quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Aperitivo

Em jantares de amigos até esmerados, fico muitas vezes com a ideia de que o esforço que fazem para apresentar um prato agradável ou uma boa sobremesa não tem correspondência na secção prévia, o tempo de antes de ir para a mesa. Também leitores do meu livro “O Gosto de Bem comer” me dizem que não encontram lá muitas sugestões (o que julgo ser afirmação um pouco injusta). Por isto, sai hoje nota daquelas que motivarão comentário de “post de pouco nível gastronómico, banalidade, quem é que não sabe isto”. 

Garanto que muita gente, meus correspondentes, não sabe isto. Lembro que gosto de ser um amador com nível decente que gosta de ajudar amadores com gosto mas com nível “indecente” a passarem a nível decente. O resto fica para os profissionais, por um lado, ou para os que, no outro lado, não se importam muito com essa coisa da decência. 

Claro que só vou falar desta fase prévia do jantar a nível doméstico. Os "amuse bouche" de grandes restaurantes, já à mesa, são outra coisa. Todavia, o que escrevo também vale para alguns restaurantes em que temos de esperar no bar, com uma bebida, até a mesa estar pronta, muitas vezes mais demoradamente do que devia ser. Frequentemente, essa bebida não tem acompanhamento que valha.

Aperitivo: uma bebida e qualquer coisa a ir com ela. É tão importante que ocupa um terço do espaço da minha sala (foto) em convívio informal a rasar o chão, a par da zona da mesa e da zona de sofás pós-prandial, tudo com grande porta deslizante a abrir para o meu território, a cozinha. Em festa, eu estou num lado da porta e a morena no outro com os convidados, quando estes não estão nos bancos da ilha central da cozinha, do lado oposto ao mestre.

Primeiro, uma bebida. Como estou relativamente limitado por razões de saúde, não mando eu e vou pelo que sei que os amigos apreciam. Geralmente, nada de bebidas fortes – já lá vai o tempo do uísque e do gin, hoje cada vez mais tomados como “digestivos”. Antes champanhe bruto, um Biscoitos, Madeira, Moscatel ou outro generoso (reparem que não falo de Porto, para aperitivo), um bom branco muito seco ou até cerveja. Tenho um primo que me pede sempre um tinto, e faz muito bem. As minhas amigas, seguindo a morena, perdem-se por um rosé. Quem sou eu para discutir gostos femininos?

Qualquer coisa a ir com ela. Para mim, cada vez mais “dips” (pastas ou molhos muito espessos) que se colhem com qualquer coisa, a simular uma colher. Tem aspeto de ritual. Encher a mão com uma data de cajus é coisa grosseira. Servir-se de uma coisa pseudo-colher para apanhar um pouco de pasta, com a necessidade de escolher entre umas tantas (não demais), já é ato gastronómico.

Apanhar com quê? Coisas que faço em casa, crocantes, mas não vou complicar esta nota. Nas boas lojas de gourmet há uma boa variedade de crocantes que servem muito bem de colher. Em qualquer supermercado, também minitacos, hóstias fritas de arroz, bolachas muito finas, até boas batatas fritas de pacote podem ir bem! Gressinos são excelentes, em firmeza e suavidade de sabor, para molhar em pastas, mas têm o grande inconveniente do desperdício. A não ser que contemporizemos com alguma promiscuidade, cada gressino só vai uma vez da pasta à boca, viagem de ida sem volta. A habilidade – ainda não experimentei – é molhar abundantemente pelo menos 5 cm de gressino. Até se pode fazer campeonato, o que alegra o jantar.

Outro tipo de coisas que se podem usar para molhar são vegetais duros, crus ou escaldados muito rapidamente: tiras de aipo, cenoura, nabo ou cherovia, curgete ou pepino (sem o interior mole), palitos grossos de palmitos, raminhos de brócolos ou couve-flor, espargos verdes, talos de funcho, lâminas de cogumelos duros, etc. E porque não, conforme os “dips”, coisas como palitos grossos de melão, de abóbora dura, cebolo, tiras estreitas de courato ou torresmo fritas? Até já usei mexilhões ainda presos a metade da casca.

E os “dips”? Se “googlarem”, são muitas centenas. Só eu já improvisei muitos e muitos, em jantares de amigos ou até só em ceias amorenadas, embora muitas vezes me esquecendo de os passar a escrito. Ficam aqui apenas ideias muito gerais. 

Começo por queijos. A coisa mais simples é um queijo de pasta mole, de dimensão média (cerca de 12-15 cm) de vaca (Camembert, alguns açorianos recentes) ou de ovelha pouco curado, levados ao forno ou ao micro-ondas e cortados a toda a superfície superior. Se o queijo já estiver bastante curado, pode ser difícil colher a pasta a não ser com uma faca ou colher pequena e passá-la para uma minitosta ou uma cracker. 

Mais variado é imaginarem uma pasta de queijo (ou Philadelphia, mascarpone ou ricotta), com alho, com presunto, com pimentas, com ervas, ou com hortaliças. Por exemplo, muito simples, de inspiração alentejana (alho, chouriço, coentros) ou açoriana (malagueta, alho, boa dose de pimenta da Jamaica). Também transmontana, terrincho moído com recheio de alheira de caça e um toque de azeite e azeitonas. E, como sou provocador, até digo que, sem muita exigência, e aldrabando por não mostrar a embalagem industrial, servem umas pastas que uso para barrar o pão da ceia, com alguma diversidade, da Président. 

