domingo, 27 de agosto de 2017

Massa sovada

Ao contrário da história gastronómica continental, muito regional, não se passa o mesmo, como muitas vezes tenho escrito, com a cozinha açoriana, melhor dito as cozinhas açorianas. Nove ilhas, com mar muito mais separador do que vales e montanhas no continente. No entanto, há pelo menos dois exemplo de muito antiga uniformidade, só com pequenas variantes de ilha para ilha: o polvo guisado em vinho tinto (hoje de cheiro) e a massa sovada, elemento gastronómico essencial – mas também durante todo o ano – das festas de Espírito Santo.
Sendo gerais, muito antigas, foram sofrendo o efeito do relógio biológico, que observamos em toda a evolução.
Comia-se massa sovada de muitas maneiras. Com o chá, ou ao pequeno-almoço ou, quando já um pouco seca, em torradas. Com manteiga, com compotas, ou sem mais nada.
Na vida urbana, não era hábito ser feita pelas famílias. Comprava-se em pastelarias, conforme o gosto de cada um. Hoje, vejo cá muitas, nas lojas açorianas, no Corte Inglês, raramente no Jumbo. A minha mulher é grande apreciadora e há uns tempos provou uma que achou ser a melhor massa sovada que já tinha provado. O que não sabia é que era experiência minha, síntese de opinião e gosto pessoal depois de muito estudo comparativo de receitas, com destaque para a que referirei depois, a do Athanázio. Não vou fazer segredo e no fim dou a receita, mas antes há alguma conversa, à “se bem me lembro” açoriano.
Na minha casa, sempre se comprou uma massa sovada e sempre se falou de outra. A que se comprava sempre, em Ponta Delgada, muito boa, era da Tabacaria Esperança, mais conhecida como o João Luís. Coisa estranha, uma tabacaria vender bolos! De facto, perdida a vocação inicial, era um dos melhores cafés e pastelarias de Ponta Delgada, com ambiente, decoração e mobiliário à velho café.
E vou divagar, voltando depois à massa sovada.
No meu fim de liceu e em férias de estudante, tinha dois cafés. Depois do almoço era o Gil, para a tertúlia política, com o António Borges Coutinho (“Praia”), Ernesto Melo Antunes, Medeiros Ferreira, Jaime Gama e outros menos regulares. À noite, guinava o azimute, e seguia a figura tutelar, amiga do fundo da alma gémea, cúmplice, alterego, a ficar até ao meu último momento, a do meu pai, a tomar café no João Luís. À volta, muitas vezes a compra de um bolo de massa sovada.
O grupo era inesquecível. O meu “tio” adotivo Abel Coutinho, o homem mais bondoso que já conheci, mas que tinha o problema de a tia Clara sofrer de “abelite aguda”. Morávamos no mesmo prédio (os meus filhos divertiam-se a ir ver à varanda detrás o tamanho descomunal das cuecas do tio Abel) e a tia Clara só saía da vigia à janela quando já éramos invisíveis no caminho para o café. Viu sair o enterro do tio Abel, meteu-se na cama e morreu pacificamente nessa noite. Como eu desejo isto, ou o inverso. Aliás, aconteceu praticamente o mesmo aos avós da minha morena. Grandes amores, só sabe quem os vive.
Lá íamos para o café, passeio ao longo da cidade. Para o café é maneira de dizer, porque o café do tio Abel, com cumplicidade de silêncio de todos nós, era um copo de tinto.
Outros eram o seu sobrinho Hugo Lacerda, o capitão Oliveira da Cunha, com sinais evidentes dos gaseamentos da sua campanha na Flandres e, marcante, o senhor Lezaola.
O velho Lezaola, velho mas seco de carnes, rijo, todo energia, ficou-me inesquecível. Basco e sempre com a sua boina basca, creio que tinha ido para S. Miguel como charuteiro. Era um antifranquista visceral e espumava, sempre em espanhol (ele que falava correntemente português), quando eu o provocava amigavelmente. “Franco e Salazar, solo muertos”. Sr. Leazola, pode haver aí podes a ouvi-lo! “Que se jodan, más Franco”. As voltas que o mundo dá: um neto mau namora hoje, e muito bem, uma bisneta do Sr. Lezaola, filha de uma minha antiga colega de liceu.
Voltando à massa sovada e passando à Terceira. A mais reputada era do Athanazio, a melhor pastelaria de Angra, ainda hoje a melhor, para meu gosto, mais pequena hoje, completamente modernizada, frente à Sé.
Acontece que Athanázio Ávila de Vasconcelos era meu tio, irmão do meu avô materno. A sua pastelaria era uma instituição, porque também era o centro da política, da intriga, da cavaqueira da alta sociedade angrense. Aquela gente era gulosa e apreciadora (mais do que a cozinha de pratos, a aristocracia terceirense fazia gala nos seus segredos familiares de doces, coisa que eu quebro em homenagem a essas antepassadas criativas), e por isso, tecnicamente, a pastelaria vivia de duas pessoas.
Uma era a minha avó Adélia, extremamente criativa principalmente em doçaria e de quem certamente publicarei um dia as suas magníficas receitas, que estão ser reconstruídas, uma a uma, por um meu irmão. Mas tinha uma queixa em relação ao outro pilar, a cunhada Leonor, boa doceira mas mais convencional, que nunca partilhava as suas receitas, ao contrário da generosidade da minha avó.
Receita famosa mas secreta da minha tia Leonor era a da massa sovada. Sempre me disse a minha avó que nem ela conhecia a receita. Surpreendentemente, vejo-a publicada no livro de cozinha tradicional de Augusto Gomes, como tendo sido dada à mãe do há uns anos bem conhecido político terceirense Álvaro Monjardino. Admito que sim, mas só se pela afilhada da minha tia e casada com o herdeiro da pastelaria, José de Lima.
E vamos à receita. Só a elaborei para a Bimby, porque o trabalhar da massa à mão, à maneira antiga, não é para os dias de hoje.
Ingredientes: 
Crescente (o termo açoriano para a massa do fermento). 25 g de fermento de padeiro, 50 -100 g de água, 100 g de farinha de milho 
Massa: 1000 g de farinha, 10 ovos, 250 g de açúcar, 200 g de manteiga, 50 g de leite, 5 cl de aguardente de vinho (não de bagaço!), 1 c. sobremesa de raspa de limão, uma pitada de canela. 
Preparação: 
— De véspera, preparar o crescente. Juntar no copo da Bimby o fermento e a água. 1 m/40º/2. Baixar e juntar a farinha de milho. 1m/-/3. Quantidades a fazer pasta grossa. Guardar abafado. 
— Para a massa. 
Juntar ao copo a manteiga e derreter, 2m/60º/1.  Depois os outros ingredientes, exceto a farinha. 15s/-/5.Juntar a farinha, aos poucos (3 vezes), em velocidade 2 constante.Juntar o crescente. Bater 10 minutos, em espiga.  Deixar arrefecer a máquina, 20-30 minutos, e repetir mais duas vezes. A massa nesta altura deve estar relativamente mole, mas moldável, e com bolhas.  
Deixar levedar umas horas, no copo, até se soltar e aumentar bem de volume. Melhor em tijela aquecida, abafada. 
Tender sobre superfície enfarinhada, polvilhando repetidamente o suficiente para fazer bolo tipo broa, como na massa sovada tradicional, não em forma. Pode-se pincelar com leite ou gema de ovo, mas não é essencial. Segundo os hábitos antigos, faz-se uma cruz com uma faca. Levar ao forno pré-aquecido a 190º, cerca de 30-40 minutos. Controlar com palito.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Terminologia culinária

