segunda-feira, 28 de março de 2011

Receitas e fotos

Não há dúvida de que eu tenho um problema esquisito, provavelmente snob, em relação às fotos nos blogues culinários. Já aqui deixei essa coisa escrita, em tom jocoso. Esta do jocoso é coisa perigosa, valeu expulsão por três anos de todas as universidades ao meu caro patrício José Medeiros Ferreira, “aka” Zé das barbas. Ele conta a história na sua excelente entrevista à última Pública, mas passo adiante, que este sítio não é de memórias políticas da juventude.
E cá estou eu a devanear antes de ir aos importantes. É pecha de quem menino se fez em conversas de família. E, ao escrever um livro, recebeu largos encómios por as receitas irem embrulhadas em muita conversa fiada. Nem inventei, é coisa velha de gastrónomos que sempre foram cultos e de verve fervilhante. Escreveu-me há dias uma companheira destas lides fazendo-me notar que estava a gostar de fazer o mesmo. Faça, laranja, faça! Ainda por cima, está a fazê-lo com simplicidade, elegância de “oh, simple things”, não o evidente embrulho de novo-rico cultural de outras escritas. A cozinha é um gosto, uma arte, aquece a alma, o gosto de viver. Só isto pode ser um pequeno - mas que grande - toque de diferença para as blogo-copistas da Nigella e do Jamie.
Isto também me faz lembrar algumas conversas com o meu eficientíssimo editor, antes de lançar o meu livro. Bati-lhe o pé em relação a algumas propostas: livro em formato grande, bem encadernado, papel “couché”, muitas fotografias. Quanto a isto das fotografias, foi fácil fazer o ZC compreender que fazer de novo e fotografar as minhas 270 receitas originais adiaria o livro por dois anos. Demais, convenci-o de que todos esses ademanes são ou para cozinheiros de primeira linha, chefes a merecer edição de luxo, ou então aldrabice de tias; e que eu não era nem um nem outro caso. Diga-se que esta minha posição firme me foi fortemente aconselhada pelo meu alter ego gastronómico, que um dia direi quem é, quando ele deixar de ser visceralmente anti-net e anti-violação da sua privacidade.
No entanto, não tenho nada contra a publicação de imagens nos blogues. Faço-o com frequência no Moleskine, para benefício da qualidade gráfica e também por gozo, brilharete intelectual de referência cultural - confesso - a ver se os leitores percebem a alusão, se até usam a imagem para “googlarem” em busca de mais informação. Num blogue gastronómico, pode cumprir apenas essa função de referência, como a minha recordação da Pedra do Feitiço. Também a transmissão do gosto de ver o nosso trabalho registado na fotografia de um bonito empratamento, até em relações muito privadas, como faz o tal meu alter ego quando me manda a sua última invenção.
Também se justifica no caso de pratos pouco conhecidos ou quando o aspeto não corresponde a versões menos genuinas. Aconteceu-me com a muamba. Infelizmente, a minha foto ficou má e mais valeu não a publicar. Provavelmente ficaram melhores as da minha morena, mas hoje ausente no estrangeiro. Quando voltar, publico a sua foto.
Muito diferente é a longa coleção de fotos num mesmo “post” de receita banal. Cá vai a carne cortada aos cubos. E mais foto da cebola picada. E como fica a cebola misturada com o tomate picado. E do refogado a ferver. E eu a bater a massa, e a recheá-la. No fim ficou assim, mas desculpem a câmara do telemóvel ser fraquuinha, ficou tudo roxo. Há quem publique mesmo assim, mas eu ainda tenho um dedinho de cabeça, não sou astrólogo nem hipnotizador.
Vai longo o relambório. Vai certamente longo demais para quem comenta que eu sou um escritor chato que ninguém consegue ler ao fim de dois parágrafos. Pois, coisas, vieirices (aqui vai outra provocação às tias), culpa de avô mestre da língua! E tudo para chegar ao que podia ter dado um simples parágrafo para quem só sabe “compreender” um “sound bite”. Escreveu algures uma tia que o facto de eu não publicar fotos era sinal de não me querer sujeitar à prova de que tinha feito bem a receita e que o texto não era uma invenção. Ó minha senhora, e eu a julgar que uma receita (o tal texto) era mesmo sempre uma invenção!

domingo, 27 de março de 2011

Cozinha angolana (2) - muamba de galinha

No texto anterior sobre cozinha angolana, “desvalorizei” a muamba, só porque é cá bastante conhecida. Afinal, dedico-lhe esta entrada. Primeiro porque a comi hoje, magnífica, eu apenas a ver e a registar religiosamente todos os pormenores, que ultrapassam  muito o que eu já há muito tempo fazia, a muamba aprendida quando por lá andei, mas ainda sem capacidade de aprendizagem culinária eficaz. Hoje sim, aprendi a fazer muamba com os requintes que merece toda a cozinha que não tem requinte (contraditório? Olhem que não…).
Outra razão para esta entrada ao arrepio do que tinha dito é que tenho sempre de deixar bem clara a exceção à minha regra, atrevida, arrogante, chamem o que quiserem, de que a coisa mais rasca que define a nossa cultura é que “gostos não se discutem”. Claro que se discutem! Com uma exceção, como disse. Os meus gostos não os deixo discutir :-) e o que mais gosto na cozinha angolana é a muamba. Não é mais do que razão para eu escrever sobre ela?
Por hoje, vou referir-me só à mais conhecida, a muamba de galinha. No Zaire, comi com frequência, em casa do meu amigo catequista protestante, uma excelente muamba de peixe, que, com variação, também se faz na ilha de Luanda. Lá no meu rio do paraíso - boa amostra do Amazonas - só levava peixe fresco (no Zaire não se secava peixe, como em Luanda) e tinha como coisa única uma boa molhada de sementes frescas de caju. Vamos então à muamba de galinha. 
4 pessoas. 1,2 kg de galinha, 1 dl de óleo de palma [1], uma cebola grande, 2 dentes de alho, 500 g de abóbora, 600 g de quiabos, 1 tomate pequeno ou 2 c. sopa de tomate de conserva, aos cubos, sal e gindungo (piripiri), sumo de limão.
Cortar a galinha aos pedaços e lavar. Retirar a parte do pé dos quiabos e lavá-los duas ou três vezes em água quente [2]. Escaldar em água a ferver, durante um minuto e escorrer. 
Derreter o óleo de palma e refogar a cebola e o alho, picados. Juntar o tomate picado e continuar a refogar. Juntar a galinha e voltear bem. Água a cobrir, sal e piripiri (a gosto - indicativamente, 3-4 malaguetas ou 1 c. café de piripiri moído, seco [3]). Levar à fervura, em lume forte, baixar o lume, tapar e deixar ferver durante 20 minutos. Acrescentar a abóbora aos cubos pequenos e cozer mais 15 minutos, a lume médio, com o tacho ligeiramente aberto. Juntar os quiabos, cortados segundo o comprimento, se forem grandes. Deixar cozer bem, cerca de 10 minutos, até a abóbora estar bem mole e os quiabos terem engrossado o molho [4]. 
Tipicamente, acompanha-se com funge, uma papa de farinha de mandioca. Há quem confunda dois termos, funge e fuba. Em quimbundo, funge é a papa, feita só com farinha e água. Farinha é que se diz fuba, sendo de mandioca sem outra especificação. Também é muito usada a de milho. Não sendo grande apreciador de funge (de mandioca), comi hoje a muamba com funge de fuba de milho [5]. É fácil de fazer mas tem os seus truques.
250 g de farinha de milho, 1 l de água. Aquecer bem a água mas só a deixar fervilhar. Polvilhar com 3-4 c. sopa de farinha, mexendo muito bem, baixar o lume e continuar a mexer, cerca de 2-3 minutos [6]. Acrescentar o resto da farinha, misturar muito bem e deixar cozer, cerca de 5 minutos, a lume médio-baixo, mexendo sempre. Não leva sal! 
A muamba serve-se em prato de sopa, em cujo fundo se coloca, a gosto, sumo de limão, para “cortar” a gordura [7]. Quem gosta bem de picante, junta a este sumo de limão e mexe bem mais gindungo picado ou moído, antes de se servir da muamba.
NOTAS:

