Já aqui escrevi várias vezes sobre cozinha tradicional e o respeito que ela merece. Dessas notas devem ter ficado com a ideia de que considero haver uma boa margem de variação. Não sou fundamentalista e estou convencido de que a cozinha tradicional, como tudo na vida e na cultura, foi evoluindo por correção de erros e introdução de aperfeiçoamentos.
Não se alterou com a introdução de novos produtos no fumeiro e na horta? Não se alterou pela mudança da trempe à lareira para o fogão? Não se alterou por informação dietética? Não se alterou por aculturações, como, por exemplo, o uso generalizado de piripiri depois de milhares de soldados o terem apreciado na guerra colonial?
Todavia, a balizar a outra margem da variação, exijo respeito pela matriz fundamental dos sabores ancestrais, do equilíbrio gastronómico que levou séculos a fazer-se. Recordando Manuel Pedrosa, “aka” Sttau Monteiro, jaquinzinhos com natas nunca serão cozinha tradicional portuguesa. E muitos mais exemplos da oferta restaurativa banal e pervertida que damos aos nossos visitantes.
Lembre-se também que, do mesmo prato, há variantes regionais significativas. Como exemplo, a dobrada. Com enchidos, galinha, feijão branco no Porto, mais arroz. Sem galinha, no sul. Com batata em vez de feijão nos Açores.
Falando de dobrada, aqui vai um exemplo pessoal da tal margem legítima de variação. Dirão que esta entrada é de baixo nível, mas olhem que não. Não vou dar receita simples, apenas ilustrar com a minha maneira de a fazer aquilo que entendo ser a diferença entre fundamentalismo e rigor sensato.
Coisa por que me alambazo, foi nosso almoço domingo. A dobrada é cozida em água com uma folha de louro, dentes de alho inteiros só um pouco esmagados e uma cebola picada com cravinho. Entretanto, o feijão posto a cozer não foi branco, mas manteiga. Na tradição açoriana (exceto nas sopas) e na angolana – as duas influências de infância cá em casa – feijão rajado (catarino) ou pelo menos manteiga. Refogado em banha (agora substituída por gordura dietética de cozinha) de cebola e alho. A dobrada muito bem volteada no refogado, com linguiça micaelense (cá chouriço um pouco picante) e bacon, em cubos. Depois polpa de tomate e mais umas voltas, meio minuto. Cobrir com o caldo coado, juntar sal, pimenta preta e pimenta da Jamaica, cominhos, um pouco de massa de malagueta e cozer mais 15 minutos. Mais o feijão e o “pé” da sua cozedura. Salsa picada e mais cozedura a lume baixo, até apurar o molho. “C’est tout!”
Não é nenhuma receita universal, é a minha receita pessoal. Não a imponho a ninguém, mas creio que cumpre o essencial: variação pessoal e com influências bem definidas de um cânone tradicional.
Mas também posso fazer coisa muito diferente, nunca lhe chamando de cozinha tradicional. Por exemplo, depois do guisado e antes do feijão, cortar a dobrada em pedaços pequenos, juntar só alguns feijões, pedacinhos de bacon salteado e cubos muito pequenos de pimentão vermelho assado ou salteado, rechear uma forma de massa quebrada, polvilhar com tosta ralada e levar ao forno. Servir com puré de feijão manteiga e com verdes a enfeitar, molhando o prato com um aveludado feito com o caldo e com q. b. de moído do molho do guisado.
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