terça-feira, 4 de outubro de 2011

À italiana

Ainda não esqueci a boa cozinha italiana destas férias e vou-me inspirando para coisas simples, fáceis e acho que recomendáveis. Aqui vão dois exemplos, com as receitas no sítio do costume. Não são cozinha genuína italiana, muito menos da Sicília que me ficou de memória. São coisas que saem sabe-se lá como, mas claramente com inspiração percetível.
Se tiverem curiosidade, aproveitem umas “vieiras com orecchiette e molho de dois queijos” ou uma “massa preta com lascas de porco perfumadas”.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

As sete maravilhas

Tenho grande apreço por um bom gastrónomo, Virgílio Nogueiro Gomes, que me honra notificando-me sempre das suas crónicas. Hoje, soube por essa via que ele foi uma das “personalidades representativas da vida social portuguesa” que selecionaram os 21 candidatos finais a maravilhas gastronómicas. Claro que não tem culpa da parvoice do concurso e as escolhas que explica no seu texto são respeitáveis e criteriosas. 

Já agora, vou também eu fazer a minha escolha, como ele, e respeitando as categorias em causa. Não me vou condicionar pelas coisas postas a concurso, tão aldrabadas que até incluem queijo da Serra e alheira como entradas, um inventado coelho à Porto Santo, a receita secreta de pastéis de Belém.

O resultado final foi o do nível mais primário dos hábitos de comer do português "piplar". Tristes hábitos, de quem só se recorda da cozinha de infância de umas coisas banais que hoje lhe enfeitam o "fast food". O caldo verde, batata e couve, é um exemplo de boa cozinha de sopas, comparado com o perfume de uma açorda alentejana ou de uma açorda de hortelã açoriana ou de uma canja de conquilhas? Arroz por arroz, um arroz de mariscos (com arroz agulha, modernice de requinte!) é culinariamente superior a um requintado/popular arroz de cabidela, ou um arroz de sarrabulho, ou um arroz de carqueja, ou um arroz de substância? 