[1] Nunca digam a um angolano que vai usar azeite de dendém… É a designação brasileira (baiana), mas em Angola é óleo de palma.
[2] Ou o necessário para tirar o “ranho” aos quiabos.
[3] O melhor é o piripiri (gindungo, como se diz em Angola) fresco, como eu tinha no canteiro à beira da messe da Pedra do Feitiço. Na falta, piripiri seco, mas nunca os variados molhos que por aí se vendem, com base em azeite, até uísque.
[4] Mas não a resultar tudo numa papa, como já tenho visto. No fim, abóbora e quiabos devem ficar bem visíveis.
[5] Portugueses que não vão em funges não escandalizam nenhum bom cozinheiro angolano se optarem por um puré de batata (não temperado). Confesso que é a minha opção preferida.
[6] Fica uma espécie de creme, a facilitar a incorporação posterior do resto da farinha. Tradicionalmente, a farinha é toda acrescentada inicialmente, de uma pazada, sem este truque, mas é um convite a fazer grumos ou a grande exercício braçal.
[7] Há quem use sempre sumo de limão, desta forma, com todos os pratos com óleo de palma, exceto o menhandungo, que já leva vinagre.

sexta-feira, 18 de março de 2011

A barra do lado

É hábito bloguístico listar na “barra do lado” outros blogues. Muitas vezes é “io ti do un cappello a te, tu me dai un cappello a me”. É simpático, mas é bom que cada bloguista, ao fazer a sua lista de favoritos ou de sítios recomendados esteja com isto a demonstrar o seu rigor e a fazer a imagem do seu próprio blogue. Já é tempo de o fazer neste “gosto de bem comer”. E assim vou justificar, principalmente a quem merecia figurar, que eu não tenha a lista na barra do lado.
Já me disseram “mas porque é que perdes tempo com tão ruins defuntos?”. Primeiro, porque tenho muito respeito por quem procura informação culinária básica, a valer bom sorriso do marido/mulher ou elogio dos amigos do jantar. Como isto é importante, na banalidade triste da vida de hoje! Depois, porque açoriano como eu, feito mentalmente entre basalto e mar, como se fosse o banco duro sobre o qual tão inesquecivelmente discorreu Graciliano, como regra de disciplina mental, fez-se anterianamente a pensar sobre “bom senso e bom gosto”.
Tenho dificuldade em fazer a tal lista (e, para simplificar, omito alguns blogues bons de enologia e críticas/sugestão de vinhos). Depois deste exercício, talvez consiga uma pequena lista. A primeira dificuldade é que, vendo a lista de vários anos dos meus blogues gastronómicos de alto nível, já muitos desapareceram. Gostava de saber por quê, mas palpita-me que sei. Como me sinto, foram afogados pela mediocridade, devem ter pensado que era inglório competir nesta blogosfera. No entanto, como ainda são visitáveis, vou relembrar alguns.
À cabeça, embora com coisas às vezes para mim irritantes, o que nos levou a quiproquós, o Avental do Gourmet, de um anónimo que muito sabia de gastronomia - pagava para ir aos grandes restaurantes estrangeiros, de que trazia notas - e era cozinheiro criativo (artisticamente criativo, não artesanalmente criativo), embora não no meu estilo (mas viva a diferença!). Memorável, o Bloco do chefe Cardoso, de Nuno Barros, da malta do 2781. O criterioso blogue de crítica de restaurantes Contra prova também se foi, provavelmente porque Lourenço Viegas escreve hoje em jornais. Também o No prato com. O DonVoxx prometia, principalmente em relação a vinhos, mas durou pouco. Finis também para o Fogão do kuka, de um cozinheiro sério, com gosto pela divulgação do que faz falta, boa técnica de base. E mais, para não alongar este escrito, mas sem desconsideração para os omitidos.
No entanto, destaque ainda para um que não sei se encerrado se só em letargia, o luisantonego, de um patrício meu que não conheço. Indescritível, imperdível, um prodígio de humor, inteligência, agudeza, boa escrita. Vão lá ver, mesmo que não esteja a publicar regularmente. Ah, ilhéus!… Vejam só o primeiro parágrafo do seu último “post”: "Gostaria de começar este post pelo intestino. Esse órgão apaixonante. Como é óbvio toda esta parlação e comilança acaba de uma forma ou outra por passar no intestino. Mas a questão até é um pouco mais ao lado das funções intestinais, pese embora a labreguice, presente no que vou relatar e claro sempre presente neste blog, que se vos apresenta sob a forma de rebuçado salgado, seja apanágio deste país. Ou seja, no fim é de cócó que estamos a falar.” 
Hoje, para mim, só dois três estrelas. Primeiro, imperdível, o Mesa marcada, feito por quem sabe da poda - Duarte Calvão, Miguel Pires e Rui Falcão. Mas é pura gastronomia, não procurem lá receitas, muito menos referências às Nigellas e aos Jamies. Também Virgílio Gomes tem um sítio abrangente, mais do que um blogue, com crónicas, notícias de livros, críticas. Altamente recomendável. Até perde tempo, como eu, na luta inglória de denunciar as aldrabices gastronómicas que andam pela net. Ainda, por enquanto sem classificação, um novo blogue que promete, o Clube Gulae, de um grupo de amigos que inclui uma jovem excelente gastrónoma e conhecedora de tudo o que por aí vai de restauração. Tem a quem sair, ou de pequenino é que se torce o pepino.
Na crítica de restaurantes, recomendo o Ponto come mas com alguma incerteza, porque a sua última entrada já data de Dezembro passado. Sabem de quem é? De um notável homem público, diplomata, ex-governante, homem de cultura, Seixas da Costa.
Caso especial é Dadivosa, um blogue brasileiro. A cozinha não é de topo, mas vale a pena pelo que de melhor tem o blogue, uma bela escrita envolvente. Vale a pena ir lá pelas crónicas, pela imaginação e pela graça das conversas, pela maestria no uso da nossa língua. Vejam só: “Vai daí que aquela rama de salsa crespa, semi-desmaiada, aquela mesma, que foi esquecida fora d’água em dias de tempo seco por demais, não foi desperdiçada. Amarrei-lhe um barbante nos pés juntos, pendurei todo mundo de cabeça para baixo na prateleira e depois de uma semana a “peça decorativa” perde uns galhinhos a cada vez que invento uma cozinhança. Esfrego umas quantas folhas entre os dedos e alegro o que estiver na mira. É a redenção da salsa crespa, que sai do castigo para ornar e perfumar omeletes, risotos, sopas rápidas, guisadinhos e gororobas mil. Um castigo temporário, portanto, bem melhor do que o fundo do lixo.” Temos escritor!
Podia passar aos “uma estrela” (nada mau, no panorama da nossa blogosfera gastronómico-culinária). São sérios, têm preocupação de criatividade, revelam bom gosto, iria com curiosidade a um jantar feito pelos autores. No entanto, como dois ou três dos seus autores - com um pé no lado de alguma qualidade e o outro no lado da vã glória dos elogios das tias - já me fizeram saber que não aceitam o meu direito a ser "júri", fico por aqui. Limito as minhas referências a quem não se feriu com a estrela simples,  o Garficopo e os Cinco quartos de laranja. Têm ambos em comum, como eu gosto, o embrulho das receitas em boa "conversa fiada" (repito: vejam a Dadivosa).