A seguir, os mariscos. Claro que muita gente aldrabará, sem confessar, juntando substância com delícias do mar (de onde raio terá vindo nome tão piroso? Já não me lembro). Hoje, há a preço acessível miolo de camarão e carne de caranguejo. Se em peça com cascas, dá aproveitamento de concentrado de cozedura prolongada das ditas, para acentuar o gosto. Como regras gerais, envolver a substância em coisas suaves que não abafem o gosto do marisco. Maionese, aioli, aveludado de legumes ou até de galinha, desde que muito suave, redução de coisas adequadas em vinho branco seco, ervas com escolha muito criteriosa. Para mim, a melhor erva para mariscos é uma que se associa normalmente a carnes, o estragão.

De peixes, o atum fresco, o espadarte ou a cavala, com maior cuidado o atum de conserva e o salmão. Também o não peixe polvo e, claro, uma brandade de bacalhau, pouco espessa e bem temperada, a vosso gosto criativo. Não vou dar dicas, é mesmo caso para desafio de imaginação. Deixo só uma ideia geral, para peixes: comecem por um escabeche e transformem-no numa pasta. Vão ser importantes os condimentos mediterrânicos e os temperos macaronésicos. Também ingredientes muito usados, como azeitonas, filetes de anchovas ou alcaparras, massa de pimentão, etc., etc.. 

Outro capítulo, ovos. Podem-se preparar variadíssimas bases, de legumes, queijos, enchidos, etc. Junta-se alguma coisa a engrossar, por exemplo tostas ou crackers raladas, eventualmente cremificadas com um pouco de aveludado, nata espessa ou iogurte, mas deixando lugar destacado, no final, para os ovos. As gemas, separadas das claras, vão ao micro-ondas (não dou indicações precisas, porque cada aparelho é único) até ficarem com consistência cremosa, nem cruas nem cozidas. E é só misturar com o resto, com os temperos adequados. Lembrar que gema de ovo fica sempre bem com um toque de tempero com noz moscada, assim como um pouco cortada com sumo de limão.

Inevitavelmente, as pastas de fígado, minha grande predileção. Muitas vezes, reina em aperitivo na minha casa pura e simplesmente a terrina do “je”. Mas dá tanto trabalho e exige tão constante acompanhamento que, na prática, a substituo por um “dip” de pasta de fígado, de consistência mole para colher ou um pouco mais dura para barrar tostas ou bolachas não doces, com sementes. Quantas variações, mas deixando aqui dicas sobre coisas que ligam muito bem para uma pasta final, que até pode ter como base – porque não? – uma boa pasta de fígado de pato industrial (de ganso, para este efeito, não vale a pena em termos de qualidade-preço): um pouco de presunto ou toucinho fumado, cogumelos, espargos verdes, alcachofras, “chèvre” moderado, vinhos generosos, laranja, agridoce de frutos silvestres, zimbro, pimentas exóticas.

Depois as fantasias, misturas contrastantes e extravagantes do que vejo no supermercado, que até pode ser bacalhau com uma fruta, leite, alho e sei lá que mais; ou misturas moídas de enchidos e frutas; ou variantes mais ou menos desviantes do guacamole; uma coisa tipo moqueca, moída e com a consistência devida; “caviar” com nata azeda e funcho; curtumes misturados com uma compota e um pouco de aveludado concentrado; variantes suavizadas e enriquecidas de tapenade; tahini e variantes, etc.. Ou coisas de inspiração exótica: com base em iogurte ou leite de coco, manga, tamarindo, caril; ou óleo de palma, quiabos e abóbora; ou miso, gengibre rosa e wazabi (wazabi, coisa que detesto) eventualmente com algas aquecidas e maceradas; etc.. Sobre isto, já disse demais, inventem!

A propósito da última evocação, japonesa, lembrei-me de uma alternativa a “dips”, não exatamente pastas: coisas moles e encorpadas por si próprias ou por mais ingredientes ou por molhos, como arroz à japonesa, mais húmido e colado do que habitualmente, com o que merecer por companhia, ou cuscus, ou farofa, ou milho moído grado, ou nabo ralado um pouco grosso em mandolina. Em todos os casos, ao contrário dos “dips”, a notar-se bem o ingrediente de base. Claro que a “colher” deve ser adequada, dura e seca. Provavelmente será melhor servir sobre minitostas ou bolachas, servindo-se de faca ou colher. Não tenho experiência mas certamente que a vou ter. Depois conto.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Ai, a técnica

A net está infestada por coisas da maior banalidade culinária, mas com muitas tias a dizerem que “querida, que bom”. Confesso que tenho tendência para me irritar com isto. Não devia, o meu nível é outro, o mundo das tias da cozinha devia ser-me estranho. Claro que não figuram, neste sítio, na minha lista das recomendações. 

Mas penso em muitos leitores que querem mesmo aprender e que estão a ser aldrabados. Penso também em blogues de pessoas que até parecem ser bons cozinheiros e gastrónomos mas que pactuam e propagandeiam cozinha de revista de cabeleireiro. 

Faz-me mais impressão ter de recomendar, com inteira justiça, um ou outro blogue de qualidade, mas que alinham em propaganda, jogos ou brincadeiras com outros de qualidade mediana ou até completamente medíocre.

Afinal, isto é como na literatura. Leitor exigente, que obviamente não compra Margaridas e Zés, porque é que se há de preocupar com o equivalente de escrita culinária na net, de tias? É só chafurdar na porcaria.

Hoje tenho razões para dar um exemplo. Se calhar o bom cozinheiro esmera-se na saudade da sua companheira de boa boca, temporariamente ausente. Homem sozinho tem de compensar a sua solidão. Ai, quando um homem gosta a sério da vida! Epicuriano mas também hedonista, a embrulhar nestas clacicisses coisas de banalidade. 

Aproveito porque estou a preparar um livro sobre “cozinha açoriana elaborada” e tenho de testar as coisas que vou inventando. Nem todas, como esta de hoje, se ajusta ao propósito e perfil do livro, mas ficam como "produtos colaterais". Já vão por centenas, um dia tenho de dizer que já chega. O que fiz hoje, sendo um prato banal, parece-me exemplo, muito simples e desafiador, do que é o rigor da técnica culinária, muito mais do que de imaginação criativa. Aqui vai, coisas de minuto a minuto, que só não leva prescrição de temperatura porque nunca um fogão é igual a outro. 

