, experimentado boa meia dúzia de vezes porque não é nada simples, mas que me parece que já começo a dominar é a preparação do arroz. De tal forma que arrisquei a tal fusão, cozinhar um arroz genuinamente português com técnica japonesa. A receita era uma coisa banal de cozinha familiar açoriana, arroz de repolho e linguiça. Como qualquer arroz tradicional português, feita com arroz carolino, em princípio sem mais esmero do que refogá-lo um pouco e deixar cozer em 2-3 vezes a quantidade de água, a gosto. Arroz à japonesa tem muito mais que se lhe diga.
O arroz japonês mais vulgar é a variante japonica, de grão curto e com  muito amido, afinal do tipo do nosso carolino. Mas enquanto nós o usamos para pratos complexos, os japoneses usam-no só como arroz cozido simples, seco, para acompanhamento ou para suchi. Começo pela confeção japonesa e depois direi como fundi com a minha cozinha tradicional.
Éramos dois e comecei com chávena e meia de arroz carolino. Deitei numa tigela grande, agitei só uns segundos com bastante água e escorri. Depois, várias vezes, creio que cinco, até a água sair clara, molhei em água a cobrir e mexi bem o arroz entre as palmas das mãos, escorrendo e juntando nova água. No fim, passei por coador e deixei ficar a escorrer durante meia hora.
Entretanto, preparei o refogado com cebola, alho, louro, repolho picado previamente escaldado, um pouco de concentrado de tomate, linguiça aos cubos pequenos, louro, sal, pimenta preta e da Jamaica, um toque de malagueta. Deixei ferver cerca de 10 minutos, juntando aos poucos goles de água para cozer o repolho mas a apurar muito bem, quase a ficar seco e reservei, mantendo sempre muito quente.
Num tacho com tampa bem aconchegada, pus o arroz escorrido e cobri com a mistura do refogado, escorrida, juntando água em volume igual ao do arroz. Levei rapidamente à fervura, baixei logo o lume  ao mínimo e deixei fervilhar durante 13 minutos. Apaguei o lume e deixei abafar durante 15 minutos. Misturei bem com uma espátula bem arrefecida em água gelada e servi imediatamente.
Não vou qualificar, detesto a conversa de tias “que delicioso que me saiu”. Experimentem e digam. Até admito que me critiquem por um simples arroz de repolho e linguiça não merecer tantos cuidados. Talvez, mas dá-me gozo!

P. S. - Isto foi teste e por isso usando um componente português muito rústico. Não aconselho como preparação final, mais esmerada. Para a próxima vez, mantenho como componente português uma base muito simples de refogado ligeiro, obrigatoriamente com cebola, tomate, louro, muito pouco sal e pimenta e algum tempero, que sugiro a seguir para cada mistura. Conforme os casos, deixo ao critério dos leitores usarem azeite ou manteiga (quer dizer, em abono da dieta, margarina dietética de cozinha), só a molhar o fundo do tacho. Aqui vão alguns exemplos desses refogados.

- Bivalves previamente fervidos só a abrir a casca e descascar, alho e coentros.
- Miúdos de aves, presunto, carqueja.
- Peixe desfiado, massa de pimentão, hortelã ou poejo, uvas embebidas em vinagre.
- Atum fresco, açaflor, malagueta, pimenta da Jamaica.
- Cubos de peito de frango, bacon e cogumelos, estragão, um toque de mostarda.
- Fígado e sangue cozidos, em cubos pequenos, cominhos.
- Para vegetarianos, uma mistura de legumes a gosto, orégãos e um toque de gengibre e ainda menos de canela.
E muito mais, tudo o que vos parecer português para ir com o arroz japonês. 

domingo, 15 de maio de 2011

Cozinha a quatro mãos

Disse há dias que cozinha de fusão é coisa que me desafia, que acho um exercício estimulante, mas que, a meu ver, é conceptual e tecnicamente muito difícil. A mistura de ingredientes e técnicas tem de ser 2+2=5. Tem de evocar equilibradamente e com reconhecimento fácil cada uma das cozinhas originais, mas ao mesmo tempo dar o salto para coisa diferente e melhor do que cada uma delas por si só.
A meu ver, isto exige um grande conhecimento do essencial de cada uma das cozinhas a fundir. Não é por se juntar molho de soja a um bife à café que se faz cozinha de fusão. Por isto, só me atrevi a uma experiência sólida em relação a uma cozinha exótica que começo a dominar, a angolana. Melhor ainda, quando a experiência foi concerto de piano a quatro mãos. 
Foram duas coisas muito simples, para mais facilmente ressaltar o dueto entre cozinhas e cozinheiros. Uma sopa de espinafres e legumes tropicais aromatizada com palma e uns ovos com quiabos. As receitas estão disponíveis no sítio do costume.
A latere. Já muito raramente visito a blogosfera culinária de tias e pseudo-médicos e apenas em dias de boa disposição, para me rir. Acabo por ter surpresas. Já repararam que agora blogues isentos, desinteressados, só de quem quer ajuda mútua para coisas deliciosas que vêm em qualquer revista de cabeleireiro, abrem-nos automaticamente páginas de publicidade de La Redoute? E que já não há o mínimo esforço criativo, mesmo que rudimentar, que cada vez mais se publicam para grande fama apenas coisas estritamente copiadas de livros e revistas mas ditas “adaptadas”? Ignorância, falta de cultura, são desculpáveis. Aldrabice é que não, principalmente quando está em causa a defesa do consumidor, neste caso as leitoras das tias (são muito maioritariamente femininas).

