domingo, 18 de setembro de 2011

Terrina ou patê?

Há um erro vulgar de terminologia, velha confusão: terrina e paté. Nunca falei sobre isto por me parecer minudência, mas hoje a confusão complicou-se mais num escrito de Hugo Campos, na Pública. Ou, erro meu, não o percebi bem, admito, porque HC não é um desconhecedor, como bem vejo pela minha leitura regular, sempre com agrado e proveito. 
Diz que “terrine (ou terrina) é o nome francês dado a uma forma funda - com tampa, refractária e geralmente de cerâmica - [JVC: já agora, geralmente oval] e aos pratos nela preparados. Há quem confunda terrine com patê, talvez porque o clássico foie gras é confeccionado na terrine e, no final da cozedura, a consistência se assemelhar à de um patê. No entanto, pode preparar-se terrine com qualquer ingrediente, como legumes, que não será necessariamente patê.”
Não é bem assim. O que escreve sobre a terrina está correto, mas fica por aí. A confusão com patê (bom aportuguesamento de “paté” com “é”, em francês) parece vir, neste escrito, da ideia de que patê é só de fígado, aves ou carnes, ao contrário do que pode ser uma terrina. Ou de que patê tem a ver especialmente com “foie gras”. E não percebo o que é isto de o "foie gras" cozinhado numa terrina ficar com consistência de patê. O que é consistência de patê? Não é confusão, por analogia, com "pasta"? Ou não será que se está a pensar naquilo que qualquer pessoa vê no supermercado, umas fatias de uma pasta de fígado, pato, porco, com ou sem cogumelos ou pimenta verde, embrulhada em plástico e chamada de "patê"? Não quero crer, um gastrónomo como HC não pode induzir os leitores em tal erro. Devo estar a ler mal, repito.

Anote-se também que o “foie gras” tanto pode ser assado (melhor, cozido em banho-maria no forno) numa terrina, como diz HC, como, talvez mais frequentemente (e melhor, para meu gosto), frito a temperatura moderada em gordura (de ganso), ao lume ou, melhor ainda, braseado/salteado na sua própria gordura destilada ao aquecer controladamente na frigideira.
A diferença essencial entre terrina e patê, seja do que for, tem a ver com outra coisa muito diferente, bem indicada pelo nome patê. Este é um preparado de uma pasta/recheio, em geral de carnes, envolvida com massa e cozinhada no forno, a temperatura relativamente alta, sem ser a banho-maria como a terrina. Quem for a um restaurante parisiense, mesmo que mediano, sabe logo, ao ler a ementa, se vai comer “la terrine du chef” (a minha, sem ser de chefe, vem no meu livro) ou “le paté du chef”, que até podem ter exatamente a mesma mistura de carnes mais ou menos moídas.
NOTA - Dito isto, mais importante são as receitas que acompanham o artigo. Mas cuidado: uma terrina exige muita prática, acerto na consistência final da pasta crua, grande domínio do forno (e do arrefecimento, com o peso certo em cima!); não é só ler uma receita e ficar com a certeza de sucesso! Não aconselho fazer pela primeira vez para um jantar de amigos exigentes.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Chamada de atenção


A blogosfera portuguesa está cheia de blogues de culinária, de receitas, desde simples cópia ou compilação de receitas publicadas em livros e revistas até exemplos de louvável esforço de criatividade. Muito menos abundantes são os blogues de gastronomia, com ou sem receitas, mas, em todo o caso, não sendo elas o elemento central.
Esta lista curta foi agora acrescentada com um blogue muito promissor, “Mais olhos que barriga”. A autora, Alexandra Prado Coelho, jornalista do Público com méritos bem firmados noutras áreas, começou há relativamente pouco tempo uma incursão profissional - e certamente que também pessoal - nestas andanças. Deve-se-lhe já uma coleção de artigos na P2 sobre as “7 maravilhas”.
IMHO, em minha humilde opinião, o que já se pode ver do blogue promete bem: boa informação, critério e bom gosto, sentido de oportunidade das entradas, tudo com ótima escrita - e gastronomia com literatura é ouro sobre azul. Agradeço-lhe a amabilidade de ter destacado o meu blogue na sua “barra lateral”. Vou retribuir, mas não por cortesia. É porque quero mesmo recomendar o “Mais olhos que barriga”, de que vou ser leitor fiel.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Ouriços do mar

