sábado, 2 de maio de 2015

Cozinha com data (1)

Em séculos de isolamento, só mitigados no século XIX, os açorianos mantiveram os costumes ancestrais, alguns até perdidos no continente. Hoje vou falar de cozinha de datas a propósito do 1º de Maio. Não é uma festa religiosa, como as demais em que se acrescenta as refeições tradicionais, nem tem a ver, mais recente com o dia do trabalhador. Julgo ser uma comemoração pagã, de Primavera.
É mais característica da Terceira. A figura pontificante é o maio, à varanda, um boneco feito com almofadas e trapos variados, com chapéu e cabeleira de palha. Será uma evocação dos espantalhos?
O almoço é tipicamente de chicharros com “molho de salsa verde” (seria mais lógico molho verde de salsa) e papas grossas.
Como já tenho escrito, o chicharro açoriano, “charrinho”, é do género Trichurus, como o carapau de cá, enquanto que o termo chicharro é cá mais usado para o carapau grande. A diferença entre o carapau açoriano (charrinho) e o continental, com marcada diferença de sabor, não radica, como em outros casos, das características das águas. É que são duas espécies diferentes: T. trachurus no continente, o carapau branco; e T. picturatus, o açoriano, carapau azul.
Dito isto, não há muitos mais segredos. O mais marcante talvez seja o de o peixe ser embrulhado, antes da fritura, em farinha de milho e não de trigo. Frita-se em óleo ou assa-se em sertã de barro. Escorre-se, deixa-se arrefecer e cobre-se com o molho de salsa verde, uma vinagrete aparentada com o molho à espanhola.
Em cru, misturar cebola picada, alho picado, salsa, sal, pimenta, malagueta, açaflor açoriana (nunca a curcuma ou açafrão indiano!), pimenta da Jamaica esmagada, azeite e vinagre.
Em S. Miguel é mais usado outro molho, o de vilão, um antigo molho português cá caído em desuso. Neste caso, o peixe tem de ser frito.
Guardar os charrinhos e escorrer. Alourar alho no óleo de fritar o peixe e juntar malagueta, pimenta da Jamaica (ou cravinho) e açaflor. Juntar umas colheres de vinagre e deixar apurar. Cobrir os charrinhos e servir quente ou frio. Para não ficar muito agreste, costumo rejeitar parte do óleo e substituir por azeite, antes de preparar o molho.
Faltam as papas grossas. Muito simples, são papas feitas com leite, farinha de milho de carolo, não peneirada, gemas de ovo e temperadas com açúcar e casca de limão. Ficam com consistência grossa, como o mais conhecido milho madeirense, que é salgado e não sobremesa
Já que falei em cozinha de data pagã, vou de volta há algumas semanas, ao Carnaval. Marcantemente, é nessa altura que se fazem e comem nos Açores os continentais fritos de Natal. Não há muita diferença nas rabanadas (lá fatias fritas ou douradas), coscorões, rodas-do.Egipto, sonhos. Filhoses é que ninguém entenderá, porque nos Açores são um frito de massa tipo choux e recheada com custaria. O que mais se assemelha às filhoses continentais são as melaçadas de S. Miguel. Não são propriamente fritos, porque se fazem em sertã ou, mais vulgarmente, na chapa do fogão de lenha.
2 kg de farinha, 6 c. sopa de açúcar, 12 ovos, 250 g de manteiga, leite q. b., 40 g de fermento de padeiro, 1-2 cálices de aguardente, raspa de limão. Diluir o fermento em leite morno. Amassar tudo muito bem, juntando um ovo de cada vez, até a massa estar fina (com consistência de polme grosso) e deixar levedar em lugar quente, num alguidar embrulhado em cobertores. Untar as mãos com óleo ou leite  e separar pedaços de massa, que se achatam em disco alto de cerca de 15 cm de diâmetro, com menos massa ao centro. Fritar em óleo bem quente. Servir frias, polvilhadas com açúcar ou com açúcar e canela.
Mas também estamos em meses, Abril e Maio, de festas religiosas, Páscoa e Espírito Santo. A Páscoa é muito diferente de cá em ilhas sem hábito gastronómico de cabrito ou borrego. Cabra é só para minguada produção de leite e carneiro ou ovelha para leite ou, antigamente, para puxar pequenas carroças de compras e cargas leves.
Na Terceira, é frequente a alcatra e sobressaem na mesa os doces de alfenim (só açúcar sólido, para diabéticos), amêndoas industriais e caseiras e confeitos. Em S. Miguel o prato é mais variado, entre galinha, carne de vaca assada ou porco.
Daqui a semanas, voltaremos a capítulo diferente e icónico também em festas tão ricas em diferentes aspectos, etnológico, musical, religioso, simbólico e também gastronómico. Refiro-me às grandes festas das gentes açorianas, as do Divino Senhor Espírito Santo. No sétimo domingo depois da Páscoa (número mágico judaico-cristão), caem este ano a 24 deste mês. Cá voltarei.