sábado, 7 de maio de 2011

Hoje houve ostras

“Éme, pélo-me por ostras, podês qu’ê comia”, diria eu se tivesse mantido, erro meu que não o fiz, o meu falar vernáculo açoriano, de quatrocentos, fóssil vivo de linguística.
Ostras para o jantar, não é todos os dias. Não porque sejam abusivamente caras, mas principalmente porque não me aparecem muito, apesar de hoje a produção ser razoável. Como não se podem conservar longamente, tenho de ir de propósito a um hipermercado, que não me fica à mão. Mas devia ir mais, porque sou perdido por ostras, tanto é que, havendo excelentes maneiras de as cozinhar - e até também minhas - continuo a privilegiar aquilo que só faço com elas e com as suas primas de baixa condição, as lapas: comê-las sem mais nada e nem sequer cozedura, vivas e naturais, como Deus as pôs no mundo, "incouro e sin cueiros". Nisto não tenho problemas de companhia e partilha do prato, em relação às ostras mas, sem razão lógica - quem quer exigir lógica às mulheres?… - nunca em relação às lapas.
Como tantas outras coisas que não havia nos Açores e que nem chegavam lá por importação, ostra foi coisa que só conhecia da Alice no tal país até as ter provado, deliciado, nesta minha grande descoberta do mundo que foi a minha vinda para a universidade, apesar do primarismo de vida cá em 1960. Nessa altura, ainda se falava com orgulho da ostra portuguesa, que a poluição do Tejo, principalmente as tintas despejadas pela Lisnave, dizimou a partir de 1970. De facto, as razões não são tão localizadas, porque as nossas ostras desapareceram de toda a costa, onde as havia, com destaque para o estuário do Sado e a costa da Ria Formosa.
Isto de “ostra portuguesa” nem é patrioteirice nossa. É mesmo uma espécie distinta (Crassostrea angulata) e ganhou fama no grande país das ostras, obviamente a França, quando as conheceram, lá por 1868, em virtude de um navio em aflição ter despejado ao mar, ao largo da costa gascã, o seu carregamento de ostras. Até então, a ostra francesa era apenas a ostra plana ou chata (Ostrea edulis), que passou a conviver com a portuguesa até ter sido dizimada por uma praga, por volta de 1920 (a “doença das guelras”). A coexistência da ostra portuguesa, resistente à epizootia viral, salvou a ostricultura francesa. Acabou por desaparecer também, nos anos 70, mas já com a ostricultura francesa recomposta depois da introdução da ostra japonesa, como digo a seguir.  
A ostricultura recuperou em ambos os países, muito antes em França, mais recentemente em Portugal. Em França, cultiva-se em toda a costa ocidental, desde a Bretanha até aos Pirinéus, mas com destaque para Marennes-Oléron, a meia latitude do golfo da Gasconha, e para Arcachon, perto da foz do Loire. Ainda se pode encontrar a ostra chata tradicional, redonda e grande, chamada de “belon” na Bretanha e de “gravette” em Arcachon, recuperada depois da praga mas hoje novamente muito limitada à Bretanha, depois de nova doença nos fins da década de 70. Por isto, a enorme maioria da produção de ostras francesas é feita com uma espécie importada de origem japonesa (Crassostrea gigas). Parece-se com a portuguesa em ser encurvada, com as valvas diferentes, mas é muito maior (cerca de 10 cm, para 7 cm da portuguesa). Quanto ao sabor, que digam os puristas. Julgo preferir a portuguesa, mas nada como fazer uma experiência que ainda não fiz, comprar ambas e comparar em ensaio cego. Com controlo de quem bem sabe o que são as normas dos ensaios clínicos...
Em Portugal, assiste-se ao reflorescimento da criação de ostras, infelizmente não conseguida no Tejo. Compensam as ostriculturas bem sucedidos dos estuários do Sado e do Mira. E, felizmente, se não estou em erro, tudo feito essencialmente com ostra portuguesa, sem necessidade de introdução da japonesa. Tanto quanto sei, depois da extinção da ostra portuguesa em França nos fins de 70, ela só é cultivada em Portugal, coisa que bem devíamos valorizar. O que não impede que estejamos a ser invadidos nos supermercados por ostras japonesas, um pouco mais baratas, de origem galega.
E como comê-las? Em qualquer caso, verificando primeiro se estão bem vivas, com a concha fechada e retraindo os cílios salientes quando tocados. Compradas o mais tarde possível antes de as comer e guardadas no frigorífico. Vá lá, não sejamos tão exigentes, podem aguentar até 5 ou 6 dias no frigorífico, na gaveta dos legumes, de preferência embrulhadas num pano. Tradicionalmente, nunca nos “meses com r”, o que hoje já não faz sentido, com a técnica da ostricultura.
Variantes de cozinha de ostras são mais que muitas, desde uma bem antiga receita de pato com ostras e molho de trufas (no século XVII…). Escoffier regista 15 receitas e até há 16 no Livro de Pantagruel. Receitas modernas conheço de bifes com ostras, de vários tipos de espetadas, escalfadas, gratinadas nas suas conchas com molhos diversos, até fritas embrulhadas em polme, muitas mais. Às vezes faço-as com alguma elaboração, outras vezes faço-as simplesmente assadas (no forno ou na chapa, como calha), sem a valva superior, e molhadas em manteiga derretida com limão, um toque muito suave de alho, pimenta e uma erva a gosto, mais alguma fantasia de momento, como uma ponta de gengibre, ou uma gota só de leite de coco ou uma quase invisível pitada de açaflor.
Mas nada chega a pegar numa ostra com a mão esquerda segurando-a bem na horizontal para que nada se perca, retirar a valva superior, com “alavancagem” de ponta de faca, descolar a ostra da valva inferior, levar à boca de uma só vez o bicho e toda a água que ficou guardada na valva inferior. Sem sal, sem pimenta, sem limão, sem nada! Puro sabor natural.