O meu jantar de hoje, coisa banalíssima, arroz do mar, muito simples. Só lhe vale em qualidade é a técnica, neste caso visivelmente inspirada na de um bom risoto. Claro que não é nenhuma técnica exigente, à Adriá. Apenas a bem conhecida gestão dos tempos – tenho quatro cronómetros de cozinha junto ao meu fogão e muitas vezes estão a funcionar simultaneamente, para coisas diferentes. Publico esta nota só como exemplo de coisa básica mas desprezada por muitas pessoas. É com estas coisas básicas, mais do que com esquisitices pretensiosas para amador, que muitos leitores ganharão o prazer de ouvir os seus convivas também amadores dizerem que aquilo está muito bom.
Mistura de garoupa, cherne ou mero, amêijoas, lapas, polvo, caranguejo, cavaco, a perfazer 750 g. 4 c. sopa de manteiga (de facto, usei óleo cremoso de cozinha 70%), 50 g de linguiça de S. Miguel (ou chouriço picante alentejano), 1 cebola pequena, 2 dentes de alho, 250 g de arroz carolino, 4 dl de “fumet”*, 2 dl de vinho branco. 100 g de polpa de tomate. 2 limões galegos, 12 uvas brancas verdes, 50 g de nozes. Malagueta, açaflor, sal (compensando o “fumet”), pimenta branca, preta e da Jamaica, salsa.
Cozer separadamente até ½! de cozedura os peixes e mariscos, em água salgada (melhor se for água do mar!, que não tinha) e arranjá-los em pedaços bem visíveis.

Cortar a linguiça em rodelas finas e alourá-la na gordura, até colorir e dar bom sabor, em tacho largo ou frigideira alta com tampa. Rejeitar. Na mesma gordura, refogar medianamente a cebola e o alho e saltear bem o arroz, até ficar translúcido. Juntar a polpa de tomate e mexer bem. Entretanto, ter bem quente o fumet e o vinho.

Considerar este momento o tempo 0 e a partir daqui: de 3 em 3 minutos, juntar uma porção da mistura de fumet e vinho, incorporando bem, até quase secar; aos 9 minutos, juntar o resto do líquido (cerca de metade), tapar e baixar o lume ao mínimo; a 2 minutos (a partir do tempo 0), juntar o polvo, em rodelas; a 5 minutos, as lapas descascadas; a 8 minutos, as amêijoas e a polpa de caranguejo; a 12 minutos, os pedaços de peixe. A 15 minutos, as uvas e as nozes.

Aos 18 minutos, corrigir o tempero, envolver com 2 c. sopa de manteiga e 1-1,5 c. sopa de sumo de limão galego, apagar o lume, com o tacho tapado e aguardar 2 minutos. Servir com salsa ou coentros acabados de picar.

Julgam que isto é mariquice de cozinheiro chanfrado? Então baralhem os tempos e logo verão a diferença. 

* Fumet: Para um "fumet", há uma decisão estratégica. Pode-se comprar bons peixes, para receitas em que só se vai usar os lombos. Não é preciso comprar mais nada, porque o resto do peixe, cabeça e espinha, vai fazer o caldo. Se não, é preciso comprar à parte cabeças de peixe e uns tantos peixes "ordinários", carapaus e seus primos, se possível com "tripas". Hoje cresceram-me cabeças e espinhas. Geralmente, uso coisa que congelo, preparada semanalmente:
Restos de peixe (cerca de 1 kg), 1 dl de azeite, 2 cebolas médias, 2 alhos franceses, 250 g de cogumelos, 3 dentes de alho, 1 folha de louro, 2,5 dl de vinho branco, 1 ramo de salsa, sal marinho, pimenta branca, 1 l de água de nascente ou filtrada por carvão ativado). 
Aquecer o azeite, numa panela e colocar uma camada de cebola às rodelas, alho francês às rodelas finas, cogumelos em lascas, dentes de alho cortado às lascas, com o louro. Alourar, não mais do que 2 minutos, mexendo. Juntar o vinho branco, misturar e juntar os restos de peixe, com as ervas e temperos. Cobrir bem com água de nascente e cozer a lume baixo, cerca de 30 minutos. Escoar e coar (conforme o uso a dar ao fumet, pode ser melhor filtrar).
NOTA –  E façam três testes básicos à honestidade desses blogues de queridas. 1. Em relação a uma receita "inventada" de raiz tradicional, vão aos clássicos e lá a verão chapada. 2. Quando são "adptadas", significa que levam mais uns cogumelos ou coisa a despropósito, a perverter a receita original. 3. Se colocarem um comentário crítico, claro que a autora nunca o publicará.

Molhos aos molhos

Escrevendo há dias sobre o bife à café (a que acrescentei uma nota brejeira de velhas memórias), lembrei-me de que, na cozinha tradicional portuguesa, com exceção dos molhos de bifes e um ou outro menosprezado escabeche ou molho de vilão, salvo os muitos molhos da cozinha tradicional açoriana, molho é coisa que vem ligado ao guisado, sem autonomia. Ninguém tem receitas de um molho, para fazer à parte e servir no fim.

É coisa oposta à cozinha francesa erudita, em que o mesmo ingrediente, uma salada, um lombo de peixe, um turnedó, umas banais almôndegas, saem completamente diferentes quando cozinhados primariamente e depois regados com mais ou menos quantidade de um molho. Também é assim hoje na cozinha de autor, em que praticamente não há “pratos completos”.

