terça-feira, 23 de abril de 2013

Adivinha

A cozinha de desconstrução, como sabem muitos dos leitores, define-se pela conceção de um prato como evocando relações com algum prato tradicional mas, graças às técnicas inovadoras “à Adrià”, com aspeto, textura, aroma e sabor específico, separando os sabores de forma a que o resultado final valorize por igual todos os ingredientes. Citando Anthony Bourdain, a desconstrução resulta em que “intermittent flavors of the constituent elements mingle with the remembered taste of unified chowder”.

É uma cozinha extremamente exigente em imaginação, sentido do gosto, cultura culinária (e até literária, domínio mais estabelecido da desconstrução) e técnica, tudo a nível de profissional de alta escola. Com notáveis exceções, não está ao alcance do amador, mesmo que muito dotado e experiente.

Diferente, ou aproximando-se tendencialmente, é uma desconstrução parcial, com bases de cozinha elegante e elaborada, a que, para marcar a diferença, chamo de cozinha de reconstrução. Mesmo os chefes mais adeptos da cozinha molecular e fãs de Adrià a fazem, como Avillez que não se coíbe de fazer bacalhau à Brás no Belcanto. A propósito, tendo há dias apanhado a receita e vendo um clip, resolvi fazer o bacalhau. Quase nada tem de diferente do que sempre fiz, e gabo-me de o fazer bem. Mas esse quase é essencial: a técnica. Por isso, foi o melhor bacalhau à Brás que já fiz ou já comi (ainda não provei o do Belcanto).

Esta cozinha de reconstrução atrai-me e desafia-me. Desde logo, porque me permite uma margem de alteração muito grande, tendo de manter sempre a qualidade. Ao nível mais elementar, trata-se só de alterar ao gosto pessoal um prato convencional, geralmente de cozinha tradicional. Questão só de técnica (por exemplo, entalar primeiro a carne e só depois fazer o refogado nessa gordura, retirada a carne), ou de adição ou remoção de um ingrediente (uso sempre batata doce e inhame no cozido) ou de uso de um tempero novo (por exemplo, a minha muito empregue pimenta da Jamaica). O que interessa é que no fim o gosto geral do prato não fique desvirtuado.

Outro nível é o de invenções de pratos ainda com semelhança com o original, mas com modificações mais radicais. Por exemplo, seguindo um dos princípios da desconstrução, cozinhando separadamente os ingredientes e até temperando-os diferentemente, mas tudo dentro do convencional, sem técnicas moleculares que não estejam ao meu alcance (algumas estão e uso-as). Ou tornando o prato mais moderno e leve, doseando a gordura ou mesmo substituindo o molho tradicional por um molho mais elegante. Quem leu o meu livro “O Gosto de Bem Comer” ou vai vendo as receitas que vou inventando saberá que é um exercício que faço frequentemente, mesmo na cozinha a dois, no dia-a-dia.

Finalmente, novos pratos que, à primeira vista, não evocam nada mas em que se notam depois aromas e sabores característicos de uma cozinha tradicional, no caso a que domino, a açoriana. Que puxam pela memória dos sabores, muito mais se de infância. Há dias, experimentei dois, cujas receitas vão no sítio do costume: lombo de garoupa assado, com molho de funcho, puré de feijão branco e repolho, batata doce alourada. E estufado de cachaço de porco com puré de feijão rajado e abóbora glaceada. Alguém adivinha quais os dois pratos açorianos cujos sabores estou a evocar? Vêm no meu livro, no capítulo da cozinha açoriana.