terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Quem não tem cão caça com gato

Gosto imenso de cozinhar e, claro, comer, coisas cozidas a vácuo (“sous vide”) a baixa temperatura (“slow cooking”). Quem tem os livros dos irmãos Roca tem fontes de inspiração inesgotáveis. Para isto, dou-me ao luxo de ter uma máquina de fechar sacos de vácuo e um aquecedor termostatizado. Cada coisa destas anda pelos 200 € e não vou recomendar aos utilizadores ocasionais. 
O resultado é super. Mas há alternativas.
Há uma forma simples de fechar a vácuo, usando sacos de congelação de fecho duplo e resistentes ao calor. Fico a dever tão simples truque ao meu irmão alter ego culinário. Essas duas coisas são indispensáveis. Recomendo os sacos GLAD Safeloc, de 3 litros, à venda nos hipermercados. Introduza o alimento no saco, com os temperos que quiser, e vá imergindo o saco numa tigela ou panela grande, com água, para sair o ar, quase até ao nível do fecho. Melhor com a ajuda de outra pessoa, feche bem o saco e retire.
As temperaturas de cozinha a vácuo diferem muito, mas pode simplificar no fogão normal, com uma panela cheia de água e um termómetro, coisa que muita gente tem ou que pode adquirir a preço baixo. O mais prático é adaptar todas as receitas a temperatura de subfervura (80-90º), quando a água começa a agitar-se mas sem ferver. Com alguma experiência, aprende a regular o seu lume. A outra forma, mais correta mas mais trabalhosa é aquecer e ir baixando o lume mantendo a temperatura, vendo o termómetro. Das primeiras vezes, exige presença e monitorização constante, mas depois pode manter as condições.

Também há outras formas de cozinhar a baixa temperatura. Por exemplo, muito simples, saiu magnífico um pargo inteiro, com golpes, que tinha estado 15 minutos em salmoura (2 l de água gelada, 200 g de sal, pimenta da Jamaica, salsa e tomilho picados) e depois escorrido, seco com papel absorvente e assado duas horas e meia a 95º. Acompanhei com funcho confitado em azeite, puré de tomate com ervas e o suco do peixe, mais maionese com moído de azeitonas pretas bem curtidas. Experimentem.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Abóbora à Marcus

Um prato exemplar do Marcus, de que falei em nota anterior, desafia toda a técnica e toda a capacidade do cliente para avaliar o que ele é de “contranatura” em composição de sabores. Mas sabores do mesmo material, a abóbora, o que é particularmente difícil, porque lida com diferenças subtis, apenas derivadas da preparação. Também conhecia um exercício semelhante com couve flor, de Raymond Blanc. É assim que se justificam as estrelas. É o máximo grau oposto à tendência, muitas vezes disparatada, de combinar coisas diferentes, mesmo com contrastes pesados e desarmónicos. A menos que se queira comer Stockhausen…
O prato, uma das entradas, baseava-se numa abóbora italiana que não conheço cá, a delica, muito suave e perfumada. O principal componente era a abóbora esmagada a rechear agnolotti (uma massa fresca piemontesa semelhante aos ravioli). Vem com creme da abóbora, crocante de pevides e um pouco de pimenta de Espelette (ainda não encontrei em Portugal), a rodear.

Maravilhoso! Vou tentar reproduzir, mas não sou Marcus Wearing. Em todo o caso, pareceu-me adivinhar os ingredientes e temperos. Mas não digo, até dar prova a quem partilhou connosco o jantar e cá estarão no Natal. E também o meu alter ego gastronómico, que gosta de nos presentear com jantares à ... Da próxima, serei eu a tentar fazer um jantar à Marcus, e sem ter ajuda de receitas. Só a minha excelente memória gustativa e as fotografias.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Trio

Como disse na nota anterior, fui há dias a um restaurante que não conhecia mas que anda muito celebrado, o Trio. Pequeno, simpático, bem decorado mas não muito bem amesendado (loiça rústica), com excelente serviço de mesa, e com cozinha chefiada por Manuel Lino, anteriormente no Tabik.
Manuel Lino tem imaginação e aprendeu técnicas, talvez sem as dominar, mas, principalmente, tem “mão muito pesada”. Nas combinações, nos sabores, nos contrastes. É pena que, possivelmente, confie demasiado no seu gosto. Um bom restaurante tem uma grande equipa de cozinha, com chefes adjuntos, que se constituem em júris de prova, por vezes a fazer com que um prato demore longo tempo a ser afinado até à versão que o cliente prova. Um restaurante pequeno não dispõe desta facilidade, mas pode fazer refeições de prova, com convidados de gosto gastronómico diverso, totalmente abertas à crítica. É neste sentido que escrevo esta nota, já que não posso discutir face-a-face com Manuel Lino. Mas dar-lhe-hei conhecimento desta crítica, publicando a sua eventual resposta.
Como amuse bouche, vem um dim sum de alheira. Pesado, com a alheira a não ligar com a delicadeza da massa chinesa. Um simples mas bom couvert, só de dois pães (queria-se mais) com um excelente azeite (embora eu não seja nada apreciador do pão molhado no azeite, a não ser com flor de sal, que faltava) e uma boa manteiga de alho.
Depois, um crack industrial de camarão com um pouco de carapau fumado e gel de pimentos. Cumpre bem, sem maravilhar.
Pedimos o menu Trio, de 5 pratos, a 50€ (mais 20€ para bebidas, que não pedimos). Imaginativo, equilibrado, mas infelizmente a não satisfazer as papilas. Talvez para quem queira apenas modernizar e ir à moda, mas com o peso e rusticidade tradicionais da nossa cozinha.
Primeiro prato, beringela assada com gema curada e salada de ervas. Tudo bem, exceto o inaceitável salgado da gema curada (passe a ideia de bom conhecimento de usar gema curada). Faltava um toque agridoce ou de queijo (cabra?) a cortar a banalidade dos sabores.
Batata salteada com essência de iscas. Boa ideia, iscas sem elas. Mas sabor muito forte  (embora muito bem temperado) do molho das iscas e cebolas de curtume não lavadas, muito ácidas.
Corvina com mousse de sardinha. A corvina excelente, embrulhada em couve coração. Ao lado, couve à caldo verde desidratada, agradável no crocante mas com sabor exagerado. Tudo com uma mousse de sardinha só por si muito boa, mas que dava contraste forte e exagerado a um prato delicado.
Ensopado de borrego. bem desconstruído, a peça de borrego (perna) bem estufada, no ponto e ida ao forno com crosta de pão, com um picado de tomate no molho do ensopado. O prato mais conseguido.
Cremoso de abóbora, crumble de sésamo negro e gelado de natas e especiarias. faz lembrar a ligação tradicional de requeijão e doce de abóbora.  O cremoso saboroso mas com grumos, o gelado mais o crumble inaceitáveis de excesso de tempero, com predominância de pimenta preta 8que até uso muito, mas com critério e medida).
Há uma base de partida promissora neste restaurante mas faltam muitas correções e, principalmente, um golpe de asa. E que a refeição justifique o preço.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Estrelas

Já tenho ouvido coisas contraditórias e pouco abalizadas sobre classificações de restaurantes. Admito que também às vezes fico perplexo pelas disparidades de classificação, por exemplo entre o guia Michelin (estrelas) e os Top 50.
Que é tudo forjado e jogo de cumplicidades. Que se premeia a extravagância e a moda. Que só um bom cozinheiro percebe a diferença. Que muitas vezes não compensa a relação preço/qualidade. Não creio em nada disto, e muito menos na afirmação de que isto só é coisa para quem sabe de técnica culinária. É tão verdade como ser necessário saber muito de técnica operática para se distinguir especialmente Plácido Domingo ou Jonas Kaufmann. É só questão, neste caso, de se saber optar, por mero gosto, entre cantores de bel-canto e “spinto". Bom gosto e bom senso.
Há semanas, na nossa breve digressão a Londres, tínhamos prometido ao nosso querido jovem casal anfitrião irmos a um bom restaurante, extravagância que bem merece economizarmos cá em ir a restaurantes banais e tentar cozinhar bem em casa.
Os de três estrelas estavam esgotados e fomos a um biestrelado, o Marcus, no Hotel Berkeley, com chefia de Marcus Wareing.
De regresso, festejámos poucos dias depois o meu aniversário num restaurante lisboeta recente que anda muito falado, o Trio, pela originalidade e qualidade da sua cozinha. Não é muito “fair” (já que vim de Londres) criticá-lo, mas hei de fazê-lo, por estar bem presente o Marcus.
Quem tiver esta experiência comparativa nunca mais pode dizer o que exemplifiquei acima. São coisas que só um “come por comer” não vê: a qualidade e frescura dos produtos, a leveza, a subtileza dos sabores, a harmonia dos contrastes, a “sonoridade” exata do prato, até o ritmo do serviço. E não é preciso nenhuma extravagância. Em Inglaterra, por exemplo (e fora, um pouco, o caso de originalidade bem fundamentada de Heston Blumenthal) o que ainda vale é a base francesa da chamada “cozinha europeia moderna”. 

