domingo, 28 de outubro de 2012

Cozinha e música

Tenho receitas em que só uso três ou quatro ingredientes e condimentos. Tenho outras em que combino muito mais coisas. São dois estilos de cozinha, um minimalista e de valorização de combinações muito simples de sabores, outro mais complexo, mais difícil, para mim mais desafiante para dar música sem dar ruído. O primeiro está mais na moda, o segundo é neo-clássico, a lembrar a velha cozinha francesa. O primeiro é de música de câmara, o segundo de música sinfónica. Não vejo razão para se dizer que um é melhor do que o outro.

Vem isto a propósito do meu almoço de hoje, de coisa banal, pernil de porco fumado. Com ele, posso fazer uma bela sandes (como levarei amanhã para o almoço), um prato frio simples a valorizar o sabor do pernil fumado, ou, como fiz hoje, um prato mais clássico, mais sinfónico. Vai hoje, no sítio do costume, essa receita sinfónica de pernil, cozido e depois crestado no forno, bem condimentado. Para a próxima, será um pernil ao estilo de quarteto de cordas. 

sábado, 27 de outubro de 2012

Gorduras

Hoje sai texto daqueles por que sou muito criticado, porque coisa para muitos elementar. Sai por decorrência da última entrada em que falei de refogado. Quer dizer falar na gordura do refogado. É hoje coisa essencial na culinária, por razões de saúde, muitas vezes em conflito com a gastronomia “à bruta". Lembro-me de uma vez David Lopes Ramos me ter criticado. “Como é que um açoriano com tão excelente manteiga desde criança pode usar outra coisa?”. Pois é, se não for diabético, se não tiver história familiar de AVC, se não tiver colesterol alto.

Como disse, vou ser criticado, mas sei que muitos meus leitores não são gastrónomos nem cozinheiros encartados e escrevem-me a pedirem dicas muito simples.

A minha tradição familiar e açoriana era de tudo menos azeite, a coisa hoje na moda, que só se usava no galheteiro, para o peixe cozido ou para a salada. Guisados, fritos e estufados eram em óleo de amendoim. Bifes em manteiga. Pratos tradicionais em banha.

Primeiro, o elementar. Comecemos por diferenciar hoje as gorduras de “barrar o pão” e as culinárias. São incompatíveis, porque manteigas ou margarinas magras, para barrar, não podem ir à fervura, para fritar ou refogar.  Mesmo para barrar, são enganosas. Se o dietista diz que pode ter um pequeno almoço de uma fatia de pão barrada com uma colher de chá de manteiga magra, como a coisa sabe a pouco, em vez de 5 g de manteiga normal a tendência é usar-se 10 g de manteiga magra e o resultado é o mesmo.

Há três grandes grupos de componentes alimentares: as proteínas (principalmente na carne, no peixe, nos ovos, nos laticínios, em alguns legumes), as gorduras ou lípidos, os hidratos de carbono (farinácios e amido ou açúcares, nos cereais e noutros alimentos). Têm valor calórico diferente. Cada grama de proteínas ou de hidratos de carbono vale 4 kilocalorias, cada grama de gorduras 9. 

Falemos então de gorduras. Se gorduras naturais, não transformadas, são 100% de lípidos, portanto equivalente em termos calóricos, 9 kcal por grama. A diferença, e grande, está na composição relativa de lípidos. Não pensando em coisas já mais específicas, como os ómega, há dois tipos de lípidos principais a ter em conta: poli-insaturados e saturados (deixemos de fora o que isto quer dizer quimicamente, assim como o caso menos importante dos monoinsaturados). 

Predominantemente saturadas são as gorduras animais (manteiga e banha). O valor calórico é o mesmo, são tão maléficas para alguns casos (por exemplo diabetes) como todas as outras gorduras, mas muito mais perigosas para o sistema cardiovascular (arteriosclerose, AVCs, enfartes, etc.). São as que mais contribuem para a elevação da taxa de colesterol e para o desequilíbrio perigoso entre os seus dois tipos, HDL e LDL (quanto mais o segundo, pior).

No oposto, as gorduras vegetais, óleo e azeite, predominantemente ou quase exclusivamente compostos de poli-insaturados. O azeite está na moda, mas de facto não há grande coisa a diferenciá-lo de todos os outros óleos vegetais. É questão de gosto.

Assim como é questão de gosto, por exemplo no meu caso, não gostar de cozinhar com azeite muitos pratos, designadamente de carne ou, como ainda hoje, um simples ovo estrelado. Se não quiser usar manteiga (que também tem outros riscos, como o de gerar na fervura acroleína, potencialmente cancerígena) o que me resta? Margarina tradicional é quase tão má. Manteiga magra? Margarina de barrar? Margarina dietética de cozinha?