Confessei há dias, de regresso da Sicília, o meu desconhecimento de uma iguaria superlativa, as ovas de ouriço de mar. Um amigo que não leu essa nota mas que coincide em bom gosto, concordando com uma outra mensagem em que mostrava o meu enlevo por estas férias em Taormina, onde ele já esteve, falou-me das coisas obrigatórias, a beleza da paisagem, o mar, o Etna, o encanto da cidadezinha. Mas também de ter comido uma coisa excelente, “pasta ai ricci di mare”. “Les bons esprits…”
Perguntei por eles no meu hipermercado, o Jumbo do Alegro de Alfragide. Recebem-nos muito raramente, ano a ano, mas se eu quiser encomendar, vêm especialmente desde que os apanhem e avisam-me da chegada. Lá ficou a encomenda. Vou ter é de aprender a arranjá-los. E claro que não os vou fazer com massa, merecem esforço de invenção.

domingo, 11 de setembro de 2011

A massa já é universal

É legítimo mudar as receitas consagradas? Creio que sim quando essas receitas deixaram de ser parte de um património regional e nacional e passaram a exemplos de globalização culinária (infelizmente, muitas vezes não gastronómica). Alguém pode ser impedido de inventar o seu hambúrguer ou a sua pizza e chamar-lhe assim?
Um bom exemplo são as muitas massas italianas. Não concordo com que se desrespeitem designações consagradas, à bolonhesa, à carbonara, à putanesca, à arrabiata, etc. Diferente é o caso de ingredientes diversos, dezenas e dezenas, que por toda a Itália se juntam a massas, sem que isto defina um prato típico. Um exemplo de coisa minha muito apreciada é massa com amêijoas (“pasta con vondole”).
Já a comi em Itália de muitas maneiras, desde quase simples e sem molho até um pouco atomatada ou, como agora na Sicília, como não podia deixar de ser, com anchovas. Não me parecendo que haja uma receita única, consagrada, dou-me ao luxo de ter a minha receita de esparguete com amêijoas (também podia ser outra massa - lembro-me de que a primeira vez que comi, em Roma, há largos anos, foi com “penne”). Foi o que fiz hoje ao almoço.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Saladas