Para mim, a barra do lado seria só isto. Muito pouco, quando há centenas de blogues portugueses de culinária, coisas na net com que não devia perder tempo, não fosse esta minha mania de “defesa do consumidor”. Mesmo assim, com justiça, distingo. Há autores/as que dizem, pura e simplesmente, “gosto de cozinhar e quero partilhar este gosto”. Até mesmo, temos de aceitar, "só cozinho com a Bimby e vou usar este blogue para as minhas dicas sobre como usar melhor essa coisa". Muito bem, é hoje a lógica da net, das redes sociais, dos “amigos virtuais”. De uma forma geral, estes blogues são simples até de aspeto, são sinceros, podem ser toscos mas não destilam aldrabice. Quanto ao resto...

quinta-feira, 17 de março de 2011

"Oh, simple things!"

Como já disse, isso é lema de um bom amigo, do Cão com pulgas, quando fala de coisas simplesmente simples, magnífica e simplesmente simples. Em cozinha, é o que mais há. Mas é preciso saber alguma coisa para se conseguir o simples, quando muita gente tem a ideia errada de que o bom é complicado. O grande truque é saber transformar o complicado em simples. Lembre-se o ainda saudoso Santí Santamaria.

Lembrei-me de escrever alguma coisa sobre isto por ter recolhido há pouco, no Pingo Doce aqui ao lado, um folheto muito bem feito, a cativar as donas de casa com pouca formação culinária mas que, tantas e tantas, querem um bom jantar de amigos, ou até dar prazer ao marido chegado a casa com mau humor. Caril de peru com coco e maçã, claro que com pó de caril, nada da minha esquisitice snob de fazer garam massala a fresco, na altura. Mas também nada de simplesmente juntar o pó, indica-se um truque simples mas muito bom para fazer a pasta de caril. Além disto, indicação simples mas correta de tempos e pontos de lume, mexer ou não, tapar ou não, coisas que as tias da blogosfera nunca indicam.

A seguir, muito bom, novamente descrito com simplicidade mas com rigor, uma espuma de lima com kiwi e raspas de chocolate preto, espuma, coisa não elementar, que as leitoras ficam a saber fazer mas que não aprendem na net. A questão é que quem fez este folheto, quem eu conheço bem, tem uma grande sabedoria gastronómica e é uma excelente cozinheira. Coisa de avós de netos cruzados que vão ser gastronomicamente exigentes. Com coisas destas ao dispor de milhares de clientes do supermercado, quem precisa das coisas deliciosas das corações e florzinhas?

Há um nível um pouco acima, mas hoje desadequado. Há muitos anos, comprei em Nova Iorque o excelente livro do chefe franco-americano Pierre Franey, "60-minute gourmet". Pensei fazer coisa do mesmo tipo, mas desisti, porque acho que era coisa datada. As receitas são muito simples, todas rápidas, mas de grande base clássica e francesa, a exigir técnica que não está no domínio da maioria das pessoas que quer essas receitas. Costeletas de carneiro salteadas, pouco fritas, com duxelles e molho Mornay (pág. 172) é certo que se faz em menos de uma hora, mas não é coisa de sair à pressão.