É também o que vi, noutra ocasião, no único restaurante três estrelas que conheço (a convite, claro!), vizinho do Heston, o Waterside Inn, em Bray. Por exemplo, uma entrada “oh, simple thing!”, de carne de pinças de lavagante, espargos verdes, caviar de cultura e espuma de nata com vodka. Tentei reproduzir em casa a cor, o brilho e a textura daqueles espargos mas só me aproximei. É o que faz a diferença para as estrelas.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

A velha italiana

Como tanta e tanta gente, entrei no hábito do Nexpresso, por comodidade. Foi preciso ir ao Brasil, há meses, para voltar a experimentar o café filtrado (talvez mais corretamente “café de passagem natural”). Este era o que se usava sempre em casa dos meus pais, em máquina de balão que hoje uso principalmente para infusões em culinária (belo caldo de marisco!) e eu usei café de filtro durante muitos anos, com filtro de papel ou em cafeteira italiana (também dita cafeteira Moka). 
Para mim, é de longe o melhor café. Além disso, não se conhece ainda nada de possíveis efeitos nefastos do alumínio das cápsulas e o seu café contém açúcar, embora em percentagem muito baixa (cerca de 0,2 g por cápsula). mas, para bom consumidor de café, como eu, pesa.
Voltei à cafeteira italiana. Tenho usado uma vulgar, que tem o inconveniente de precisar de uma placa adaptadora para o meu fogão de placas de indução. Aproveitei para ir estudar o que havia de dicas sobre a otimização do café de italiana e aqui deixo algumas.
  1. A água deve ser de nascente e não de torneira.
  2. Enche-se o recipiente inferior com água fria até quase à válvula.
  3. O café deve ser moído na altura. Por comodismo, condescendo em usar café de moagem grossa ou, como agora se vende, como compromisso, moagem universal, mas sempre em embalagem com fecho. Os meus favoritos são dois lotes Delta com origem determinada, Timor e Brasil. 
  4. O recipiente do café deve ficar cheio, mas sem calcar o café.
  5. Aquecer a lume médio-baixo, até a água sair em cima a borbulhar.
  6. Mexer um pouco antes de servir.
  7. Não lavar com detergente.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Bacalhaus icónicos

Escrevi aqui há dias uma nota infelizmente negativa sobre a açorda de bacalhau da Tia Alice, uma das coisas de que gostava muito e que agora encontrei decadente. Comentou um amigo que era coisa que fazia para deleite de amigos estrangeiros e que agora tinha de mudar. Recomendei-lhe os meus dois pratos favoritos de bacalhau, de que há receitas originais genuínas, à Gomes de Sá e à Conde da Guarda. Também, para quem gosta de cenoura, o que não é o meu caso, o bacalhau à Cozinha Velha, hoje vulgarizado como bacalhau espiritual. E também um bacalhau à Brás, desde que muito bem feito, não o que se ame por aí.
Comentou outro amigo que eu tinha esquecido coisa fundamental: o bacalhau com todos. Tem razão e sobre isto deixo só algumas notas básicas, em relação a coisas inacreditáveis que vejo fazer. Com todos não quer dizer tudo junto. Cada legume tem o seu tempo próprio de cozedura. Quanto ao bacalhau, NUNCA o cozo. Tenho água a ferver, junto as postas com a pele para baixo (é importante!), deixo voltar a ferver, apago lume, tapo a panela e deixo escaldar durante 7 minutos, tirando logo do lume e rejeitando a água. Exactamente!
Também toque pessoal meu é cozer as batatas e a couve ao vapor, num fundo de água com vinho branco, azeite e ervas.
Mas vamos ao Gomes de Sá. Foi comerciante de bacalhau no Porto, autor da receita que deixou escrita. por respeito e por bom gosto gastronómico, não há razão para não a seguir fielmente. Acrescento alguns pormenores de técnica, como o faço.
Para 4 pessoas. 3 postas grandes de bacalhau, 1 l de leite, 2 dl de azeite, 3 dentes de alho, 4 cebolas, 1 kg de batata, 3 ovos, azeitonas pretas, salsa, sal, pimenta branca.Demolhar o bacalhau, com a pele para cima, primeiro em água corrente, algumas horas, depois em várias mudas de água. Numa panela grande, ferver água, juntar o bacalhau com a pele para baixo, deixar levantar fervura outra vez, apagar o lume, tapar a panela e deixar o bacalhau a escaldar durante 5 minutos. Passar para uma tijela com leite acabado de ferver, a cobrir, e tapar com um pano. Deixar até arrefecer. Lascar o bacalhau.Cozer as batatas às rodelas, ficando firmes. Cozer os ovos. Refogar ligeiramente a cebola, o alho e juntar o bacalhau, mexendo. Juntar as batatas e voltar sem desfazer.Colocar numa assadeira com um fundo de azeite. Sobre tudo, rodelas de ovo cozido, azeitonas e salsa picada. Regar com o azeite e levar ao forno pré-aquecido a 200º, 15 minutos.
Costumo pôr as batatas só na assadeira, alternando com o bacalhau e o refogado.
O bacalhau à Conde da Guarda, uma variante da clássica brandade francesa, é uma receita de mestre (nessa altura havia mestres, não chefes!) João Ribeiro, imperador da cozinha do Hotel Aviz e diz-se que elemento importante para a fixação de Gulbenkian em Portugal. Deu origem às milhentas receitas de bacalhau com natas, muitas das quais uma porcaria. A receita que transcrevo, modernizada por mim em aspetos menores, é tal como recolhida por José Labaredas e José Quitério (“O livro de mestre João Ribeiro”, Assírio & Alvim, 1996, um livro a não perder).
4 pessoas: 500 g de bacalhau ou 400 g de bacalhau desfiado, 600 g de batata Astérix, 3 dentes de alho, 3 c. sopa de manteiga, 4 dl de nata, 2 gemas, sumo de limão, queijo ralado, sal, pimenta preta, noz moscada.“Cozer o bacalhau e as batatas, passando estas pelo peneiro. Retirar as peles e espinhas ao bacalhau e pisá-lo com alho. Deitar este preparo numa panela e levar ao lume, juntando 2 cs de manteiga e a batata e mexendo bem. Adicionar aos poucos 3 dl de natas, mexendo bem para massa bem lisa. Temperar com sal, pimenta e noz moscada. Untar com manteiga um prato de ir ao forno, deitar dentro o conjunto, alisar e polvilhar com queijo ralado. Salpicar com manteiga derretida e levar ao forno a gratinar”.
Quando faço este prato, respeitando o essencial da receita, a minha variante é preparar o bacalhau não cozendo mas escaldando em água acabada de ferver e depois leite, como descrito classicamente. Junto também duas gemas de ovo em sumo de meio limão.
Pode-se também adaptar à Bimby: Desfiar o bacalhau: por duas vezes (até 300 g cada), 4s//inv 5.Passar as batatas, bem cozidas (20 m): 5s/-/4