Um dia destes, os dentistas vão ter grande lucro a desbastar os incisivos de toda a gente, transformada em coelho. Éramos omnívoros equilibrados, os dentes estavam adaptados, agora somos roedores de cenoura. Cenoura aos montes nas saladas e guarnições, cenoura nas sopas a abafar seja o que for o tema da sopa, cenoura por toda a parte. Eu sou anti-cenoura, questão discutível de gosto pessoal, embora a use muito na minha cozinha, mas equilibradamente no conjunto e sempre cozinhada.
Salada típica sempre foi, tristemente à portuguesa, alface, tomate e pepino. Às vezes, em tempo de sardinhada, cebola e pimento verde, assado - o que não era mau - agora preguiçosamente cru, o que é muito duvidoso. O que não era hábito era o horroroso monte de cenoura ripada.
Quando eu era jovem e começava a haver em Lisboa alguns restaurantes de qualidade, para a época,  a Colina, o Funil, o Polícia, o António, o Bota Alta, o Conventual já a beirar o luxo de dia de festa, a acrescentar a coisas incomportáveis tipo Aviz e Gambrinus, mas também a boas tascas como a Tia Matilde, mais as leituras do Banquete e alguma esnobice da malta pobretana de esquerda (ou julgam que éramos proletas honestamente assumidos, nós filhos de gente bem?), criámos uma cultura inteligente de gastronomia a conjugar bom gosto e bolsa magra. Quantas dicas de boa cozinha barata troquei com os meus amigos, nos meus tempos de iniciação culinária?
Bom exemplo, que ainda hoje me faz rir, é esse “requinte” do tamboril. Era peixe ao preço da chuva mas, rijo e com pouco sabor, temperávamos como lagosta dos pobres, caldo Knorr de marisco a dar sabor, colorau a dar cor. Eram as delícias do mar da altura. Lei do mercado, da oferta e da procura, transformámos o pobre bicho, que hoje me recuso a comer, em coisa cara da moda. Quando me passava pela cabeça que hoje me teria de recusar (até em casa…, gestão de gosto) a comer essa coisa “bem” que se chama arroz de tamboril? O bicho até sabe a lodo!
As saladas também são moda, adelgaçam as cinturas das tias, embora, coitadas, não lhes curem as pilancas e as manchas cutâneas de excesso de sol (valha-lhes Deus e sua Santa Lili). Hoje há restaurantes de saladas e restaurantes com saladas. Restaurantes de saladas já chateiam, eruca, brie, crutons, nozes, maçã, manga. Se misturam anchovas, pistachios, alcaparras, ervas, tapenade, dá barraca, não sabem. Porque nem sequer sabem que há clássicos, niçoise, César, com roquefort, Albignac, Alienor, carbonara, arlesiana, à Toulouse, Port-Royal, rainha, Raphael, e até a russa, com toda a sua magnífica diversidade! 
Mais desculpável, na sua simplicidade simplória, mas mais nefasta na sua tentacular influência no mau gosto, é a salada mista que hoje invade todos os pratos dos nossos restaurantes medianos, os restaurantes com salada. Venha o que vier na travessa - requintadamente metálica - com o respetivo molho, logo vem ao lado na própria travessa a salada, com o empregado brasileiro que nada percebe de nada (não é chauvinismo, é realidade de patrão que contrata mão de obra barata e desqualificada) a trazer o azeite e vinagre que se vão misturar com seja lá o que for do molho do prato, caril, dobrada, feijoada, muamba, molho de bife à café.
Mas também que dizer quando hoje os “bons” (escandalosamente PVP caros) restaurantes de peixe servem com a tal salada garoupa grelhada com azeite e vinagre em vez de molho de manteiga e limão, com infinidades de variações de acrescento de ervas? Ou idem os salmonetes, em vez do clássico molho à setubalense de alho, limão, laranja, fígado e salsa, uma delícia? (bizarramente, o melhor que já provei, fora a minha casa, foi em sítio inesperado do interior, na pousada de Marvão!)
A salada é parte própria de uma refeição e raramente deve ser misturada com outra parte (como exemplo de exceção, um simples empadão de carne - coisa tão boa se bem feito, com restos de carne assada e com um puré bem temperado com pimenta preta e noz moscada - pede uma salada simples de alface ripada e, quando muito, com algum tomate). Ou com um bom sortido de salgados frios. 

Começa logo pela bebida. Um bom prato pede vinho, óbvio. Uma salada vai muito mal com vinho. Ou vai com vinho mas não temperada ou, se temperada como é hábito, sempre com alguma acidez de vinagre ou limão, mata qualquer vinho. Por isto, salada é entre a sopa/entrada e o prato e com uma boa água, a lavar a boca.
Salada com o prato, por tudo isto, é que nunca. Fica uma alternativa, não muito de meu gosto, mas de amigos meus franceses, com velhos hábitos familiares de província. A de a salada se seguir ao prato, antes da sobremesa. Gosto, mas só no caso de, ao almoço, a sobremesa ser de queijo. Sim, porque queijo é sobremesa (e até com vinho do Porto), não é entrada! E quantos bons restaurantes vejo eu que não têm queijos na secção de sobremesas da sua ementa.