"Simple things" é também sempre o meu fim de semana, uma vez a meu cargo, outra a cargo de quem bem rivaliza comigo. Nada de complicado, porque há que gozar o descanso, mas coisas tão boas como, neste último, a cargo da morena, lombo de novilho coberto com chèvre e embrulhado em massa filo, com risoto de maracujá; ou camarões grandes temperados com leite de coco com caril suave, grelhados e acompanhados com endívias cozidas ao vapor. Receitas claro que não originais, das tais recolhidas em sítios de qualidade, não na net, e depois modificadas com um pouco de inspiração. Ou então, a meio da semana e como cozinha de solitário, um creme de legumes à poulette com almôndegas de carne.

Conselho final. Simples e bom é de quem sabe, como a minha amiga do Pingo Doce. Desliguem a net culinária e vão apanhar o folheto no supermercado.

terça-feira, 15 de março de 2011

Para divertir

Embora já se tenha ido o carnaval, é sempre tempo para algum riso. Não quero bater muito mais no ceguinho da blogosfera culinária, tenho mais que fazer. Aliás, até se calhar sou injusto, porque malho nas pobres tias, coitadas, quando há quem se ponha mais em alturas de onde se cai mais desamparado. Não vou dar para este peditório das receitas de cabeleireiro, mas hoje, caindo por acaso em coisa que leio raramente, dou por um mimo e abro exceção para partilhar uma gargalhada.

Uma das modas recentes é a profusão de fotografias, a cada mexidela da colher. São tantas que às vezes é difícil ler, entre elas, a receita propriamente dita.

Há uns dois anos, um bloguista derramou milhentos elogios sobre o meu livro, em boa parte porque o livro não ia na onda das ilustrações, era seco e escrito sobre tábua dura, à mestre Graciliano. Virou, embora com coisas divertidamente freudianas, ou porque "la dona e mobile" ou porque, como me aconselhou sem sucesso, nesta de fama é preciso ir na moda. Pobres livros que eu tenho, Lucas Rigaud, Escoffier, Olleboma, João Ribeiro, Pantagruel, Manuel Fialho, Augusto Gomes, Carmen Sanz, Mariska Vizvári, Marianne Kaltenbach, o imprescindível livrinho do SENAC do Pelourinho, só alguns que me vêm à memória, e já basta, de livros sem uma foto que seja. Evidentemente que também, fora uma dúzia de páginas entre capítulos, só por grafismo, Maria de Lourdes Modesto. Era gente que não ofendia leitores, infantilizando-os, a pensar que eles precisam de uma fotografia a mostrar o que é cebola picada.

Um resultado exemplar é o da foto que acompanha este "post". Como raio, eu não sei, é que se consegue dar tão bonita cor violeta a uma carne assada?! Um quilo de couve roxa? (claro que não "photoshopei" a imagem).

segunda-feira, 14 de março de 2011

Cozinha angolana

A minha reserva, talvez por desconhecimento, em relação à cozinha de moçambicanos contrasta com o meu fascínio pela cozinha angolana. Primeiro, por isto mesmo, por ser uma cozinha angolana, integrada, miscigenada, de pretos, mulatos e brancos, que se generalizou. Segundo, por ser uma cozinha muito simples, nos ingredientes e na técnica, estranhamente muito uniforme em tão grande país. Finalmente, porque aprendi a fazê-la quando por lá andei, mas por tentativa e recolha talvez nem sempre fidedigna, enquanto que agora tenho apoio seguro de grande cozinheira angolana - não é quem pensam, sem desmerecimento, é da geração anterior - com as tradições das “velhas famílias”. De tal forma que quem ma faz, e sabem quem (isto já começa a ficar confuso em gerações!), recorre sempre à opinião materna quando eu vou um pouco mais longe na inquirição da genuína cozinha angolana. 
No entanto, duas dessas afirmações devem ser moderadas. Primeiro, a cozinha angolana só era património geral até certa data, depois não. Angola colonial antiga baseou-se bastante numa miscigenação q. b., mas com reflexos práticos. Essas velhas famílias colonas, com gente da minha idade ainda 1-16-avos, são, culturalmente, fração muito maior em termos culturais, porque a memória e os costumes da trisavó preta foram sendo transmitidos até hoje e a memória gustativa é fantasticamente forte. Quando fui passar dois anos em Angola - "to hate or not to hate, that is the question" - foi com esses 8, 16, 32 avos que fiz grande amizade, porque eram genuinos, tinham raizes na história como eu ilhéu, raizes de aventureiros que não se ficaram pela pequenina courela minhota. Assim como a minha amizade pelo catequista protestante da Quilumba, pelo Alexandre do Quissacala, pelos “brancos” V, I, P, F, etc. 
Mas havia o outro lado, o do “batalhão Ferreira da Costa”, os que para lá tinham ido à ordem do “para Angola e em força”. Esses, que foram os primeiros racistas em Angola - porque sem lugar no mercado de trabalho a sobressair sobre os negros - desprezaram, ou melhor nem compreenderam, a cultura angolana e comiam, no "jardinzinho" só de cimento desbocado para a rua, em camisola interior sem mangas, "wife-beater", e com chapéu suado, feijoada à sua maneira transmontana regada com vinho tinto do “puto” misturado com 7up. Claro que também comiam às vezes "comida de preta", mas quanto a isto de comer preta, é melhor ficar por aqui...
Outra afirmação acima, a ser moderada. Como não podia deixar de ser em tão grande país, há diversidade mas, curiosamente, é mais na terminologia. É difícil discutir isto, na falta de documentação. Quando adiante escrever “há quem…” quero dizer uma família ou outra, branca, com gosto africano mas com grande sentido de liberdade em relação a costumes que julgam primitivos. Por isto, há muitas diferenças neste meu repositório em relação ao que vou chamar de HS. É um laborioso e muito estimável trabalho extenso de recolha de receitas de cozinha angolana por Henrique Silva, que não sei quem é, distribuída generosamente pela net, como apresentação PowerPoint, Receitas angolanas. Da sua grande lista, vou focar só as coisas que me dizem ser mais emblemáticas e, afinal, aquelas que eu faço ou que alguém me faz muito melhor do que eu faço.
Começo por coisa basilar. A cozinha angolana é uma enorme variação, subtil, de coisa muito básica de ingredientes e técnica. Cozinha de peixe fresco e seco ou de galinha, também cabrito selvagem, no mato zairense por onde andei, também a excelente capota (e mesmo, garanto, macaco). Mas raramente ou nunca de vaca ou de porco. Em geral, molhos ou caldos abundantes, com base em refogado de cebola no ubíquo óleo de palma. A mandioca sempre presente, em peça ou em papa de farinha (fuba) e água, o funge. Para fazer a farinha, fuba, apenas deixar secar a mandioca e ralar ou, à antiga, pisar no pilão. Mais corretamente, a mandioca é seca mas só depois de algum tempo em água, a destilar a goma. Com presença marcante, o tomate, em alguns casos a abóbora e, nas muambas, os quiabos. 
De muambas não vou falar, porque se encontram facilmente por aí. Ou melhor, só a de galinha, não a de peixe que, no Zaire da minha maravilha, até difere na inclusão de muita semente fresca de caju. Prato semelhante, em Luanda, é o funge de peixe, mas mais simples, sem quiabos. Em contrapartida, com um tempero estranho que não consigo identificar, uma erva chamada gimboa (alguém me diz o que é?).
Há dois tipos de pratos, na mais característica norma da cozinha, por todo o mundo, um mundo de pobres e de ricos: 1. os que se baseiam num acompanhamento ou base geral, simples e barata, que, quando se podia, levava a enriquecer algum peixe ou um resto de galinha. 2. depois, os pratos completos.
Nos primeiros, claro que sempre o funge, simples papa em água de qualquer “fuba” (farinha), normalmente de mandioca fresca, também de milho (em Angola, sempre milho branco! Funge de fuba de milho que, no interior kimbundo, se chama kindele) ou de bombó (mandioca seca). Depois, uma grande lista de pratos de base (feijão de óleo, quizaca, tarco, gimata, rolão), de que destaco o feijão de óleo de palma, "oh simple thing!", especialidade morena de cativa que me tem cativo, delícia palatar que maravilha os meus amigos que vêm ao cheiro e sabor dos meus petiscos micaelenses e que começam por apanhar com essa coisa simbólica de quem também aqui manda. E que depois dizem, "seu machista, só gabas os teus petiscos açorianos, mas aquele feijão..." Como disse, é uma base, que pode ser comida por si só, com peixe frito, com banana, com enchidos, etc. 
Feijão de óleo de palma
Ditado pela morena: para duas latas de feijão manteiga, 1 cebola média e meia lata de óleo de palma, 1 dente de alho picado e um tomate pequeno bem maduro, sal e picante a gosto. Refoga a cebola no azeite de palma durante pouco tempo, acrescenta o tomate cortado em pedaços pequenos, o alho e de seguida as latas de feijão. Acrescenta um pouco de água (costumo por a olho) de modo a que o molho fique consistente, o sal e o picante. Deixa ferver de modo a que o feijão fique bem cozido e o molho apurado. Ao servir, polvilha-se bem com farinha de mandioca, grossa e torrada.
Ressalvo que esta receita é uma versão rica do fazer popular muito mais simples. Na cozinha popular, o feijão é simplesmente cozido, envolvido com o óleo de palma, apurando com um pouco de água da cozedura e temperando. O feijão angolano mais tradicional é o amarelo, difícil de encontrar mesmo em Angola. Substitui-se bem por feijão manteiga.