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Estagnação

Entristece-me ver um bom restaurante decair ou mesmo estagnar. Muitas vezes haverá razões atendíveis, mas é então urgente que o restaurante as ultrapasse. Outras vezes, talvez seja “cria fama e deita-te a dormir”.
Sempre gostei muito do Tia Alice, em Fátima, mas já há dois anos que não ia lá. Antes, valia para mim um desvio da autoestrada; hoje já não, depois da experiência de há dias.
O restaurante tem cada vez mais gente, a aguardar vez por tempos exagerados. Provavelmente a cozinha não foi já redimensionada adequadamente, em espaço e pessoal, para esse aumento enorme da procura. Também o serviço, a cargo de um número insuficiente de jovens simpáticas e diligentes, visivelmente eslavas (e bonitas, passe a nota machista), se vê aflito.
A ementa sempre foi curta mas a valer a pena, embora com o risco de, ao fim de algumas visitas, já não haver surpresas. Conheço-a igualzinha desde a primeira vez que lá fui, há largos anos, em ida de Lisboa. propositada. Não houve evolução ao longo destes anos; já nada surpreende um cliente frequente.
Mas não é obrigatoriamente necessário que haja renovação, se os pratos forem tão marcantes que os desejemos sempre. Acontecia connosco com dois que pedíamos com frequência: a vitela assada e a açorda de bacalhau.
Desta vez, a vitela mantinha a grande qualidade a que nos habituámos, mas já a 19,50 €. Já a açorda (ao mesmo preço) foi uma desilusão. Bacalhau excessivamente demolhado e insosso, açorda deslavada de tempero, aguada, com um ovo que era insuficiente para a dose generosa. Provámos também um bacalhau gratinado com camarão (para duas pessoas, 39,50€) pedido pelos meus sogros. Uma banalidade, com cebola quase crua, lascas de bacalhau não simplesmente escaldadas e incubadas em leite, como se deve, e batata cozida às rodelas, com um bêchamel sensaborão; nenhum tempero a dar-lhe um toque de caracterização.
Vale que as sobremesas se mantêm de grande nível, a começar pelo meu favorito bolo do convento. Pena que com preços a acompanhar os já referidos (sobremesas entre 6,50 e 7,50 €, exceto as frutas). E, por falar em preços, não se justifica 2,90 € por pessoa de couvert de pão, manteiga e azeitonas!
Em síntese. Se tiver de ir a Fátima, provavelmente lá voltarei, mas não farei mais desvios da viagem principal para ir propositadamente ao tia Alice.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Comer bem também é educação


As velhas universidades inglesas, Oxford e Cambridge, são únicas no mundo na sua organização. As faculdades, departamentos, instituto de investigação, são entidades relativamente recentes, que organizam, em termos modernos, o ensino e a investigação. Mas o essencial são os “colleges”, alguns dos quais de criação medieval. São a alma da academia e do espirito universitário.
Todos os professores e alunos têm de ser membros de um “college”. Aí vivem, estudam, convivem, comem, têm os seus tutores, independentemente do departamento em que têm as aulas, e onde só se encontram para isso.
E não comem mal. Veja-se a descrição do menu de King’s College, em Cambridge e a imagem de um prato de pequeno almoço.
“Our team of inspired chefs has developed a fantastic range of menus taking in contemporary cuisine and inventive dishes as well as menus designed for the season and occasion. Tradition is given a sizzling twist to offer our dining clients fresh and startling sensory experiences, a sophistication to savour - literally.In keeping with the beauty of our surroundings, we serve visual drama on the plate too. You can feast your eyes as well as your palate on our beautifully presented meals.We pride ourselves on the quality of our food. Nothing but the best produce reaches our kitchens where it is prepared by a team of expert chefs: the results are quite exceptional.”
É mais ou menos como as nossas cantinas universitárias.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Braseado?

Jantei ontem num restaurante agradável, a que vamos com frequência, o Espaço Espelho de Água. Habitualmente, vamos só gozar a esplêndida vista e petiscar qualquer coisa. A localização vale por 90% da razão de lá ir, mas também a ementa, a cozinha (com um toque acentuado brasileiro) e o serviço muito simpático. Pena que com enorme demora, dizem que por insuficiência da cozinha. Indesculpável, contratem pessoal.
Outro ponto negativo é que com muita frequência o restaurante/bar está fechado para eventos. Já batemos várias vezes com o nariz na porta. Porque não avisam na net?
Mas tudo isto vem a propósito de ontem ter lá jantado e comido atum braseado, aliás muito bem feito, em estilo oriental. Esta breve nota tem a ver com o termo braseado. Ele já pegou e não sou excessivamente purista, não vou combatê-lo. No entanto, não deixo de anotar a incorreção.
Está ser usado para carnes ou para peixes como o atum ou o salmão cozinhados em chapa ou frigideira a seco ou com um ligeiro fundo de gordura, a temperatura alta, durante pouco tempo, para cozinhar por fora e deixar o interior cru ou muito mal passado.
Sendo uma técnica de cozinha relativamente recente, não temos designação consagrada para ela. De certa forma, corresponde a coisa bem conhecida, “selar”. Também se pode dizer, em expressão mais complexa, “fritar brevemente em superfície untada”.
Brasear é que é coisa muito diferente. Nem sequer tem nada a ver com brasas. Vem de tradução um pouco tosca do francês “braiser” (inglês “braising”), velho nome da cozinha francesa que significa estufar no tacho, em peça inteira, depois de selada, em lume baixo e com líquido até meia altura. Não inclui refogado, o que distingue de um guisado, além de não ser em pedaços.
Curiosamente, na Terceira, e como se fazia na minha família, esta técnica para peça de carne de vaca, marinada em vinha de alhos, chamava-se assar. Parece que não só lá. Também se dizia assim na casa de Luanda da minha morena.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Cozinha baiana na Bimby

Salvador (Baía) está cheio de barracas de venda de acarajé, principalmente ao longo das avenida das praias. Mas também nas próprias praias. O acarajé, que diríamos ser mais um petisco do que um prato, é um ícone da cozinha baiana. São umas almôndegas de massa de feijão frade e cebola, fritas em óleo de palma (azeite de dendê). Semelhante é o abará, que também leva camarão seco e que é cozido a vapor, envolvido em folhas de bananeira.
É frequente comer o acarajé com dois molhos-pasta, o vatapá e o caruru. As receitas que me dizem ser as mais genuínas são as do livro de cozinha vendido pelo SENAC, o famoso restaurante-“museu gastronómico” do Pelourinho, em Salvador. Já lá vou com dois almoços inesquecíveis, mas a morena bate-me, porque foi agora sozinha à Baía e lá teve de ir almoçar ao SENAC.
Já me confessei aqui adepto tardio da Bimby (Thermomix para quem procurar coisas na net). O meu principal divertimento é adaptar à facilidade e reprodutibilidade da cozinha na Bimby as minhas receitas e outras receitas preciosas. Aqui vão as versões Bimby de vatapá e caruru, respeitando fielmente a composição e confecção indicadas pelo SENAC.
VATAPÁ
É um prato eclético: produtos da terra, indígenas; orientais, como o gengibre; bacalhau e pão, portugueses; e o indispensável óleo de palma, da África ocidental.
200 g de pão, 800 g de bacalhau, 1000 g de água, 150 g de cebola, 100 g de óleo de palma, 70 g de camarão seco, gengibre, 30 g caju, 100 g leite de coco, 150 g de caldo de peixe.
O ingrediente mais difícil de encontrar pode ser o camarão seco. Compro-o nas lojas dedicadas às comunidades imigrantes (Praça da Ribeira, Martim Moniz, e aqui perto uma excelente mercearia exótica, frente à estação da Amadora, mas que vai mudar para endereço que ainda desconheço). Em alternativa, secar ao sol camarão pequeno e defumar em panela, como já expliquei neste blogue.
Embeber o pão em água, 10 munutos e escorrer. No cesto, o bacalhau desfiado e a água. 5m/100º/1 Reservar., Picar a cebola, 5s/-/5. Baixar com a espátula. Óleo de palma, camarão seco. Refogar, 5m/120º/1. Juntar tudo o resto, incluindo o bacalhau reservado e homogenizar, 15s/-/5 subindo a 9. Cozer, 10m/100º/1. Se necessário, aumentar o tempo até pasta.
CARURU
Na festa de Cosme ou dos mabaço, é o prato principal à base de quiabos e dendê, mais abará,farofa, batata doce, inhame e banana frita. 
400 g de quiabos, 40 g de cebola, 20 g de caju, 15 g de amendoim, 30 g de camarão seco, 40 g de óleo de palma, opcionalmente, 50 g de caldo de peixe.
Cortar as pontas e cabeças dos quiabos e incubar 10 minutos em água quente. Cebola, caju, amendoim, camarão, no copo. Picar 30s/-/7. Óleo de palma, 5m/120º/1. Quiabos, sal, 20m/100º/1. Se ficar muito grosso, diluir com caldo de peixe.
NOTA – A convenção para a operação na Bimby é tempo (minutos ou segundos) / temperatura / velocidade.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Fast food de chefes