Sempre cultivei a criação de molhos. Muitos estão descritos no meu livro “O gosto de bem comer”, praticamente esgotado. Como não faço negócio com isso, não insisto numa segunda edição. Prefiro disponibilizá-lo “online”, gratuito. Quanto a este capítulo de molhos, aqui vão os links para apresentação e para descarga. É um gesto de amizade para com muitos leitores que, ao longo dos anos, me escreveram a dizer simplesmente que tinham gostado do livro e que lhes tinha dado proveito. À medida que for inventando novos molhos – e acontece-me muito frequentemente, porque me estimula e me diverte – acrescento a este livrinho e dou notícia.

Cozam, fritem, grelhem, o que quiserem: peixe, aves, legumes, carnes. Sabe ao mesmo. A diferença, magnífica, está na guarnição e, bem combinada com ela, no molho.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Os meus restaurantes (I)

A lista vai na coluna lateral. Mas o Blogspot só me deixa incluir restaurantes com páginas na net, o que não é o caso do meu restaurante mais próximo, mais de estimação, religiosamente almoço de sábado, à porta de casa, a Charrua, na Praceta do Comércio aqui em Alfragide.

Tudo coisa familiar. Pai e filhos, de inexcedível simpatia, servem à mesa, a mãe superintende na cozinha, onde avultam um ou dois cozinheiros africanos. Televisão a dar o futebol, toalhas e guardanapos de papel, mesas apertadas, mas já se sabe que é assim nestes restaurantes de vizinhança.

Mais importante é uma ótima ementa, de cozinha tradicional mas com pratos quase esquecidos em outros lados, coisas do meu tempo de criança, sempre a variar de acordo com as compras. Confeção impecável, de velha cozinheira matriarcal. Aceitação bem cumprida das exigências de gosto pessoal no tempero de cada prato. Muito aceitável jarro de vinho da casa, de Pegões. No fim, almoço de dois por cerca de 20 euros totais. Pode-se recomendar melhor?

Claro que não estou a sugerir que se desloquem quilómetros a vir à Charrua, em Alfragide. O que devem fazer é descobrir Charruas ao pé da vossa casa. Deve haver, aposto. Acima de tudo, premeiem a coisa essencial deste tipo de restaurantes: o gosto de bem comer, de bem servir o que se gosta de bem comer. Eu vejo um restaurante destes pelo aspeto de bom comedor do proprietário, da maneira como ele fala do que serve. Outra velha regra, quando se ia por estradas antigas, era ver onde havia mais camiões estacionados à hora de almoço.

Bom senso e bom gosto

Por via do Mesa marcada, fui dar com um caso aparentemente trivial mas instrutivo, até a merecer artigo desenvolvido no Guardian. Um jovem gastrónomo amador (se é que há gastrónomos profissionais), James Isherwood, criou um blogue, “Dining with James”, que ainda só vai numa dúzia de entradas, com a sua apreciação crítica de restaurantes a que vai.

Foi ao Hibiscus e criticou-o. Este restaurante londrino, como muitos saberão, é famoso, tem uma estrela Michelin e a sua cozinha é da responsabilidade de Claude Bosi (ver a sua biografia no sítio do restaurante). Nunca lá fui, mas até acho que os seus menus não me atraem muito.

O pobre do James julgou que tinha o direito de criticar o restaurante. Se calhar, não tem grande experiência e qualificações para o fazer, mas isto é coisa que não pode limitar a sua liberdade. Cabe aos seus leitores avaliarem as suas capacidades e confiarem ou não nas suas críticas. É a minha atitude, quando escrevo comentários sobre restaurantes em que comi bem – e gosto muito de os escrever – ou, infelizmente, comi mal.

Mas o que é que se passou de bizarro neste caso? O blogue era pouco conhecido, podia continuar assim. Simplesmente, Claude Bosi fez a burrice de lançar toda uma campanha no twitter a desfazer o jovem James, no que foi acompanhado clubisticamente por outros chefes. Uma coisa que poucos tinham lido transformou-se num caso de sucesso. O artigo do Guardian que referi acima dá uma boa descrição.

Há coisas no mundo da alta cozinha (não creio que em Londres um chefe só com uma estrela seja obrigatoriamente alta cozinha) que cheiram que enjoam a primadonismo, a excessos de delicadezas (como diria a minha avó), a suscetibilidades, a invejas mesquinhas, a atitudes de arrogância intransigente e vaidosa. Sensibilidades de artistas!

Há tempos, pus “online” uma coletânea de receitas minhas. Um profissional de alta qualidade escreveu-me simpaticamente, a agradecer, dizendo que tinha sempre qualquer coisa a aprender com amadores de bom nível. Tanto quanto o conheço, sei que estava a ser sincero.

A reação do Sr. Bosi parece significar a ideia que ele tem de que quem vai ao seu restaurante deve ir com a atitude de grande humildade de quem merece o favor especial de ser servido pelo chefe, deve obrigatoriamente deslumbrar-se, deve pensar que o que está a comer é uma espécie de teto da Capela Sixtina que precisa de séculos para ser devidamente reconhecido.

Como escreve o articulista do Guardian, " Why on earth do chefs think that I, as a paying customer want my expensive evening out to be sullied with a confrontation with an overbearing chef? It's utter arrogance. The interesting thing here is that Bosi assumed that a paying guest wanted the respect of the chef rather than a nice dinner. And that says it all."

domingo, 11 de novembro de 2012

Ovo estrelado

Hoje, porque escrevi sobre o bife com ovo estrelado, vai sair parvoíce, daquelas que alguns dos meus leitores criticam, “como é que este gajo escreve tais banalidades?”, esquecendo-se que bem metade dos meus leitores me escrevem a pedir dicas como principiantes de cozinha. 

Sabem fazer bem um ovo estrelado? É claro que há muita variedade no gosto por um ovo estrelado, mas vou pelo meu gosto: clara bem frita, com o bordo queimado, gema moldada mas líquida.