Passo para coisa de que gosto muito, o pirão. É designação ambígua, cada um chama pirão ao que quer. Todas as minhas boas fontes, a começar pela que já disse que é a de minha maior confiança, definem pirão, o prato típico da Ilha do Cabo, como uma sopa de peixe fresco com mandioca cozida e acompanhada, ao lado, por farinha de pau torrada e embebida na gordura da sopa. No entanto, há quem lhe acrescente peixe seco, o que, como direi adiante, caracteriza outro prato, o muzonguê. Pior, há quem - mais recentemente e principalmente entre os angolanos já nascidos cá - chame de pirão o simples funge. Mais estranhamente, HS chama pirão a um funge de fuba de milho.
Pirão
4 peixes pequenos, tipo peixe galo ou redfish; 2 dl de óleo de palma; 2 batatas doces grandes; 1 mandioca; 2 cebolas ; 3-4 dentes de alho; 2-3 tomates maduros ou 1/2 lata; água (bastante, cerca de 1,5 litros); sal q. b.; gindungo (piripiri) q. b.; 300 g de farinha de pau grossa.
Refogar moderadamente a cebola e o alho no óleo de palma, acrescentar o tomate sem peles e sem sementes cortado aos bocados, acrescentar cerca de 1,5 l de água. Levantar fervura e juntar o peixe cortado em postas. Cozer, cerca de 15 minutos, sem deixar desfazer o peixe.
Separadamente, cozer a batata doce e a mandioca, aos pedaços, em caldo de peixe, escorrer e servir à parte.
Torrar a seco a farinha, num tacho e embeber com o sobrenadante gorduroso do caldo, sem ficar em papa.
Come-se o caldo, o peixe e os legumes, em prato de sopa, temperando com sumo de limão. A farinha é servida ao lado e vai-se comendo á colher, molhando na sopa.
Nota - Há duas pequenas variações nesta receita em relação ao tradicional, mas que acho que só a melhoram: adição de batata doce (ensinamento recente de boa cozinheira angolana à minha morena), e cozedura à parte da mandioca e da batata doce, questão de técnica.
Basta de receitas, mas justifica-se mais alguma conversa sobre a cozinha angolana. Este pirão é a base mais simples, luandense, para outras variantes. Uma é o muzonguê, da zona de Benguela, essencialmente o mesmo, mas com adição de peixe seco. Coisa que não se arranjava arranjava cá mas que podia muito bem ser substituída por caras de bacalhau. Hoje é fácil encontrar peixe seco, na Ribeira ou nas lojas de bacalhau da rua do Arsenal ou perto da P. Figueira. Conheço famílias de Benguela que incluem mandioca e batata doce no muzonguê, como no pirão luandense, outras que não.
Também há quem faça o muzonguê com funge em vez de farinha de mandioca embebida no caldo, como descrevi, e com folhas de hortaliça. Vamos por partes.
A sopa-refogado em óleo de palma, com peixe cozido, fresco e/ou seco, quando acompanhada por funge, é o calulu. Em Angola, é tipicamente um prato simples, de peixe previamente frito, sem legumes, mas com hortaliças ou ervas. Passou para S. Tomé, onde é hoje emblemático, variando em ingrediente de base - marisco, galinha - e com inclusão de todos os legumes à mão. Comi-o lá, excelente! E agora tenho cá a experiência prática, popular, da minha simpática empregada santomense.
Depois, a questão das hortaliças, outra confusão para quem quer recolher a cozinha angolana. Em pratos completos, cozidos, como o calulu, o que entra é a folha de batata doce, e, tanto quanto apurei, apenas no calulu. Não a temos cá e, talvez por isto, algumas receitas, como as de HS, indicam como hortaliça o espinafre. Não vou por aí. Habituado de criança a uma magnífica hortaliça cá não muito usada, aconselho a nabiça. Ou então, mas mais difícil de obter, o espinafre selvagem alentejano. Melhor ainda, mas ainda mais difícil, o excelentemente amargo agrião da terra, açoriano.
Diferente é o uso de outra folha, a de mandioca, a quizaca ou saka-saka. Novamente, discordância com HS, que chama quizaca a um banal esparregado de espinafres. Quizaca genuina, de folha de mandioca, pode-se comprar, em lata, em qualquer hipermercado. Tradicionalmente, só é usada para esparregado, feito com óleo de palma, alho, sal e gindungo. A minha mulher faz uma ótima quizaca simplesmente com camarão escaldado, descascado e acabando de fazer salteado em óleo de palma (azeite não é coisa de cozinha angolana nem micaelense).
Faltou-me falar de um terceiro tipo de “base culinária” angolana, o simples caldo em que tudo pode ser feito. É, por exemplo, o menhandungo, que, em quimbundo, quer mesmo dizer “água com picante”.  É o que provavelmente, com outra grafia, HS chama melhadungo. Aqui vai.
3 c. sopa de azeite, 3 cebolas, 3 dentes de alho. Vinagre, sal e gindungo. Numa panela, juntar o azeite, a cebola às rodelas, o alho picado, e 1 l de água. Quando a cebola estiver cozida, juntar o “conduto”, a cozer mais. Acrescentar o vinagre a gosto (2-3 c. sopa). Temperar com sal e gindungo. O “conduto” é o que calha: peixe, frango, chouriço, caça.
Quanto ao peixe, tradicionalmente o cacusso, um peixe pequeno que aqui pode ser substituído por sargo, dourada, peixe galo ou qualquer peixe pequeno de pele vermelha. Em Angola, era usado seco, limpo de escamas, grelhado e desmanchados aos pedaços.
P. S. - Ó malta do forró, que tal encarregarem-me (à borla, prometo) de um menu angolano em próxima festa? Em troca, aceitação de um petisco açoriano, em intercâmbio gastronómico.