Produtos magros têm em comum a adição de água, de amido, de emulsionantes, até gelatina, com redução para cerca de metade do teor de gordura. Muito bem para comer a fresco mas inadequados para fervura e cozinhados. Mesmo tecnicamente: deslaçam em água e “pé” como acontece com a maionese, porque se desfaz a ação do emulsionante.

Diferente é a margarina dietética para cozinha. Não me repugna fazer publicidade gratuita da que uso, Becel. É praticamente só de lípidos, mas modificando a relação, de forma a ter predomínio de poli-insaturados, como as gorduras vegetais, reduzindo as saturadas a 15%, com 32% de poli-insaturados. As margarinas tradicionais têm mais saturados, cerca de 25%, contra 18% de poli-insaturados, porque afinal, para ganharem consistência, são feitas de óleos líquidos tornados sólidos e saturados por hidrogenação.

Recentemente, apareceu no mercado um novo produto, ainda de melhor qualidade dietética e, para mim, mais saboroso. É um óleo cremoso, em frasco, com 70% de gordura, dos quais apenas 7% de saturados e 36% de poli-insaturados. Não vou muito com ele para salteados de peixe ou legumes ou para fritos, mas estou a usar muito com carnes. Questão de gosto, de sabor, não de dietética.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Cozinha tradicional

Já aqui escrevi várias vezes sobre cozinha tradicional e o respeito que ela merece. Dessas notas devem ter ficado com a ideia de que considero haver uma boa margem de variação. Não sou fundamentalista e estou convencido de que a cozinha tradicional, como tudo na vida e na cultura, foi evoluindo por correção de erros e introdução de aperfeiçoamentos. 

Não se alterou com a introdução de novos produtos no fumeiro e na horta? Não se alterou pela mudança da trempe à lareira para o fogão? Não se alterou por informação dietética? Não se alterou por aculturações, como, por exemplo, o uso generalizado de piripiri depois de milhares de soldados o terem apreciado na guerra colonial?

Todavia, a balizar a outra margem da variação, exijo respeito pela matriz fundamental dos sabores ancestrais, do equilíbrio gastronómico que levou séculos a fazer-se. Recordando Manuel Pedrosa, “aka” Sttau Monteiro, jaquinzinhos com natas nunca serão cozinha tradicional portuguesa. E muitos mais exemplos da oferta restaurativa banal e pervertida que damos aos nossos visitantes.

Lembre-se também que, do mesmo prato, há variantes regionais significativas. Como exemplo, a dobrada. Com enchidos, galinha, feijão branco no Porto, mais arroz. Sem galinha, no sul. Com batata em vez de feijão nos Açores.

Falando de dobrada, aqui vai um exemplo pessoal da tal margem legítima de variação. Dirão que esta entrada é de baixo nível, mas olhem que não. Não vou dar receita simples, apenas ilustrar com a minha maneira de a fazer aquilo que entendo ser a diferença entre fundamentalismo e rigor sensato.

Coisa por que me alambazo, foi nosso almoço domingo. A dobrada é cozida em água com uma folha de louro, dentes de alho inteiros só um pouco esmagados e uma cebola picada com cravinho. Entretanto, o feijão posto a cozer não foi branco, mas manteiga. Na tradição açoriana (exceto nas sopas) e na angolana – as duas influências de infância cá em casa – feijão rajado (catarino) ou pelo menos manteiga. Refogado em banha (agora substituída por gordura dietética de cozinha) de cebola e alho. A dobrada muito bem volteada no refogado, com linguiça micaelense (cá chouriço um pouco picante) e bacon, em cubos. Depois polpa de tomate e mais umas voltas, meio minuto. Cobrir com o caldo coado, juntar sal, pimenta preta e pimenta da Jamaica, cominhos, um pouco de massa de malagueta e cozer mais 15 minutos. Mais o feijão e o “pé” da sua cozedura. Salsa picada e mais cozedura a lume baixo, até apurar o molho. “C’est tout!”

Não é nenhuma receita universal, é a minha receita pessoal. Não a imponho a ninguém, mas creio que cumpre o essencial: variação pessoal e com influências bem definidas de um cânone tradicional

Mas também posso fazer coisa muito diferente, nunca lhe chamando de cozinha tradicional. Por exemplo, depois do guisado e antes do feijão, cortar a dobrada em pedaços pequenos, juntar só alguns feijões, pedacinhos de bacon salteado e cubos muito pequenos de pimentão vermelho assado ou salteado, rechear uma forma de massa quebrada, polvilhar com tosta ralada e levar ao forno. Servir com puré de feijão manteiga e com verdes a enfeitar, molhando o prato com um aveludado feito com o caldo e com q. b. de moído do molho do guisado. 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Adivinha

Hoje ao jantar comi um bom coração de negro. Alguém sabe o que é?

Resposta (7.10.2012) - nome que se dá nos Açores à anona.