Há duas técnicas de base. Em qualquer delas, uma frigideira siliconada. Gordura abundante, a gosto. Hoje a moda é o azeite, de que não gosto nada para frituras, fica enjoativo para meu gosto. Na minha cozinha de infância, fritos eram em óleo de amendoim (óleo de mendobi, como lá se dizia, e que também ia para a fábrica de sabão), em muitos casos em manteiga, em banha nos guisados da cozinha tradicional. Hoje, neste caso dos ovos estrelados, uso uma boa dose de um produto dietético para cozinha, Becel cozinha óleo cremoso 70%, passe a publicidade. Nos dois casos, a gordura já bem quente.

Primeira técnica. Usar uma frigideira bastante mais larga do que o ovo, para se poder colher a gordura, inclinando a frigideira. Derramar cuidadosamente o ovo e ao fim de meio minuto temperar a clara com pimenta (para mim, metade preta metade branca, moídas no momento) e a gema com flor de sal. Com uma colher, recolher gordura quente debaixo e despejá-la sobre a clara, nunca sobre a gema. Repetir isto frequentemente, até a clara estar frita sem a gema ficar seca.

Segunda técnica. Ao partir o ovo, separar a gema e a clara. Começar por fritar a clara, temperada com pimenta. Na altura adequada, com a clara já coagulada mas ainda não frita, juntar a gema no centro da fritura, temperar com sal e deixar equilibrar a fritura da gema e da clara. 

Outra vez o bife à café

Muito tenho escrito aqui sobre o bife à café (não é bife com café!). Hoje, é coisa que se come ainda em algumas cervejarias tradicionais ou cafés-restaurantes como o Nicola ou o Império. Na grande generalidade dos restaurantes de bairro, come-se o “bife da casa” – seja lá o que isto signifique – ou o habitualmente execrável bitoque.

No meu tempo de jovem estudante, o bife era essencial, era o luxo que nos permitíamos depois de uma reunião associativa bem frutuosa. Como muitas dessas reuniões eram na minha casa, na então Av. 28 de Maio, no prédio depois famoso pelo caso Casa Pia, de que nunca suspeitei, lá íamos ao José Ricardo, na Av. da República. Não era grande coisa, mas era notável em relação qualidade preço: um bom bife por 12$50 (hoje 6 cêntimos!). Perto também havia o 1º de Maio. De resto, mais uns icónicos, a sobressair a Portugália, então só na cervejaria original na Almirante Reis. Com o terraço com cinema, coisa magnífica.

O bife à café tem muitas variantes porque a sua origem tem pouco mais de 100 anos. Antes, o que se comia nas tascas anexas aos talhos era um simples bife frito em banha, muitas vezes com alho e louro, "à cortador". Temperos e presunto vieram depois. Também era assim na minha terra, e até hoje, mas, lá, juntando malagueta e desglaciando com vinho branco.

A grande inovação veio com o bife do Marrare do polimento, na R. dos Sapateiros, afrancesado, com pimenta preta e nata. Caiu no gosto dos seus frequentadores de ceia depois do S. Carlos, sabia-lhes ao que Fradique escrevia nas suas cartas, só não entrou no jantar oferecido por João da Ega ao cornudo do Cohen porque bife não era coisa requintada para jantar de gente bem educada e no Hotel Central.

Mas bife com natas era coisa amaricada e carota para o cliente de taberna. Daí vem a sua adaptação a bife à café. Bifes à café há muitos, mas podemos definir o essencial: à manteiga de fritar o bife junta-se farinha ou fécula de batata diluída em leite; tempera-se com mostarda e sumo de limão. Claro que sem café, “à café” e “com café” são coisas bem diferentes. Como receita básica, é tudo. O resto é aquilo em que se vê o artista.

O meu artista de hoje estava mal inspirado. Fui ao Relento, em Algés, boa catedral de bifes da minha juventude. Tinha ido lá há um ano ou mais, mas a morena moderou-me, “está muita gente, talvez seja a razão da má qualidade”. Hoje não havia razão, almoço com o meu filho em sala vazia. Opinião unânime de dois: boa carne (creio que alcatra), grande quantidade (talvez 300 g), ovos de fritura impecável em equilíbrio de gema e clara, boas batatas fritas. Mas molho execrável, farinhento, a saber só a mostarda de má qualidade, nem Savora devia ser. Só água, nada de sabor de leite. Nada do fundo de fritar o bife.

Para não me acusarem de falar de poleiro, aqui fica a minha receita.

À MARGEM – Vai sair coisa brejeira. Há muitos anos, ainda eu andava pelos lados de Entrecamos, is muito a um restaurante banal, de "barra", ali na zona. era seu frequentador um pândego, miserável mas muito composto e de porte digno, que só jantava uma taça de arroz doce, não tinha dinheiro para mais mas também não pedia. O que fazia sempre era lastimar-se para os vizinhos do banco ao lado: "nesta altura é que me lembro daquele ordinário do meu capitão: saia lá esse cabrão de bife com as putas das batatas fritas!"

domingo, 4 de novembro de 2012

Saia uma estrela, já

Nunca fui ao antigo Belcanto e ainda não tinha ido ao novo, de ópera regida por José Avillez. Também não conhecia a cozinha de Avillez, porque não calhou ir no seu tempo ao para mim sempre deslumbrante Tavares. Afinal, minto ao dizer que não conheço a cozinha de Avillez: em dia de cinema semanal, quando no Colombo, obrigatoriamente uma empada da Empadaria do Chefe, coisa que julgo ser iniciativa conjunta com outro “fast food” notável, português, o H3.