Como muita gente que se preza, sou muito seletivo em relação ao fast food e comida de centro comercial. Mas é claro que muitas vezes me dá jeito lá comer, por estar lá e na hora. A minha lista não é longa. Eliminados alguns que já enjoam, fico-me, principalmente no meu próximo Alegro, em Alfragide, pelo japonês Hanami, às vezes aqueles aparentemente saudáveis (depende dos ingredientes) de sopas e saladas (há vários), e por outros que vou referir a seguir. Um de que gostava, o Alentejo, degradou-se. Abriu agora um novo, da Madeira, que hei-de experimentar, embora, a meu ver, a cozinha madeirense não tem nada de especialmente notável, ao contrário da açoriana.
Tenho evitado, depois de uma má experiência, o Bitoque no Ponto. A razão do meu descontentamento não é propriamente a cozinha. Não se pode esperar mais, a cerca de 7 euros: um bife razoável (alcatra? pojadouro?) grelhado, um ovo estrelado na chapa, batata frita de qualidade abaixo do aceitável ou arroz, e um molho variável (que até inclui um bizarro molho com base em Bulhão Pato, “à Vila Nova de Milfontes”!). Nada ofende muito a ideia de bitoque: o bife não é frito e o ovo não é canónico, mas vêm bem feitos, no ponto, e é tecnicamente mais fácil para um fast food e até mais saudável.
A desgraça é o molho. Já provei dois: à antiga portuguesa e à café. O sabor comum predominante é a farinha crua, nem sequer a “roux”. O molho à antiga portuguesa é simplesmente de alho, mas com a nota pretensiosa de ser temperado com pimenta rosa, esse tempero tão genuinamente tradicional! O molho à café, como era de esperar (os clientes incultos exigem?) vem a saber bem a café. É coisa que já muitas vezes discuti, salientando que, mau grado algumas referências estimáveis, o molho “à” café (dos bifes tradicionais dos velhos cafés de Lisboa, e ainda hoje dos mais famosos) não é molho “com” café.
Este Bitoque no Ponto fica furos abaixo de outros restaurantes de carnes de centro comercial, mais imaginativos e com melhor confeção: H3, Prego Gourmet, Slow Cook, e, claro, a velha Portugália. Até um muito agradável restaurante de carnes assadas, de Olivier, no Centro do Monumental, que creio que já fechou.
A diferença essencial é que quase todos estes são anónimos. Come-se bem para o que se espera, mas ninguém se está a importar com saber quem é o chefe. No Bitoque no Ponto, sobressaem o nome e duas grandes fotos de Justa Nobre, a “atestar a qualidade”.
Não tenho nada contra a experiência de um chefe na área do fast food. Avillez, para garantir o seu Belcanto, enveredou por coisas que lhe dão suporte financeiro para as estrelas que senão o levariam à falência e até abriu uma ótima mas falhada empadaria num centro comercial. Mas Avillez nunca deslustrou o seu nome. Come-se muito bem no Cantinho e no Café Lisboa.
Também se come muito bem no Nobre, um restaurante de que gosto muito, mas só por provincianismo nosso se pode considerar Justa Nobre como “chefe”, a garantir qualquer coisa em que se meta, como este Bitoque. É uma ótima cozinheira, tem algumas – poucas – criações muito boas, mas, em termos de alta técnica, cultura gastronómica e criatividade, está muito longe da ideia de chefe a que foi catapultada televisivamente.
Com tudo isto, um conselho que me parece sensato: experimentem, provem, mas, principalmente num fast food, não olhem para a propaganda de “chefes” nem muito menos a tenham em conta.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Morcelas açorianas

A par dos queijos, de que falei há dias, os enchidos e a doçaria fazem parte do trio icónico da gastronomia açoriana, sem esquecer, obviamente, os peixes, ou únicos lá ou, a meu ver, muito melhores do que cá. Nos enchidos, sobressaem as morcelas e a linguiça. Como vou falar principalmente das morcelas, só uma nota sobre a linguiça.
À primeira vista, parece um chouriço, com o diâmetro a que estamos habituados. Não se fazem lá as linguiças estreitas continentais. Há muitas variantes, mas, em geral, fazem-se só com carne limpa, de preferência de lombo, posta de vinha de alhos com vinho branco, vinagre, limão galego, malagueta, laranja, colorau, alho e sal. Muito diferentes das muito mais simples linguiças continentais.
Morcelas, à primeira vista, parecem basicamente o mesmo, cá e lá: sangue de porco, vinagre, gordura de porco (véu ou rissol), farinha ou arroz, cebola, salsa, cominhos. A grande diferença está nas especiarias, tão típicas das cozinhas açorianas, de ilhas de aguada e abastecimento das naus da Índia, a tomar a latitude de Lisboa.
Essencialmente, as morcelas açorianas, com variantes de ilha para ilha, levam os ingredientes que referi, mais frequentemente o pão, inclusive de milho, mas também o arroz ou farinha de arroz. Frequentemente, cebola de rama em vez da cebola normal. A mais, vinho branco e aguardente ou vinho do Porto e, sobretudo, os temperos, que lhes dão um toque distintivo notório: cominhos, erva doce, canela, cravinho, massa de malagueta (pimenta da terra).
Cada produtor rivalizava na qualidade das morcelas e as pessoas escolhiam-nos com fidelidade. Na minha infância era a charcutaria Cardozo, que até ia a casa recolher as encomendas e entregá-las. Muito mais tarde, já indo lá só a férias, passei a comprar do Costa, um supermercado na Calheta, ou do Cavalo Branco, um restaurante nos Mosteiros. Desaparecidas as do Costa, passei para as do Borges ou as do Viveiros, nas Capelas, também muito boas. Por tudo isto, sabem-me a muito pouco as que cá compro nas lojas dos Açores, de uma salsicharia Ideal. No entanto, para quem não conhece as morcelas açorianas, mesmo que não as supra-sumo, recomendo estas. Há dias, comprei muito boas da Charcutaria Açoriana (Azores Gourmet), num espaço temporal que o Corte Inglês dedicou a produtos açorianos. Agora, já não as encontro lá.
Comiam-se as morcelas de todas as formas. Cortadas em rodelas grandes (cerca de 5 cm), eram habitualmente fritas em banha, embora o restaurante Castelo Branco tenha popularizado, e bem, as morcelas assadas no forno de lenha. Hoje frito-as em frigideira só untada com banha (azeite não!). Havia quem gostasse delas ainda em papa, outros, como o meu primeiro sogro, comia-as como se fossem pedaços de carvão aromático. Frequentemente, comem-se com ovo estrelado. Para acompanhar, muitas vezes batatas fritas ou arroz branco, mas eu habituei-me sempre ao inhame cozido, cuja textura e suavidade (e até cor) se ligam magnificamente com as morcelas.
Decididamente não vou é com a moda de algumas poucas dezenas de anos, em todos os restaurantes, da morcela com ananás. Lembro-me bem de onde isto veio. Nessa altura, surgiu na Madeira a confecção dos filetes de espada preto com banana. Fica muito bem, porque são sabores suaves e compatíveis, valorizando-se mutuamente. Algum esperto micaelense lembrou-se do ananás para a morcela. A meu ver, não só não adianta nada ao excelente enchido como estraga o também excelente fruto, abafado pelo sabor intenso da morcela. Mas há gostos para tudo. Ou razões, como um amigo que me diz que assim consegue vencer a sua dispepsia.
NOTA – Falei de inhame. Sempre que possível, sugiro alternativas locais para os produtos açorianos. No meu livro, até sugeri um sucedâneo da coisa mais característica, a massa de malagueta, hoje à venda nas lojas dos Açores. O mesmo, por exemplo, para a batata doce, que cá temos muito boa. Não consigo dizer o mesmo é do inhame. O que cá se vende nos hipermercados, da América latina, é para mim incomestível. Valha que há quase sempre à venda nas lojas dos Açores (R. S. Julião, R. da Madalena ou R. Viriato) genuíno inhame açoriano.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Queijos açorianos