O que ganhou o concurso foi, simplesmente, o que, em ciclo vicioso, as pessoas comem hoje nos restaurantes baratos porque os restaurantes baratos lhes servem o que pensam que as pessoas querem. E assim se normalizam os gostos, se estreita a cultura gastronómica, mesmo ou principalmente a do homem comum.
Vou fazer duas grelhas. Uma organizada por tipo de pratos, como funcionou o concurso. Outra por regiões, com três pratos por cada. Embora eu pudesse recorrer a muito maior lista de pratos, vou adotar como regra, por facilitação e para comodidade dos leitores, só incluir receitas referidas por Maria de Lourdes Modesto no seu “Cozinha Tradicional Portuguesa”. Isto só me limita em relação às cozinhas dos Açores, aquelas em que mais me posso "espraiar". Veja-se que, em cada uma delas, nem sempre, ou até raramente, concordo com a escolha final deste concurso de má qualidade gastronómica.
Entradas: Fava rica com “todolos tamperos” de S. Miguel/Açores; pastéis de bacalhau ou pataniscas; pezinhos de coentrada. Só podem ser três, mas, a seguir, estopeta de atum, pipis, pastéis de massa tenra, peixinhos da horta, caracóis da Esperança, bolo lêvedo de S. Miguel com massa de malagueta, bolo do caco da Madeira.
Sopas: Açorda alentejana, sopa de Espírito Santo dos Açores, laburdo. Só podem ser três, mas, a seguir, gaspacho alentejano ou arjamolho algarvio, sopa alentejana de cação, sopa de beldroegas, sopa de funcho dos Açores, sopa de peixe rica da costa estremenha, sopa de pedra de Almeirim (descontando que não é cozinha tradicional ou que, melhor, é “sopa de fartura” de caráter nacional), caldo verde (que não é só minhoto), caldo de camarão da Praça da Ribeira.
Mariscos e moluscos: Lapas de molho Afonso (Açores), amêijoas à Bulhão Pato, arroz de marisco (mas com arroz carolino!). Só podem ser três, mas, a seguir, um marisco único, mesmo que cozinhado e muito bem apenas ao natural, as cracas. Também a lagosta suada à Peniche, que não fica atrás da requintada lagosta “à americana” de Pierre Fraise. Até a incluiria no trio vencedor, não fosse o sentido prático de que o consumo faz a regra e de que muita mais gente gosta de arroz de marisco e desconhece a lagosta suada. Incluo mais, embora de tradição recente, as feijoadas de mariscos. Quanto ao polvo, claro que o polvo guisado em vinho de cheiro dos Açores e o arroz de polvo continental. Mas não essa brincadeira de patuscos, um polvo assado açoriano.
Peixe: Bacalhau à Gomes de Sá, caldeirada (de peixes ou só de enguias), peixe assado. Só podem ser três, mas, a seguir, as sardinhas que chegaram à fase final deste concurso. A meu ver, embora me delicie com elas, não são nenhuma maravilha gastronómica, são coisa primária. Depois, muitos outros pratos de peixe, impossíveis de enumerar aqui. Destaque, obviamente, para a lampreia.
Caça: Perdiz de escabeche, escolhida pelo júri, muito bem, porque duvido de poder classificar como  gastronomia tradicional portuguesa as perdizes à Alcântara. No trio vencedor eu incluiria mais arroz ou feijão de lebre e alheira de caça. Claro que excluo liminarmente aquilo que o júri engoliu, um inexistente coelho à Porto Santo, inventado por um cozinheiro brincalhão para gozar com este concurso.
Carne: foram escolhidas a chanfana, o leitão da Bairrada e as tripas à moda do Porto. Não vou contra, são pratos excelentes, mas que mostram a injustiça do que fica de fora: o cabrito e o borrego assados, a alcatra terceirense, os rojões com sarrabulho, o ensopado de borrego, o lombo frito com migas, etc., etc.
Sobremesas: ficou o trio de pastéis de Tentúgal, pastéis de Belém e pudim do abade de Priscos. Descontando o fato de os pastéis de Belém não fazerem parte do património popular tradicional, por a sua receita ser secreta, concordo com esta escolha, mas como concordaria com muitas outras escolhas. A nossa doçaria é tão rica que não cabe em nenhum concurso.
Repare-se que, com isto, eliminei o queijo da Serra. Coisa imperdoável, como seria também o esquecimento do S. Jorge, do Serpa, do Azeitão. Não é culpa minha, é de quem o candidatou como entrada, presumo que a confraria. Muito mal andam as nossas confrarias! Um queijo, e logo o da Serra, é entrada? Queijo é sobremesa e, no caso de um Serra, a comer acompanhado por um bom Porto.
Passo para a outra grelha, a das regiões. Respeitando a regra dos 3x7, vou considerar como regiões Entre-Douro-e-Minho; Trás-os-Montes; Beiras; Ribatejo, Lisboa e Estremadura; Alentejo; Algarve; Ilhas.
Entre-Douro-e-Minho: bacalhau à Gomes de Sá, tripas à moda do Porto, rojões. Porque só podem ser três. A seguir, lampreia à bordalesa, cabrito assado, papas de sarrabulho, toucinho do céu, pudim do abade de Priscos. O caldo verde, eleito no fim, é uma banalidade culinária.
Trás-os-Montes: cabrito assado, folar ou bola, alheira de caça. Porque só podem ser três. A seguir,  feijoada à transmontana, posta de carne, rabanadas, cabidela, chícharos, cogumelos selvagens. 
Beiras: morcela da Guarda, chanfana, leitão. Porque só podem ser três. A seguir, trutas do Zêzere em escabeche, perdiz de escabeche, maranhos, tijelada, barriga de freira, ovos moles, pastéis de S. Clara, pastéis de Tentúgal.
Ribatejo, Lisboa e Estremadura: sopa rica de peixe, amêijoas à Bulhão Pato, frango na púcara (há quanto tempo não vejo esta coisa excelente, minha confeção frequente, nas ementas dos restaurantes?). Porque só podem ser três. A seguir, lagosta suada, bacalhau à Brás, sardinha assada (bem boa, mas coisa primária a ser maravilha gastronómica?), sopa de pedra, açorda de sável, “açorda” de marisco, torricados, caldeirada, pão de ló, queijadas de Sintra, creme de camarão. 

Sendo a grande zona metropolitana, é vulgar encaixar nela pratos nacionais, generalizados e de origem desconhecida. Por exemplo, os variados salgados, as iscas, o bife à café, o bife de cebolada, as ervilhas com ovos, as favas guisadas, os caracóis, os ovos verdes, os peixinhos da horta, os pipis, as farófias, o arroz doce, o pudim flã, os pastéis de nata, o bolo-rei.
Alentejo: açorda, ensopado de borrego, carne de porco frita com migas. Porque só podem ser três. A seguir, borrego assado, sopa de cação, pezinhos de coentrada, sopa de beldroegas, gaspacho, ovos com espargos, lebre com feijão, empadas de galinha, doces muitos.
Algarve: amêijoas na cataplana, bife de atum, D. Rodrigo e outros docinhos! Porque só podem ser três. A seguir, estopeta de atum, choquinhos com tinta, canja de conquilhas, xerém, cozido de grão. 
Ilhas: polvo guisado em vinho tinto, alcatra, sopa de funcho. Porque só podem ser três. A seguir, milho frito à madeirense, bolo do caco da Madeira, bolo de mel da Madeira, sopa de peixe com uvas de agraço, morcela de S. Miguel, peixe recheado, torresmos de molho de fígado, fava rica de taberna, função do Espírito Santo, lapas, carne “assada” na panela, massa sovada, doce de vinagre e muitos outros doces de colher.
Como é que eu escolheria as sete maravilhas? Esta limitação numérica é um insulto à riqueza e diversidade da nosso riquíssimo e variado património gastronómico.