P. S. 2 (14.3.2011) - Escreve-me um amigo português casado com uma angolana: "A gimboa é uma erva daninha abundante em Portugal, mas que a quase totalidade das pessoas desconhece ser comestível. Mesmo nas aldeias, com o morte dos mais idosos, já ninguém conhece as ervas comestíveis. Na minha terra, na Beira Baixa, a dita gimboa também se come, mas apenas as folhas mais tenras, os rebentos, rejeitando-se todas as folhas da base em que os caules já apresentam tons avermelhados. Claro que o nome porque é conhecida não é gimboa, mas sim BRÊDOS."

domingo, 6 de março de 2011

Cozinha de moçambicanos - camarão

Muitas vezes aqui confessei, honestamente, que não domino cozinhas exóticas. Fico-me por tentar fazer bem as receitas de livros que amigos estrangeiros conhecedores me recomendam, como lhes recomendo Maria de Lourdes Modesto (é pena que não haja um livro generalista de cozinha portuguesa mais “portátil”, mais barato). Lamento mais esta minha compreensível falha no caso das cozinhas de países irmãos. Procuro colher o melhor que posso de cozinha brasileira, junto de muitos e bons amigos apreciadores, cultivei por mim a cozinha angolana a que me habituei há muitos anos, mas obviamente que agora não preciso de a fazer, quem sou eu para rivalizar com quem eu sei?

Paradoxalmente, para quem conhece a minha história, sei muito pouco de cozinha moçambicana. Talvez seja injusto, mas creio que, ao contrário de Angola e refletindo muitas outras coisas do mesmo tipo de diferenças na mentalidade e na estrutura social da colonização, os colonos portugueses moçambicanos nunca cultivaram a cozinha africana. Quando muito, adotaram o caril moçambicano (e acho que o designo bem, porque é uma versão típica de mistura de cozinha goesa e indoislâmica moçambicana) bem como o churrasco que nem sequer era feito como simples frango à cafreal. Em relação ao resto, por exemplo a cozinha de milho ou a cozinha de amendoim, a sobranceria com algum toque de mentalidade sulafricana, ali tão próxima.

Por isto, o título deste texto. Não tenho dúvidas em escrever que uma muamba, um calulu, um pirão de peixe, um muzungué, um feijão de óleo de palma com peixe frito, muito mais, são genuinamente cozinha angolana. Cozinha de angolano mesmo angolano preto de ontem e de hoje, de angolano branco de ontem, de angolano de hoje cá, de tanta mestiçagem magnífica. Angola é só uma Angola. Quanto a Moçambique, tenho mais dúvidas. As senhoras da sociedade isolada branca trocavam receitas, faziam uma certa cultura culinária, até bastante boa, que acabou codificada num livro muito popular por aquelas bandas, "Coisas boas". Achei que não podia falar de cozinha moçambicana colonial “integrada”, muito menos de cozinha moçambicana de hoje. Daí o título um pouco estranho.

Descontando erro meu provável de desconhecimento daquelas bandas, parece-me que se pode valorizar como exemplo de cozinha de integração étnica, em Moçambique, o camarão de cervejaria. Há descrições como "à laurentina”, mas segundo ouço a quem por lá passou, o que ficou como recordação foi o camarão da Nacional, uma cervejaria muito conhecida.

Não vou dar receitas, porque não as consigo garantir. Como disse, a minha garantia é normalmente indireta, por boas referências ou então, muito importante, por me ter ficado na minha excelente memória (quem não é inteligente ao menos que tenha boa memória…), também olfativa e gustativa, a pedra de toque da crítica. Neste caso, limito-me a dizer que parece haver no repositório de receitas na "net" uma boa convergência. Não deve ter havido tempo para muitos desvios fantasistas. Googlem e façam a síntese, talvez com a ajuda que vou dar, em relação a regras essenciais que me foram dadas por quem sabe. Depois, muitas pequenas variantes, que não sei discutir, e que podem ficar ao gosto de cada um, desde que respeitem as regras básicas.