Novamente as morchelas

Já aqui falei das morchelas, um excelente cogumelo só conhecido no nordeste transmontano mas agora à venda, seco, na boa oferta de cogumelos do Corte Inglês. Tenho-os usado em coisas diversas de que não vou dando conta, mas hoje em coisa fácil de que vale a pena falar.
Faço muito “croûtes”, à maneira do Vaud suíço em que tão bem vivi. Essencialmente, são uma mistura de ovos e queijo ida ao forno a gratinar, sobre uma fatia de pão. Tudo o resto, e pode ser muito, é enriquecimento da mistura, inclusivamente cogumelos, o que me deu a ideia para nova receita.

É claro que, no Vaud, em cujo coração está a linda aldeia de Gruyère, tudo o que se junte ao queijo, na fondue, no molho de assado, nas croûtes, é supérfluo. Eu, não vaudois, quase que alinharia, considerando que o gruyère é o melhor queijo do mundo (mas só o rótulo preto, "super choix", há 40 anos que não o provo!).
Como já disse, este blogue não fornece receitas. É truque para, se interessados nesta receita de morchelas em croûte de queijo à Vaud, verem as muitas mais na minha página de receitas
Claro que a receita não pode incluir os acessórios, a (bom) gosto de cada um. Sugiro, para guarnecer, por exemplo:
- Estufado de uma brunesa de caiota (chuchu), batata doce e aipo.
- Tomatinhos untados com azeite e ervas e alourados no forno.
- Compota de legumes (cebola, malagueta, pimentão, etc.)
- Uma salada simples.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Está tudo dito!

Só agora reparei numa coisa muito interessante do “concurso” das 7 maravilhas da gastronomia. É claro que não se pode exigir muito deste tipo de concursos, que têm dado bem conhecidos e polémicos resultados, de personagens políticos a paisagens. Também não se pode dar importância a escolhas gastronómicas de um “júri” de personalidades “representativas da vida social” (incluirá Lili Caneças e o conde Castelo Branco?). Assim, nada surpreende a classificação do queijo da Serra como… entrada!

domingo, 4 de setembro de 2011

Sicília (2)

Como é meu velho hábito, regresso sempre de viagem nova com um bom livro de cozinha. Italianos tenho muitos, mas vi agora na Sicília que há uma cozinha sua bem marcada. Uma chamada de telemóvel a um amigo italiano bom gastrónomo permitiu-me a escolha de um bom livro. Dele ainda hoje tirei um excelente “cuscus alla trapanese”. Mas também me apeteceu fazer coisa minha de evocação dos mais típicos sabores de uma semana. Chamei-lhe simplesmente salada à siciliana.
Tomate, cortado ao comprido, retiradas as sementes e cortado em semi-rodelas. Pepino em rodelas finas, com casca (para quem gosta, como eu). Atum de conserva. Filetes de anchovas. Azeitonas verdes. Alcaparras. Ovos cozidos cortados em gomos. Sal, pimenta, piripiri (o picante de pimentos pequenos é tipicamente siciliano, às vezes até demais, como na extra-picante "pizzaiola" de carne), azeite virgem extra, vinagre balsâmico Quem quiser junte alface, ou, na moda, rúcula. Eu não vou muito por aí. Não indico quantidades, experimentem a gosto.
O tomate que usei foi chucha, por compatibilidade de tamanho com as rodelas de pepino. Mas na Sicília o que mais se usa é o tomate miniatura, “pomodorini”, em saladas ou com massas. Tomate normal é para molho.

NOTA - A figura pode parecer estranha. É o símbolo da Sicília, "trinacria", três ângulos, as três pernas, o triângulo. Vejam um mapa e logo percebem. A figura central é a medusa. A bandeira é cortada, na diagonal, em vermelho e amarelo, as cores de Aragão.