Sou grande apreciador de queijos e sou muito bairrista açoriano. As duas coisas juntas tornam-me exigente em relação aos queijos açorianos, até porque uma tão importante imagem de marca não pode ser adulterada.
Sou de tempo, recém-chegado ao continente, em que o “queijo da ilha” era apenas uma opção mais barata. Exceção era Angola, como me diz a morena, em que só ele lá chegava, mais algum flamengo. Cá, a nossa tradição e gosto sempre foi para os queijos de ovelha e eventualmente cabra. De vaca, só o banal Castelões e alguns flamengos, principalmente o Limiano e um que fabricava a Martins e Rebelo e de que não recordo o nome.
Note-se, todavia, que na grande lista dos queijos mundiais famosos, a grande maioria é de vaca e curado, ao arrepio do nosso gosto tradicional. Claro que gosto muito de Azeitão, Serpa e Serra (por esta ordem), mas prefiro um queijo de vaca curado, a começar pelo meu queijo dos queijos, um Gruyére super-choix.
Nos últimos tempos, tem havido por cá grande propaganda a queijos açorianos de vaca, pastosos, quase não curados. São os queijos da Terceira, também alguns de S. Miguel e agora, muito falado, o queijo de “O Morro”, do Faial. A meu ver, deslustram o panorama dos queijos açorianos e quase nada adiantam à oferta continental de queijos de pasta mole, artesanais ou industriais.
Acima de todos, o S. Jorge, principalmente o do Topo e Rosais. Vende-se em três tempos de cura, 3, 4 e 7 meses. O de 3 meses (e até o de 4) é ainda incaracterístico, para quem não aprecia um bom queijoMais raramente, oferecido na Loja dos Açores e na Manteigaria Silva, o de 12 meses e até de 24, que, para mim, já não adianta muito. Conselho essencial é que, sempre que possam, comprem fatias cortadas na ocasião ou já embaladas mas em filme, porque o mais vulgar, a embalagem a vácuo, prejudica muito o queijo e deixa-o aborrachado. A tradição, na minha terra, era de provar sempre uma lasquinha do queijo inteiro, antes de o comprar. Vejo aqui, por vezes, nas lojas que o vendem à fatia, a designação queijo picante. Vão por ela!
O queijo da Graciosa é semelhante. Já o do Pico difere muito, sendo um queijo pequeno, de cura rápida e sabor muito característico. O mais famoso, e para mim, é o S. João. Começou também a ver-se por cá o queijo do Corvo, próximo do do Pico e muito bom.
Em S. Miguel havia queijos industriais muito bons, que por cá se vendem, dos Lacticínios Loreto: o flamengo e um chédar que nunca mais vi. Mas os grandes queijos, tradicionais, eram o de Água Retorta e o Queijo Velho. O primeiro, aparentado com o S. Jorge, mas com um gosto mais subtil e menos áspero, deixou de se fabricar. Pelo contrário, o excelente Queijo Velho, desaparecido no meu tempo, foi renascido há alguns anos. É muito diferente do S. Jorge, embora também seja um queijo curado de vaca. Reconhecem-no facilmente pela casca preta. Não percam.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Desvirtuações

Ainda há dias, numa das suas ótimas crónicas, Virgílio Nogueiro Gomes protestava contra desvirtuações abusivas de designações tradicionais. É também minha velha luta. É claro que isto nada tem a ver com inovação e aperfeiçoamento, até por questões técnicas, de novos ingredientes, ou de normas dietéticas. Também eu corto nos ovos e no açúcar em receitas de família, hoje venenosas. E também acrescento com frequência notas pessoais a essas receitas ou a receitas populares. Também o fazia sempre a minha avó materna, apesar – ou por isso – de guardiã do rico património culinária familiar, até com muitas receitas de segredo, como era costume na época.
Outra coisa é atentar contra o núcleo essencial que caracteriza uma receita tradicional consagrada. Em muitos casos, pensando em turismo gastronomicamente interessado, até é uma fraude. Imaginem que um turista quer conhecer amêijoas à Bulhão Pato e lhe servem (não estou a inventar) amêijoas com cebolada e um molho com mostarda e piripiri, apenas com os coentros a dar o nome. 
As páginas da net brasileiras são especialistas. Por exemplo, já vi um Stroganov com cenoura e levado a forno, com queijo ralado, a gratinar. Ou mesmo em relação à sua própria cozinha, quando se comparam receitas baianas genuínas, do SENAC, com o que as madamas “cozinheiras” publicam nos seus blogues. Também podia falar nos nossos blogues do “deve ser delicioso” e nas nossas tias prendadas, mas não quero bater mais no ceguinho.
O Corte Inglês tem agora uma secção de produtos açorianos, criteriosa e variada. Lá encontrei uma coisa que nunca tinha provado, as queijadas terceirenses do Conde da Praia da Vitória. Como diz o fabricante, são em tamanho de queijada um pudim de que tenho a receita, com o mesmo nome. 
Quando ouvi falar dele, há poucos anos, estranhei não fazer parte do receituário da minha avó materna, terceirense e uma das mais afamadas doceiras da ilha, com muitas receitas inventadas por ela. Para mais, no pequeno mundo “bem” da orgulhosa mas minúscula Praia da Vitória, a de Vitorino Nemésio, a família da minha avó era chegada à família Paim de Bruges, viscondes de Bruges e depois condes da Praia da Vitória, ou simplesmente da Praia, como lá se dizia, confundindo-se com o título micaelense com o mesmo nome.
Verifiquei depois que o pudim estava esquecido e tinha sido recuperado há algumas décadas (1962, quase a data da morte da minha avó que o desconhecia) por duas senhoras da família Paim, cá em Lisboa. Se virem a receita, e como as pós-autoras acentuam, o pudim tem uma característica quase única: o principal ingrediente é batata! Ora de batata, nas tais queijadas, nem raspa. Um dia destes, tenho de me preparar para ver as excelentes e invulgares morcelas da minha ilha feitas sem sangue, com corante a dar o tom preto.
Também se vendem no tal espaço os icónicos bolos D. Amélia. São bolinhos tradicionais, com especiarias, como é tão vulgar nos Açores – terra de aportagem das naus da Índia na volta do largo – mas que, na visita régia de 1901, tendo a rainha apreciado muito esses bolinhos, foram rebatizados pelas pastelarias locais com o nome da rainha.
Os que comprei agora, de fabrico de uma pastelaria que não conheço, são bons mas não excepcionais, como eram os da minha avó. Para além de casa, ela fazia-os também para a mais famosa pastelaria de Angra, Athanázio, de um seu cunhado. Ainda hoje existe, não sei a cargo de quem, e vale a pena lá ir. Aqui fica a receita.
150 g de farinha de milho peneirada, 2 c. sopa de farinha de trigo, 2 c. sopa bem cheias de mel de cana, 500 g de açúcar, 4 ovos inteiros e 4 gemas, 50 g de passas, 1/2 noz moscada, 10 g de canela, 1 chávena de manteiga derretida 
Bater muito bem o açúcar com os ovos. Ao engrossar,  juntar aos poucos a manteiga derretida, batendo sempre. Juntar as passas. Acrescentar as farinhas, o mel, a canela e a raspa de noz moscada. Bater bem e levar ao forno em forminhas lisas, untadas.
NOTA. A imagem que ilustra esta entrada tem uma história que me caiu para sempre. Há muitos anos, vejo agora no caderno que em 1979, já a minha avó desaparecida há muito, quis a minha mãe recordar as receitas de família e escreveu-as em cadernos para os três filhos. De tão manipulado, e apesar da minha intenção sempre adiada (estou agora a fazê-lo) de o digitalizar, foi-se o caderno transformando-se quase em farrapo. Em dezembro de há dois anos quis consultá-lo e foi um ver se o encontrava. A minha mulher e até a nossa empregada, cúmplice, afirmavam solenemente que se lembravam de eu o ter ido buscar à estante e que ainda o tinha. Na noite de Natal, a melhor e mais querida oferta que tive foi o livro encadernado, em excelente trabalho de um encadernador que teve de aplicar soluções técnicas especiais. 
Prenda de Natal é isto, com grande valor afetivo, coisa que a minha morena põe em tudo que me diz respeito. Valha que também retribuí, não sei bem se nesse ano, vasculhando alfarrabistas por toda a Lisboa para uma boa coleção de livros velhos sobre a sua Angola. São prendas que valem muito mais do que coisas materiais ricas.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Oh!, coisas simples!