Camarão grande, 20-30 (não se enganem com a medida, porque quanto menor o valor, maior é o camarão, dado que o valor é o de peças por quilo). Com este tamanho, a tripa já é suficientemente grande para dar mau gosto e até intoxicar. O camarão é cortado pelo dorso, da base da cabeça até à cauda e retirada a tripa verde, delicadamente, com a ponta de uma faca. A seguir, o tempero inicial. Em algumas receitas, antes da pasta a seguir, apenas sumo de limão e sal, por vezes lascas de alho. Aconselho como passo inicial geral, porque se adapta bem a tratamentos culinários diferentes, a seguir.

O tempero é, em geral, uma mistura de alho bem pisado com sal, no almofariz, sumo de limão, piri-piri fresco picado ou moído em molho (também a versão lusoafricana frequente de infusão em azeite/óleo e numa bebida alcoólica forte). Misturar ou não margarina, a engrossar a pasta, depende do que se faz a seguir.

Havia quem os preferisse fritos. São os descritos mais frequentemente como “à laurentina”. Neste caso, a marinada não levava gordura e os camarões eram fritos em azeite ou óleo, regados com a marinada e o tempero reforçado com mais piri-piri. Como variantes, as tais cuja genuinidade não discuto, gengibre, coentros, colorau.

Segundo me dizem, os da Nacional eram assados e escrevem “herdeiros” da receita que a marinada era já com gordura, azeite ou óleo e bastante margarina, para ficar pastosa e embrulhar bem os camarões. Para isto, não bastava só o pequeno corte no lombo, os camarões eram quase que totalmente abertos em duas metades. Não sei, nunca comi. Para cozinhar, simples ida ao forno em assadeira. Há quem diga que com uma boa rega de cerveja.

Se assim é, acho estranho, em termos de eficiência de uma cervejaria. Camarões a irem ao forno e o cliente a esperar pelo tempo certo? Parece-me muito mais eficaz a versão de encher a frigideira e já está.

Leitores moçambicanos, aguardo os vossos comentários. Gosto de aprender com quem sabe. E sem esquecer as versões muito pessoais e simpáticas, como a dos camarões dos dias do fim.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Coisas que vou lendo (3)

Um velho amigo meu, bloguista de muito sucesso, usa frequentemente como título genérico “Oh Simple things”. Uso-o nestas conversas gastronómicas e culinárias para chamar a atenção para coisas simples (por exemplo, o cozido) que são aquelas que não permitem rodriguinhos a disfarçar: ou se tem boa técnica ou é o desastre. Isto é particularmente importante no caso de tradições culinárias distantes mas que importámos como moda.  O que mais se lê são receitas “exóticas”. Defendem os autores porque nem sequer há uma velha criada que, no caso de receita tradicional portuguesa, diria, “ó senhora, isto é uma aldrabice”. 
Claro que não é só a net. Infelizmente, são muitos restaurantes a aproveitar a escassa cultura gastronómica de muitos clientes, principalmente, repito, em relação às cozinhas estranhas. Mas, ao menos na net, as pessoas deviam poder ter acesso fácil a críticas e contra-críticas, a fontes de informação, poder exercitar a massa cinzenta sem se deixarem ir logo por “mas que delícia, minha querida”. Lamentavelmente, não. As pessoas que andam a procurar receitas na net são as que querem comer um pouco melhor do que o "fast food" ou o congelado de supermercado. Coisa louvável, que me merece muito respeito. Eu sei que, com o meu estilo um pouco elaborado, não as ajudo muito, mas ao menos procuro defendê-las das aldrabices a que estão sujeitas.
Suspeito de que, em muitos casos, visitarão blogues que pensam estarem a fornecer-lhes ideias originais, criativas. Engano. Ostentam pergaminho, é “adaptação” de grande receita. Todavia, em 99% dos casos, quando lerem “adaptação”, na net das receitas, é pura e simples cópia, com o ridículo de depois protestarem contra o “plágio” de outras tias que lhes copiam a receita sem citarem a “autoria”. Em regra, a fonte é um sítio comercial americano, do clube dos Jamies e das Nigellas, porque, honra seja feita à sua cultura gastronómica, não há muita coisa destas com localização francesa, espanhola ou italiana. Googlem e vejam se não tenho razão. Triste é que o pior vem de uma paraiso gastronómico, o Brasil (mas como muita outra porcaria da net, parece que os nossos irmãos não têm mais que fazer do que intoxicar a net).
Assim, desejando muitas pessoas receitas pouco comuns, mas simples e fáceis, acabam por encontrar deturpações complicadas, fantasistas, de coisas consagradas como “Oh Simple things”. Por exemplo, uma carne Stroganov (é assim que se deve escrever, nome da família aristocrática russa cujo cozinheiro a registou, mas é história longa, para mais tarde).
Uma excelente senhora portuguesa que convide um casal amigo de origem eslava e lhe sirve um “strogonoff” (sic) como o que se segue, altamente elogiado na net, veria sorrisos delicados mas amargos. Veja-se, espantoso: fritura, em azeite (!), da carne cortada em cubos; tempero com alecrim (!!); adição de molho de tomate (!!!), milho (!!!!) e nata, muito puré de batata; polvilhado com muito queijo ralado (!!!!!) e ido ao forno (!!!!!!).
Stroganov, isto? Em descrição muito breve e simples, o stroganov, que já vem descrito em Escoffier, é carne de lombo cortada em pequenos pedaços muito finos, como lâminas (“émincé”), que ficam logo fritos em meio minuto de salteio em manteiga, com louro, sal e pimenta preta moída a fresco. Cogumelos salteados no suco da fritura da carne. Refogado ligeiro de cebola, acrescentado dos sucos e de nata azeda (como não a temos nem sabemos fazer, mistura em partes iguais de nata fresca e de iogurte simples, com sumo de limão a gosto), mais os cogumelos. Tudo apurado e a envolver no fim os bifinhos. Também já comi, por aquelas bandas de leste, com um toque de cornichões de conserva, a ir muito bem. Obrigatoriamente, acompanhamento muito simples de arroz branco ou de puré de batata. Dêem a provar à vossa empregada ucraniana e vão ver o que ela diz.
Isto tem alguma nem que remota semelhança com o tal "strogonoff" da blogosfera?
Será que é realista eu pensar que posso ajudar um pouco à “defesa do consumidor” (neste caso quem procura informação na net), quando me defronto com uma enorme feira de ciganagem (sem ofensa xenófoba)?