Olhei para a ementa de um restaurante de peixe por onde passei. Havia três “braseados”: atum, lombo de salmão, lombo de garoupa. O que é isto de braseado? Não sou um purista da terminologia, mas, em restauração como em tanta coisa, o seu respeito é um dever para com o consumidor, para não sair enganado. Pode apanhar, por exemplo, com um stroganoff com muita cenoura ralada, ido ao forno a gratinar, com queijo ralado. Ou um bacalhau à Brás com alho francês em vez de cebola.
Neste caso, o risco era flagrante, porque a ementa também vinha em inglês, referindo “braised tuna fish”. Melhor seria dizer Tataki. Mal imaginaria o amante de braseados o que lhe viria à mesa (diga-se que até sem grande prejuízo, para meu gosto).
Atum braseado, muitos já o comemos por aí. Um naco de atum fresco que é selado na frigideira ou na chapa, eventualmente molhadas com gordura, a crestar por fora e mantendo o interior rosado, semicru, depois cortado em fatias relativamente grossas. 
Gosto muito, mas porquê braseado? Por ir às brasas, o que nem é verdade? isso chama-se grelhado e toda a gente sabe o que significa.
O termo braseado (do francês braiser, do inglês brase) é relacionado com guisado, mas tem muito menos uso entre nós. A diferença essencial é que o braseado se faz com uma peça inteira e o guisado com o ingrediente cortado em pedaços pequenos. Mas a confusão é tanta que este típico braseado de peça de vaca, na panela, primeiro selada e depois cozida na marinada, se chama na minha terra, e na Luanda de miúda da morena, carne assada!
O atum da minha infância da terra de atum era normalmente frito. Aliás, como muitos outros peixes, em posta, passados por farinha (de milho!) e fritos em óleo. No caso do atum, era (é) frito como se fosse bife de carne, como também se faz no Algarve e na Madeira, e geralmente com molho de vilão.
No entanto, fritura, por razões óbvias, não é o termo adequado ao chamado atum ou peixe braseado. O que chamar-lhe?
A técnica em causa, passando ao lado do aspeto secundário da superfície estar seca um um pouco untada com gordura, é uma forma de grelhar. O que é essencial não é que seja em grelha propriamente dita ou em churrasco de carvão. O que define é um cozinhado a seco, com calor forte, em que o ingrediente coze no seu próprio líquido interior. Diferente é a maioria dos assados, em que a peça a assar é regada frequentemente com um molho de assar. Isto é tão desconhecido da generalidade dos cozinheiros?
Assim, é equivalente grelhar no forno, no carvão, na salamandra, na frigideira ou na chapa. É sempre grelhar, podendo-se acrescentar a especificação do método: grelhado ao carvão, grelhado no forno, grelhado na chapa.
Portanto, o atum braseado é, corretamente, atum grelhado na chapa. Se quiserem ser rigorosos, escrevam atum grelhado levemente na chapa. Ou então, para se ser imaginativo sem se ser mal interpretado, que tal atum chapeado?