Comi hoje ao almoço, muito saudavelmente, peixe cozido. Parecendo que não, justifica algumas notas.
O peixe foi abrótea, um peixe desconsiderado cá, mas aquele a que, desde miúdo açoriano, me habituei. É certo que o que aqui se vende, do Atlântico Norte (onde?), provavelmente com dias de refrigeração, fica longe da abrótea açoriana, a lascar, excelente para cozer e para filetes. Não há turista que venha dos Açores e que não fale dos filetes. Não têm nada demais, só a abrótea bem fresca.
Peixe cozido? Em tempo de grande predileção pelos grelhados? Claro que gosto de peixe grelhado, mas tem de ser um peixe não espesso (não vou no peixe escalado). Todavia, isto não devia fazer esquecer tudo o excelente resto: peixe cozido, frito, assado. Mesmo a caldeirada, se bem que de peixes menores. Por exemplo, sou, também pelas raízes, grande apreciador de garoupa, mas fico estarrecido quando só a fazem como postas grelhadas. Já fritaram uma posta de garoupinha?
Peixe assado ainda há dias fizemos. Ou melhor, fez a morena, que é especialista, com uma receita mais rica do que a tradicional portuguesa que faço. Digo faço, hoje, porque a minha tradição é a do peixe assado em receita de família, invulgar, que vai no fim.
Coisa elementar que muita gente desconhece é que nunca! se coze peixe (incluindo bacalhau) em água a ferver. Deixa-se ferver a água, introduz-se o peixe e deixa-se voltar a fervilhar. Apaga-se o lume, tapa-se a panela e deixa-se cozer, escaldando, durante 5-7 minutos conforme o tipo e quantidade de peixe. No caso do bacalhau, escorre-se e imcuba-se meia hora em leite acabado de ferver.
Gosto muito de peixe ao vapor, com um caldo de legumes (neste caso sou pouco exigente e uso a geleia da Nestlé, mas não o cubo), vinho branco, um pouco de azeite, chalotas ou alho, louro, ervas da minha horta de varanda (salsa, tomilho, estragão, cerefólio), pimenta da Jamaica, sumo de limão. No fim, muitas vezes engrosso o caldo, coado, com gema de ovo, como se faz com o “court bouillon” da truta “au bleu” (outra das minhas coisas "simple things, how good!").
Fazia o peixe ao vapor no lume, na peixeira. Atualmente, meu novo vicio, faço na Bimby. Os ingredientes do caldo no copo. Na varoma, batatas e feijão verde. 15m/varoma/vel. 1. Se brócolos, primeiro só as batatas, 10 minutos e depois os legumes, 5 minutos. A seguir, em qualquer dos casos, colocar o tabuleiro, com o peixe e mais 15m/varoma/vel 1.
Finalmente o tempero. Ou o caldo engrossado ou o simples azeite e vinagre, com flor de sal e pimenta preta e branca misturadas e moídas no momento. Há muitos gostos para azeite e vinagre. O meu vai para o virgem extra da cooperativa de Vila Velha de Ródão, habitual oferta de um bom compadre, e o vinagre de tinto Moura Alves, que se vende na loja gourmet do Corte Inglês.
E cá vai a receita prometida, invulgar e subtil de elegância de sabores, coisa de família que não é de tradição regional açoriana. A cozinha era uma religião na família da minha avó materna, Adélia. Um dia destes, publico o seu livro de receitas, herdades ou criadas por ela, manuscrito pela minha mãe. Com a minha avó aprendi que a cozinha é arte e criatividade, compromisso equilibrado entre respeito pelo tradicional clássico e o moderno.
Em princípio, o peixe usado era a bicuda, que não há cá, uma variante de mares frios da barracuda, e mais pequena. Mas pode ir com os nossos peixes para assar, pargo, imperador, goraz, cântaro, garoupa, corvina.
Para 4 pessoas. 1 bicuda grande, 4 c. sopa de azeite, 4 c. sopa de vinagre, 4 c. sopa de banha, 1,5 c. sopa de farinha, 2,5 dl de caldo de peixe, 18 nozes, 125 g de azeitonas pretas, sal e pimenta. 
Untar uma assadeira com azeite e colocar o peixe, com uns cortes no lombo e temperado com sal e pimenta. Cobrir com o molho, feito com o azeite, o vinagre, a banha, a farinha diluída no caldo de peixe, tudo bem misturado, mais o miolo das nozes esmagado grosso e as azeitonas. Assar a 180º, regando com frequência o peixe com o molho misturado à colher. Servir coberto com o molho apurado, com uma guarnição a gosto (tradicionalmente, na família, batatas salteadas ou puré de batata com azeitonas pretas). 
Minha variante: Juntar ao molho uma redução forte, muito concentrada e coada, de 2 dl vinho branco com chalotas, salsa, cerefólio, cebolinho, estragão e pimenta da Jamaica, com uma pequena casca de limão. A minha avó gostaria de ver as minhas variantes. Ela estava sempre a experimentar.
(Há na minha família quem me rogue pragas quando divulgo “segredos”. Mas que maior homenagem posso prestar a essa herança senão divulga-la? E, no meu livro, há um capítulo dessas excelentes e bizarras – porque invulgares e de tom parisiense – receitas de família).