quinta-feira, 3 de março de 2011

República da Cerveja, um restaurante a evitar

Creio que esta é, infelizmente, a primeira vez que critico um restaurante sem conseguir alguma coisa, mesmo que quase nada, de que possa falar bem. Trata-se da República da Cerveja, no Parque das Nações. É zona que desconheço gastronomicamente mas onde tinha de se reunir, por conjuntura, o meu bando da Junqueira (cada vez menos da Junqueira, porque hoje bem estabelecidos fora dessa referência de má memória). Da Expo, só me lembrava de Fausto Aroldi, mas já saído para outras bandas. E bem me avisou o meu alter ego gastronómico, bom conhecedor de restaurantes, que nada havia de jeito nessa zona de novos ricos.
O comensal começa por se defrontar com um couvert de manteigas e paté de atum industriais, em pacotinhos, azeitonas banais e um queijo curado que nem vem fatiado. Enquanto espera pelo prato, pode ir  às cervejas, que, numa cervejaria alemã, deviam ser tentadoras. Afinal, oferta muito limitada (cinco variedades, incluindo uma “weiss” que bebi e que me fez saudades das cervejarias da Alemanha). Muito melhor ementa de cervejas é a de um bar meu predileto, o da carruagem em Oeiras, à beira-rio. A lista de vinhos é de rir, mas é verdade que não se espera grandes vinhos numa cervejaria, mas não a 2,15 € o copo de 2 dl de um vinho de prateleira baratucha de supermercado. E não deixa de ser bizarro que, para acompanhar o que se dirá a seguir, se proponha um Moët et Chandon (59,50 €) ou, a 29,50 €, um obscuro "espumante natural".
Não falo das entradas porque ninguém se tentou por elas e não tenho matéria de prova e crítica: salada de polvo, amêijoas à Bulhão Pato, gambas ao alho, tomate e mozzarela, pica pau, etc., muito imaginativo e a marcar a identidade do restaurante. Em média, cerca de 8 euros. Sopas, idem de dificuldade de crítica, apenas um a provar o creme de marisco a abundar de tomate.
Importante, claro que a secção “da Alemanha”. Como não podia deixar de exigir, lá vi salsichas e pernil. Com costeletas fumadas, era toda a ementa. Obviamente curta, mas lá vá, se fosse boa. Quando me falaram em lá ir, pensei, “boa, há muito tempo que não como o meu sortido típico, blutwurst, bratwurst e liberwurst”, o que me dava boas horas de recordação das idas à Alemanha quando as revivia no Biergarten de Cascais (ou até, mais prosaicamente, na sua filial do Cascais Shopping). Afinal, na ementa de ontem, apenas as medíocres salsichas de Nuremberga.
Quanto ao pernil, nada de eisbein ou do menos conhecido mas excelente axe berlinense. Simplesmente o pernil fumado que se vê hoje em qualquer supermercado, sem nenhum tratamento culinário posterior. Até se calhar boa coisa, porque tratar as costeletas fumadas como as comi, grelhadas, não lembra ao diabo. Qualquer das coisas com escolha de molhos, a regar abundantemente e opressivamente todo o prato. Só posso apreciar o de mostarda, porque ninguém pediu as outras ofertas, de cogumelos ou de cerveja preta. O de mostarda era uma coisa feita com base num bearnês industrial, claro que a saber muito mais a estragão do que a mostarda, com muita pimenta moída.
Obviamente, chucrute. Indiscritível. Era produto industrial, saído da lata sem qualquer tratamento e que, para disfarçar a inevitável acidez, levou, à modernaça, com boa dose de compota de frutos silvestres, bem visíveis. Vinha era bonita, moldada em cilindro… Batata é coisa que acompanha tradicionalmente estes pratos de cervejaria, ao lado da chucrute. Simples e boas batatas cozidas. Neste restaurante, um banal, mas ao menos não horroroso, puré de batata, todavia feito por cozinheiro que desconhece o que é noz moscada.
Um dos amigos foi a um “bife pimenta”. A descrição, na ementa, é “esmagamos no almofariz a pimenta que é envolta no bife". Descontando o pontapé na língua (o bife é que é envolto, não a pimenta), é o estilo de descrição de menu à Suspiro dos seus restaurantes do Campo Pequeno, com referência às esplendorosas meninas mas sem nada de elucidativo sobre o prato. Portanto, o meu amigo confiou na confeção consagrada do “steak au poivre”. O que lhe veio - e é pena porque o naco de vazia era bonito - foi um bife banal exageradamente envolvido em pimenta, mais branca do que preta, e a nadar em molho, ó céus, praticamente só de azeite. Como a estimável mas ignorante empregada não lhe resolveu o problema - em bom restaurante, pura e simplesmente devolver à cozinha - andei com ele em manobras de ensopar o bife em guardanapo e transferi-lo para prato seco. E só mais tarde me lembrei de que ninguém lhe perguntou qual era o ponto de fritura que ele queria.
Passando à sobremesa, tinha-se esgotado, às 20:30, a especialidade da casa, o strüdel. O que comi, trio de mousses de chocolate, podia ter sido encomendado a qualquer pastelaria de bairro. Ingenuamente, nem perguntei o que era, pensei logo que era triplo de chocolate preto, de leite e branco. Qual quê, era triplo de pequenas e insignificantes variedades de chocolate.
Para poder dizer alguma coisa de bom, ao menos o serviço? Simpático, porque são sempre simpáticos os jovens brasileiros que hoje andam por todos os restaurantes, mas com a falta de profissionalismo que conhecemos. E, ao menos, ao menos, os lavabos? Desajeitados, minúsculos. E ambiente tranquilo? Não, jogo de futebol aos berros em televisão mesmo em cima de nós.
No fim, 25 euros por pessoa. Em resumo, um restaurante de que se deve fugir a sete pés. 

P. S. - Vejo agora na net que este restaurante pertence ao mesmo grupo empresarial que detém os Capricciosa. Destes, conheço o de Carcavelos que, não tendo por grande restaurante, tenho frequentado com agrado e onde tenho comido bem, a nível da refeição descontraída, sem exigência. Alguma coisa está mal quando, no mesmo grupo e, julga-se, com a mesma supervisão culinária, podem coexistir coisas tão diversas.