Ontem foi dia especial, com 68 anos em cima, a terminar obrigatoriamente com grande jantar a dois, no Belcanto. Duas salas, fumadores e não fumadores separados, como dita a lei. A de entrada, dos fumadores, tem uma aparência mais moderna. A outra, no fundo, é de um restaurante queiroziano, possivelmente reproduzindo o tempo em que lá ia o meu saudoso professor João Cid dos Santos, o dos ovos à professor, hoje dieteticamente proibidos. Pelo meio, passa-se por um corredor envidraçado, a deixar ver a cozinha e o ar sério e compenetrado da equipa de doze cozinheiros.

Nem vale a pena falar de amesendação, serviço, preliminares, nível de informação dos empregados de mesa e do escanção, tudo impecável. Aliás, não vou fazer crítica. Nada houve de minimamente criticável nesse jantar. Só não gostei de uma coisa, problema meu: como pré-sobremesa, uma framboesa glaceada com uma manchinha de wazabi. O mal é que eu detesto wazabi, mesmo uma cabeça de alfinete é demais, mas Avillez não tem culpa.

Avillez tem óbvias influências de Adriá, mas só posso dizer isto por ouvir, porque não tenho o termo de comparação. Nunca fui ao El Bulli e até tenho algum preconceito, por simpatizar mais com o estilo de cozinha de Santamaria, que polemizou com o seu colega, como muitos sabem e leram. A cozinha de Santamaria é mais simples, mais natural, usa mais temperos tradicionais e com maior mistura em cada prato, é mais guarnecida; diria, como há dias, que é mais “sinfónica”. Gosto muito, é mais a minha prática. Mas se Avillez é bom discípulo e fiel intérprete de Adriá, rendo-me.

Um dos pontos mais fortes do Belcanto é a conjugação de um grande bom gosto na imaginação das receitas com uma excelente confeção, como raramente tenho visto. Mesmo que coisas de moda, são “ares” que são mesmo ares, esferificações “explosivas”, molhos aparentemente normais que sobem de volume quando regados com um pouco de outro molho espesso a meter-se por debaixo, uma manteiga perfumada com fumo, etc. Em alguns casos, como neste último exemplo, topei a técnica e os sabores, em outros nem por sombras. 

Vamos então à descrição do jantar, sem crítica. A acompanhar tudo até aos pratos, champanhe “a copo” Billecar Salmon Brut (13 € a flute). Não conhecia; muito bom. “Amuse bouche” em ondas sucessivas. Se adicionadas como couvert ao pão e manteigas, 6 €. Primeiro um trio de azeitonas: uma esfera, uma azeitona descaroçada frita em polme também com pasta de azeitonas, mais uma coisa surpreendente, que não percebo - um “dry martini” invertido, com sabor predominante de azeitona, mas também a saber ao cocktail tradicional, apesar de terem dito que não tinha álcool. Evaporado?

Depois, um Ferrero Rocher com bacalhau com grão. Claro que o nome era brincadeira. Era uma bola de pasta de foie gras com manteiga de cacau e avelã, sabores subtis mas adivinháveis, forrada com chocolate amargo e farrapos dourados. O bacalhau misturado com pasta de grão vinha sobre um frito muito fino de arroz, ao estilo dos crocantes esponjosos orientais, e com amendoim (?) moído. 

A seguir, um “must”, simplesmente um lombo de cima a baixo de uma sardinha assada, sem mais nada. Via-se que num assado muito bem controlado e passagem, em incubação prolongada, por tempero de um azeite condimentado com qualquer coisa ligeiramente agreste. Com um toque de anchovas? Ou de alcaparras? Ou até de um enchido? Ou de pimentos, porque entre enchidos e pimentão não há zanga? Não consegui perceber, tão subtil era.

Entretanto, o pão, de que ressaltava uma excelente broa, da Nutriva. Quase parecia um bolo. Feita de farinha muito fina, com o fermento a levar um pouco de açúcar. Três manteigas: para mim a melhor, a tal temperada com sal fumado, mas a saber mesmo a excelente fumo aromático; manteiga de avelã; e manteiga simples dos Açores, não podia deixar de ser.

Duas entradas partilhadas. “Rebentação” (23,50 €), servida numa peça de porcelana em forma de concha, muito bonita, é uma mistura de bivalves com molho e "areia" de algas e “ar” de água do mar. Uma delícia. Também lebre com feijão (28,50 €). Vem um pastel de massa tenra todo inchado, quase esférico, a explodir, com um pouco de recheio do feijão. Como é que se faz? Injeta-se ar no pastel? Ao lado, a lebre em pequenos pedaços embrulhada num molho cremoso excelente, em que ressaltava quanto baste (e para mim é baste muito) o sabor do fígado, talvez também um pouco de sangue.

Mudando de vinho, Meruje tinto 2008, um Douro muito elegante e leve (copo a 11 €), a ir bem com tudo, do salmonete ao pombo. E foi isto que comemos. Podíamos também ter escolhido outros pratos que já ouvi gabar: robalo com algas e bivalves ("mergulho no mar"), lavagante em dois serviços, lombo de bacalhau cozido em azeite com guisadinho de favas, raia à Jackson Pollock, cordeiro com puré de escabeche de legumes, bife à Belcanto, leitão revisitado.

O salmonete, o meu peixe predileto, é de repetir, quando lá voltar. Um lombo frito em fundo de gordura, com duas pequenas bolas de espuma de morango e coberto com muito bons mini-gnóquis de tinta de choco. Excelente o molho, uma recriação da típica mistura setubalense de fígados do peixe, laranja e limão. Magnífico. 35 €.

Boa reconstrução é também o pombo à Convento de Alcântara. Como se sabe, a receita canónica é de perdiz, recheada com foie gras e trufas, estufada em vinho do Porto. No Belcanto, é um pombo estufado suavemente, a meio ponto (ainda a carne avermelhada), com molho do tipo da velha receita dos frades, pareceu-me que aligeirado com um pouco de nata, que liga bem com o Porto. Vem acompanhado por uma rodela grossa de foie gras coberta com lâminas de trufa e embrulhada em alface escaldada, e ainda mais, ao lado, o lombinho estreito do pombo muito bem frito, crocante, a contrastar a textura. 35,50 €.