domingo, 17 de abril de 2016

Cápsulas de café

Cada vez ganha mais visibilidade, nas prateleiras dos supermercados, a guerra das cápsulas de café. Numa primeira fase, depois da lança em África que foi a máquina Nespresso, da Nestlé, a concorrência centrou-se na máquina, com o aparecimento da máquina da Delta. Só por decorrência é que havia competição na venda de café em cápsulas para expresso, específicas de cada uma das marcas de máquinas.
Hoje, a competição é principalmente ao nível das cápsulas de café, de variados fabricantes, compatíveis com uma ou outra das máquinas. Só me admira como conseguem, sem diferenças visíveis, ultrapassar a mais que certa patente da marca original.
Este café expresso doméstico revolucionou os hábitos de consumo de café. Já havia máquinas domésticas de expresso, para café moído e doseado manualmente, mas caras e julgo que não muito vulgares. Eu tinha uma, mas, pessoalmente, não lhe dava grande uso, tendo sempre preferido o café de filtro/saco/balão (tudo variantes de café tirado sem pressão acima da atmosférica). Era este o hábito da maioria das pessoas, em casa, bebendo expresso – a bica ou o cimbalino tripeiro – só fora de casa, no café ou restaurante.
A oferta era limitada. O de origem portuguesa colonial era de Angola ou menos frequentemente de S. Tomé ou de Timor, com algum outro importado. Era o Chave de Ouro, o Nicola, o Tofa, o Delta e poucos mais. Só raros conheciam outros tipos de café, de outras origens, nomeadamente o brasileiro ou o colombiano a que se habituaram os nossos emigrantes. Mais tarde é que se popularizaram os cafés italianos, como o Segafredo ou o Buondi, que, na altura, eram os meus preferidos.
Também era reduzido o conhecimento sobre o café. Para a maioria das pessoas, a principal característica era ser mais ou menos forte, valorizando-se menos o gosto e aroma. Era como se categorizássemos um vinho só pela sua graduação alcoólica. Muita gente nem saberia que as características principais de um café estão essencialmente relacionadas com a espécie de cafe, Coffea canephora e C. arabica, para além de dezenas de outras menos vulgares. A primeira dá o café robusta, mais forte, amargo e menos aromático, e a segunda dá o café tipo arábica, mais ligeiro, perfumado e com gostos mais subtis e variados (chocolate, madeira, frutos, mel, etc.).
Só os apreciadores escolhiam, nas lojas especializadas, os seus lotes personalizados de mistura de café robusta e de arábica ou, preferindo, apenas cada um dos dois tipos. Para nós, era normalmente dito café de Angola ou café de Timor.
Ainda hoje muitas pessoas se podem dividir, em termos dos cafés da Nespresso, como preferindo o Ristretto ou não. Muitas vezes confundem isto com a intensidade, agora que se habituaram à graduação do café, sendo o Ristretto o mais intenso. Podia dizer-se o mais forte, como antes se dizia do café de Angola, exclusivamente robusta. O Ristretto o que é, afinal, é um café com inclusão de robusta e muito torrado. Já o também intenso Arpeggio, muito conhecido, é exclusivamente arábica, mas com muita torrefação. Os menos intensos são só arábica e menos torrados.
Não pode deixar de dar confusão e incertezas de gosto a grande variedade dos cafés Nespresso, 25 tipos, incluindo longos e descafeinados. Também só em quatro casos se pode identificar a origem: o Indriya, indiano; o Dulsão, do Brasil; o Rosabaya, da Colômbia; e o Bukeela, da Etiópia. Pela origem, deduz-se que todos são arábica, mesmo o etíope, apesar de africano, mas de altitude.
Refira-se que a passagem para o expresso mudou o gosto de muitas pessoas. Conheço quem bebia habitualmente café forte, robusta angolano, sem mistura, mas feito com filtro ou saco. Agora, bebendo expresso, não gostam do Ristretto (que nem sequer é só robusta).
A Delta tem uma gama mais limitada, de cinco variedades, três de mistura e dois com origem definida, Colômbia e Timor. Para mim, é uma opção mais acertada do que a da Nespresso, que até chega a lançar frequentemente variedades que depois descontinua em pouco tempo.
Dos cafés de supermercado compatíveis com as máquinas Nespresso, saliento os de três fabricantes: Nicola, que se vê por toda a parte; Compagnia dell’Arabica, que encontro nos Jumbo da Auchan; e Bellarom, exclusivo da Lidl.
O Nicola manteve, no essencial, os lotes a que há muitos anos nos habituou. O Bocage, de cápsulas vermelhas, é mais intenso e menos aromático. Prefiro o Selecto, de cápsulas castanhas, mais suave e com sabores e aromas mais acentuados. O descafeinado é, para meu gosto, melhor do que qualquer dos descafeinados da Nespresso. Qualquer deles é mais barato do que os Nespresso, aliás uma característica comum a todos esses cafés “de supermercado”.
Os Bellaroma, do Lidl, também são descritos, os quatro tipos de expresso, só por intensidade, desde grau 4 a grau 10, aliás com a designação copiada de Ristretto (não percebo como funciona isto demarcas protegidas nos cafés). Tem também dois cafés longo, de intensidade média. Só provei o Palermo, que não me desagradou, embora sem me maravilhar (a não ser no preço).
Fiquei agora cliente dos Compagnia dell’Arabica. Vendem-se em caixas de dez cápsulas  (0,30 € a unidade) que, tal como os do Lidl, são embaladas em sacos individuais herméticos, para melhor conservação. São todos cafés com origem única, sem loteamento entre países. Há café do Brasil, da Colômbia, de El Salvador, da Costa Rica, da Nicarágua, do Quénia e da Índia. Gosto de todos, mas o meu preferido é o do Brasil, logo seguido pelo Índia. Para variar, por ser bem diferente, também bebo de vez em quando o do Quénia.
Nota final, por dizer que prefiro o café do Brasil, coisa já antiga quando, era eu jovem, um amigo com família no Brasil o recebia e me oferecia. Ainda agora, regressado da Baía, disse a verias pessoas que tinha bebido excelente café. Para minha estranheza, todos me diziam que o tinham achado uma porcaria, fraco e aromático demais. Vejo que é o efeito do hábito atual de só beberem café expresso, porque o que beberam no Brasil é de saco. Faz toda a diferença, mas foi o que sempre fiz em casa até ter entrado na onda das cápsulas. E a minha máquina de balão lembra-me a atenção com que eu via o mu pai fazer assim o seu café.

domingo, 27 de março de 2016

O meu cabrito assado

Há bastantes anos que cumprimos a tradição do cabrito no domingo de Páscoa, mas, sendo a minha morena angolana, comemos normalmente uma ótima caldeirada de cabrito. Gosto muito, mas creio que ainda prefiro o cabrito assado. Coube-me este ano a escolha e a sua preparação.
Gosto muito de fazer cozinha tradicional, em geral com um toque pessoal não descaracterizador, e principalmente as cozinhas açorianas, com destaque, sendo eu híbrido, para a micaelense e terceirense.
Em nenhuma das ilhas é vulgar comer-se cabrito ou borrego. Gado caprino é só para queijo fresco, excelente o das Furnas, hoje impossível por causa da brucelose. Na imensa recolha de receitas de Augusto Gomes (“Cozinha Tradicional da Ilha de S. Miguel”, ed. Secretaria Regional da Educação e Cultura dos Açores, 1988), apenas se incluem duas receitas de cabrito assado, que se distinguem da generalidade das receitas continentais pela marinada prévia da carne. É, aliás, um uso vulgar na maioria dos cozinhados de carne açorianos, assados, estufados ou guisados (com a notável exceção da irónica alcatra terceirense).
Foi com base nisto que preparei o cabrito assado no forno, com base na minha versão de vinha de alhos, como publicada no meu livro “Gosto de Bem Comer” (que disponibilizei como e-book). Foi a primeira vez que o fiz, coisa arriscada em dia de festa com convidados, mas foi unanimemente elogiado. Não é para me gabar…, mas concordo.
Ingredientes, 4 pessoas:
1,6-1,8 kg de cabrito aos pedaços grandes, 100 g de banha, 100 g de manteiga (ou, para efeitos de saúde, margarina dietética de cozinha), 16 batatas pequenas para assar (Agria, Ágata, Monalisa, pequenas), 4 dentes de alho, 1 folha de louro, sal, 1/2 c. chá de massa de malagueta. Vinha de alhos: 2 cebolas, 4 dentes de alho, 3 limões galegos (ou 1 tangerina, 1/2 limão e 2 limas), 1 folha de louro, 2,5 dl de vinho branco, 1 dl de vinagre, água q. b., 1 c. sobremesa de massa de malagueta, sal, 12 grãos de pimenta preta, 6 grãos de pimenta da Jamaica, 1 c. sopa de colorau, 1 raminho de salsa, 1 haste de tomilho, 1 raminho de alecrim/rosmaninho.
Preparação:
Preparar de véspera a vinha de alhos, com a cebola aos gomos, os dentes de alho não pelados e esmagados, os citrinos cortados em gomos e só ligeiramente espremidos, e os restantes ingredientes. Misturar bem com a carne, acrescentando água até cerca de metade da altura. Deixar em lugar fresco, mexendo várias vezes.
Escorrer os pedaços de carne, sem os secar, colocá-los em assadeira, cobrir com banha e manteiga e regar com a marinada. Assar a 200º durante 1 hora e depois a 160º, até bem crestado, cerca de mais 1,5 horas. Regar com o molho, de vez em quando e, se necessário, acrescentar um pouco de água.
Uma hora antes de pronto o assado, juntar as batatas, previamente escaldadas durante 5 minutos em água com o alho, o louro e a malagueta. Regar com o molho.
Resultado: um cabrito com sabores marcados mas não demasiadamente intensos a abafar a delicadeza da carne; pele bem tostada e carne macia e tenra, não seca (siga as indicações de temperatura!); ótimo molho; batatas com um sabor subtil e invulgar. Recomendo.