De sobremesa, que não é a secção favorita dos meus jantares, comemos “laranja e xisto”. 13,75 €. Outra surpresa. Para além de laranja com vários sabores, uma grande bolacha de xisto, a pedra cinzenta da ardósia, a saber a chocolate e mais qualquer coisa. Como se faz aquela coisa cinzenta? Será só coisa de corante?

Estranhei o número apreciável de convivas. Na nossa sala, pequena, nós os dois, mais duas mesas cada uma com três pessoas. Na sala maior, à entrada, talvez 15 a 20 pessoas. Para época de crise, nada mau. 

180 euros, duas pessoas. Claro que não é barato, mas já tenho comido por mais em restaurantes estrelados inferiores. E termino com o título. Venha a estrela, que o Belcanto bem merece.

NOTA - Nunca tendo eu ouvido falar de uma receita à Jackson Pollock, perguntei como era. Trouxeram-me uma fotografia do aspeto da raia, exatamente um quadro do mestre americano. Como é que se faz sobre uma raia todo aquele traçado de cores? Inimaginável!

P. S. (24.11.2012) - E saiu a estrela. Parabéns a Avillez.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Carne Stroganov, uma história complicada

Quanto a padronização, sensata, sou menos exigente com a cozinha urbana, aristocrático-burguesa, do que com a cozinha tradicional, um património muito mais identificativo da história culinária de todo um povo ou, pelo menos, grandes regiões. 

Pouco me interessa que haja milhentas receitas de bacalhau com natas, mais ou menos inspiradas (muitas vezes muito mal) no bacalhau à Conde da Guarda e em mestre João Ribeiro. Não é prato tradicional, façam como quiserem, desde que não invocando a receita do mestre. Diferente será fazer bacalhau à Gomes de Sá com natas e usar à mesma o nome do célebre homem de secos e molhados.

Também acho perfeitamente legítimo que, na minha casa de miúdo, contra a generalidade dos usos, almôndegas sempre tenham sido feitas (e de forma complicada) de fricassé, ou até, melhor dito, numa variante de molho poulette. Que de geração em geração familiar se tivesse inventado, melhorado, adaptado pratos de certo requinte, como peixe assado com nozes e azeitonas ou galinha de molho de perdiz ou um arroz que só muito mais tarde começou a ser moda, chamado de árabe. Não está em causa nenhuma violação dos cânones da cozinha tradicional, e mesmo estes há que saber tratá-los com bom senso e com a evolução de ingredientes, gostos e técnicas hoje ao dispor.

Vem este prolegómeno a propósito do jantar de anteontem e de alguma conversa à volta dele. Mensalmente, tenho um ótimo cozinheiro que, como agora se faz muito, traz as coisas prontas, tudo nos trinques. Simplesmente, não é de nenhuma empresa, é o meu alter ego gastronómico que frequentemente refiro aqui. Anteontem trouxe um stroganov, porque leu a receita original e a sua história, ao que parece, não sei em que tradução do livro de Elena Molokhovets, de 1861 (“Oferta para jovens donas de casa”). Talvez com exceção do “boeuf bourguignon” e da “paella”, mas que não são de invenção erudita, não deve haver prato de “cozinha de restaurante” com tal variedade inventada ao longo dos anos e por todo o mundo.

Comece-se pelo nome e sua razão de ser. Stroganov ou strogonov ou stroganoff ou strogonoff, este último talvez o nome mais usado entre nós? Se formos pela origem geralmente invocada, tendo tudo a ver com variadas famílias Stroganov, desde aristocratas a grandes burgueses, assim se grafaria, não strogonov ou strogonoff. Mas porquê Stroganoff? Porque em russo o “v” final se pronuncia “f”. No entanto, por exemplo, lê-se Popof ou Pavlof, mas translitera-se sempre do russo como Popov ou Pavlov. Agora para letra em duplicado, stroganoff, é que não encontro justificação.

Quem o inventou? Teria sido o cozinheiro francês de um tal Conde Pavel Alexandrovich Stroganov (1774-1817) General Adjunto do Czar Alexander I, inspirando-se no clássico “fricassé de boeuf” francês? Ou, mais tarde, de um diplomata, outro conde Pavel Stroganov? Ou foi inventado, segundo outra lenda, num concurso culinário de chefes de cozinha de aristocratas russos, em 1890, o que é desmentido pela publicação anterior no referido livro? Até há a história anedótica de o prato ter sido criado porque um tal desses Stroganov tinha perdido todos os dentes e precisava de comer carne muito fatiada e tenra, com muito molho a fazer “ir para baixo”. 

Ou tem história muito mais antiga, como prato popular russo assimilado da cozinha militar, no séc. XVI, quando se levava como ração, em barricas, carne cortada em pequenos pedaços, para se poder descongelar facilmente, salgada e curtida em aguardente, acrescentando-se antes de comer um pouco de gordura e nata azeda? Ou ainda, também com velhas origens populares, coisa muito simples que não tem nada a ver com lendas principescas: em russo, o verbo “strogat” significa cortar em pedaços pequenos.

Certo é que a dispersão pelo mundo dos emigrados russos depois da revolução de 1917 tornou o prato um dos mais internacionalizados da cozinha do séc. XX. Diz-se que esta popularização começou por Hong Kong, onde se estabeleceu uma grande colónia de russos brancos. Daí o hábito hoje muito vulgar de acompanhar a carne com arroz, em vez das batatas da tradição russa.

O livro de Elena Molokhovets foi traduzido (com introdução) por Joyce Toomre, em 1992 (Indiana University Press, ISBN 0-253-36026-3). Lá vem, com o número 635, a “carne Stroganov com mostarda”, “Govjadina po-stroganovski, s gorchitseju”. A receita é muito simples. 
1 kg de carne tenra, 10-15 grãos de Jamaica, sal, pimenta, 125 g de manteiga, 2 colheres de farinha, 4 dl de caldo de carne, 2 colheres de nata azeda, 1 colher de chá de mostarda. Duas horas antes de servir, cortar a carne em cubos pequenos e temperar com sal e Jamaica. À última hora, misturar 2 colheres de sopa de manteiga com a farinha, fritar levemente e diluir com caldo e mostarda, temperando com pimenta. Deixar ferver, a ligar bem e juntar no fim a nata. Fritar a carne no resto da manteiga, juntá-la ao molho, levar à fervura e servir.
Nem cebola, nem tomate, nem cogumelos, nem conhaque. Repare-se no pormenor da Jamaica, hoje pouco usada nos stroganoves que comemos por toda a parte. Também no facto de a carne ser cortada em cubos e a quantidade de nata ser pequena.

Segundo Joyce Toomre, esta receita ficou na memória desse tempo, mas durou pouco, tendo dado origem, rapidamente, a variantes, das quais a mais importante – uso de cebola, tomate e cogumelos – parece datar de 1912, num livro de receitas de Aleksandrova-Ignatieva (não conheço tradução).

O que é que podemos usar como mínima definição comum de qualquer stroganov? Primeiro, essencial, a carne, muito tenra (“filet mignon”) é cortada em tiras finas, salteada a lume muito forte  e reservada, com o suco, para junção ao molho, só antes de servir. No entanto, a receita dita original, de 1861, é com carne em cubos pequenos. E hoje, em muita parte, a carne é guisada prolongadamente no refogado e no molho. Nos blogues brasileiros, como veremos adiante ser provavelmente o país mais imaginativo em relação a stroganov, até há muitas receitas que acabam no forno, mesmo a gratinar queijo ralado.

Segundo, obrigatoriamente nata azeda, coisa típica da cozinha russa. De forma alguma a nata vulgar que por cá se usa. Não é questão de variante legítima, é que o sabor da nata vulgar altera substancialmente o prato. O azedo de fermentação ácida, natural, da nata pode ser facilmente imitado – é o que faz cá uma minha amiga russa – misturando em partes iguais nata e iogurte simples, mais, a gosto, um pouco de sumo de limão ou vinagre.

Terceiro, o acompanhamento. Batata frita em palitos grossos, batata palha, legumes, massas, até milho verde (!), são coisas que se leem nas milhentas páginas de culinária. Vulgar, hoje, é o arroz. Foi assim que eu próprio, há muitos anos, comecei a acompanhar este prato muito frequente na minha casa, porque fazia as delícias dos meus filhos crianças (só rivalizando com maionese de atum, com croquetes com salada russa e com esparguete à carbonara). Mais tradicionalmente à russa, e como faço hoje, batata cozida. Normalmente batata muito bem cozida, esmagada grosseiramente, a fazer de cama à carne com molho. Outras vezes, puré de batata. Outra guarnição tradicional que também uso complementarmente, depois de ter comido o prato em Moscovo, só coisa em pequena quantidade, é pepino de conserva, aliás sempre presente na mesa russa, desde o pequeno almoço até à ceia.

Tudo o resto, lido e provado, não consigo definir como genuíno. Em geral, começa por se refogar cebola. No entanto, o refogado só aparece meio século depois da receita dita original. Hoje também é e quase regra usar um pouco de tomate, introduzido nessa receita de 1912, e também cogumelos. Acompanhamento com batata palha. Nada disto havia na origem. Em contrapartida, Elena Molokhovets inclui mostarda, que hoje nem sempre se usa. Outro tempero vulgar, que não uso no stroganov, é a paprika não picante, ou mesmo o colorau.

O resto é para quem gosta, embora aconselhe dizer que é “stroganov à sua maneira”. Procurem na net, coisas inimagináveis, em geral brasileiras. Carne picada, ketchup, molho Worcestershire ("molho inglês"), vodka, azeite, vinho branco, uisque, vermute, açúcar (!), salsa picada e até – pasme-se – molho de soja! Curiosamente, todos se reclamam da receita original. Também se tem variado no ingrediente principal, o que é uma variação legítima – como a carne à Brás bem típica da Marinha do meu tempo – desde que a variação seja claramente referida: peru, frango, camarão, borrego (no norte de África), até diversas salsichas (estas principalmente na Escandinávia).

Os clássicos não ajudam. A receita do Larousse envolve marinada prévia (e é aqui que entra a cebola), a juntar depois ao molho. Não leva mostarda, contra o inicialmente indicado na receita de 1861, nem tomate, à 1912. No entanto, refere que “uma versão mais russa” usa rebola refogada e mostarda. Escoffier omite o stroganov.

Já agora, o “meu” stroganov, receita da tal minha amiga russa. Costuma ficar muito bom. Mas de forma alguma lhe fica atrás o que comi anteontem, do meu cozinheiro que vem a casa. Estava magnífico.

NOTA – As corruptelas de designações culinárias por restaurantes e cozinheiros pouco instruídos dão coisas engraçadas. Há anos, era vulgar comer-se "carne à morangó". Claro que era à Marengo. E as disparatadas variações, que ainda se veem, do "al ajillo", nomeadamente um tal Guilho que não sei quem foi ou, se é lugar, onde é que fica?...

E A DESPROPÓSITO – Lido hoje num blogue culinário de tias: "o queijo francês mais famoso é o Gruyère, aquele cheio de buracos". E noutro: "o gulache é o prato típico mais conhecido da Polónia, que os meus amigos polacos em Paris faziam muitas vezes". E não se pode exterminá-las?, perguntaria Karl Valentin.