terça-feira, 15 de março de 2016

Um ótimo instrumento de cozinha

Este Natal, oferecemo-nos mutuamente uma Bimby, modelo 5 (no estrangeiro, a Vorwerk fabrica-a com a marca Thermomix). Durante anos, não quis ouvi falar de tal coisa, com a ideia de que aquilo tirava toda a arte e graça ao cozinhar. Depois de ver uma demonstração e pesquisar um pouco, rendi-me. Não tanto para fazer as receitas (aliás boas, para o dia a dia) que a Bimby traz, mas principalmente para adaptar à máquina as minhas próprias receitas.
Tudo o que é necessário é dominar algumas operações básicas (picar, refogar, estufar, preparar massas, cozer a vapor) e usá-las como se quiser ou como se deve. E aqui é que está a negação do meu anterior preconceito: é preciso à mesma criatividade e boa técnica, bem como o esforço para apurar a receita. Três grandes vantagens adicionais: limpeza (deixei de fazer o lixo de que a minha mulher tanto se queixa), reprodutibilidade e controlo perfeito da temperatura. Sá não se pode fritar bifes ou assar!
Aqui fica, como primeiro exemplo, o meu almoço de domingo, um vulgar Strogonoff, coisa de agrado geral, com a minha variante da receita o mais clássica possível (ninguém conhece a receita original; eu sigo as descrições mais antigas, com pequenos toques de diferença). Essas que tenho remetem sempre para a descrição tida como a mais antiga, de 1871, “carne à strogonov com mostarda”, de Elena Molokhovets.
Ingredientes. 800-900 g de carne de lombo, 75 g de manteiga, 20 g de farinha, 1 calice de aguardente, g de chalotas (ou, como mais frequentemente, g de cebola), 200 g de cogumelos portobello castanhos (ou de Paris), 100 g de vinho branco, 100 g de caldo de carne, 275 g de nata azeda (ou 150 g de nata e 125 g de iogurte simples), 15-20 g de mostarda de Dijon, 1 folha de louro, sal, pimenta preta em dose generosa, 1 c. chá de paprica.
Preparação.
Cortar a carne em tiras finas, com cerca de 4x1 cm.
Colocar no copo 50 g de manteiga e a carne, 4min/120º/vel. colher.
Flamejar com a aguardente. Envolver na farinha, 1min/120º/colher. Temperar.
Reservar. Colocar no copo as chalotas ou cebola cortadas em pedaços e picar, 5seg/-/vel 5. Com a espátula, arrastar para o fundo.
Juntar o resto da manteiga e refogar, 5min/120º/1.
Juntar os cogumelos fatiados, 2min/120º/colher.
Acrescentar o vinho, o caldo e a folha de louro., mais a nata azeda e a mostarda. 3min/85º/colher.
Voltar a juntar a carne e o seu suco, misturar 30seg/-/colher.
Servir com arroz branco (receita padrão da Bimby).
Notas. As medidas vão em gramas, porque a Bimby serve de balança. A carne de lombo que usei foi comprada no talho do Corte Inglês (carota…) e era das melhores e mais macias carnes de lombo de que me lembro.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Jantar de S. Valentim

O jantar do dia de S. Valentim – essa introdução recente na cultura urbana portuguesa – é bom pretexto para reanimar este blogue, que tem estado em hibernação. Não é nosso hábito ir nesse dia a restaurantes, muito cheios. Jantamos em casa, esmeradamente, eu a cozinhar, a morena a dispor a mesa como em cerimónias as mais especiais, não esquecendo, claro, as velas e as flores.
Ontem fiz lagosta à americana. Esclareça-se, não se vá pensar que não sinto a crise, usei umas lagostinhas pequenas de Moçambique, congeladas, a 30 euros. Como são imprestáveis para comer como gosto mais, simplesmente cozidas, com molho de salsa verde da minha terra (cebola, salsa, sal, pimenta, malagueta e açaflor), usei a preparação à americana, como também uso frequentemente outra muito boa, à Thermidor.
Este prato célebre tem a sua história, embora controversa. Deve-se a Pierre Fraysse, cozinheiro francês que, depois de vários anos de trabalho na América, abriu em Paris o seu restaurante Peter’s, em 1854. Diz-se que uma noite, por volta dessa data, recebeu ao fim da noite um grupo de comensais importante, quando já só tinha alguns lavagantes (homard; lagosta é langouste em francês). Improvisando, com vinho, legumes, caldo de peixe (“fumet”) e algumas bases, serviu-lhes o que ficou célebre como lavagante à americana.
Isto seria homenagem ao país em que trabalhou muitos anos, com muito sucesso. No entanto, há quem diga que o nome é uma corruptela de “à la armoricaine”, zona da Bretanha famosa pelo seu marisco, mas esta receita não tem nada a ver com a cozinha bretã. também há quem radique esta receita no lavagante Bonnefoy, do restaurante do mesmo nome (e a quem se deve o molho Bonnefoy, uma variante do bordelês), antes conhecido como “langouste niçoise”.
Procurei em vão a receita original de Fraysse. Na net há dezenas de receitas, com muitas variantes, sobretudo da gama de legumes e de alguns processos de preparação. Acabei por fazer a receita do grande Escoffier (“Le Guide Culinaire”), com pequenas modificações minhas, que indicarei depois.
Ingredientes. Lavagante, 800-900 g, 2 chalotas, 1 dente de alho, 4 c. sopa de óleo, 130 g de manteiga, 1,5 cálice (7,5 cl) de aguardente, 2 dl de vinho branco, 1,5 dl de “fumet” (caldo de peixe com legumes, em água e vinho branco), 1 c. sopa de geleia de carne, 3 c. sopa de “demi-glace” (tenho sempre em casa, preparados com frequência e guardados no frigorífico ou no congelador, o caldo, a geleia e o molho “demi-glace”), 2 c. sopa de polpa de tomate, salsa, pimenta da Caiena.
Preparação. Separar as cabeças, pinças e patas. Cortar os lombos e caudas em troços. Numa caçarola larga, aquecer a lume médio (nível 10-12 na minha placa de indução) o óleo e 30 g de manteiga. Alourar bem os pedaços de lavagante, com cuidado para não queimar. Rejeitar a gordura, juntar as chalotas picadas e o alho esmagado. Flamejar com a aguardente. Juntar o vinho, o caldo, a geleia, o “demi-glace”, a polpa de tomate e os temperos. Tapar e cozer no forno, 15-20 minutos. Reservar a carne e reduzir o caldo até relativamente espesso. Fora do lume, incorporar, batendo, 100 g de manteiga, adicionada à carne das pinças e patas, e ao coral (ovas). Reintroduzir os pedaços de lavagante, aquecer sem ferver mais e polvilhar com salsa picada. Servir imediatamente.
Modificações minhas. Para além de ter usado lagostinhas, alterei pouca coisa. Cozi as cabeças e patas (claro que, sendo lagosta, não tinha pinças), extraí os restos de carne e as ovas. Usei para o molho parte do caldo, para além do vinho e do “fumet”. Juntei também um grande talo de aipo, cortado às rodelas. Fiz tudo numa frigideira alta e cozi no fogão, não no forno. Para manter o volume de molho, não o reduzi mas usei a manteiga trabalhada com 2 c. chá de maizena. Em vez da salsa, juntei ao molho, quase a terminar a fervura, umas folhas de estragão, erva de que gosto muito com mariscos. Servi com arroz branco.
Permitam-me que me gabe: ficou uma delicia, um excelente prato.