Alguns dos meus leitores já terão encontrado em ementas de bons restaurantes pratos com “dois serviços”. Trata-se de cozinhar de forma diferente duas partes da mesma peça – por exemplo, uma ave – em geral servindo-as em sequência, depois de se começar por a mostrar inteira. Daí a expressão “dois serviços”. O termo evoca também outro significado de serviço, que não o de baixela, como o de organização e sequência dos pratos, como os bem conhecidos serviço à francesa (uma enormidade) e à russa.
Para alguns, estes pratos em dois serviços podem parecer coisa moderna e de moda mas, de facto, há casos bem tradicionais. Lembremo-nos do pato à Pequim, tal como emblematicamente servido no Mandarim. É exibido inteiro no esplendor do seu lacado, sendo depois servida a pele, em tiras finas, enquanto o pato regressa à cozinha para acabar de assar e ser servida a carne a seguir.
Um outro prato do mesmo tipo de que gosto muito, já com bons aninhos, é o peixe cozido em vapor do Ribamar, em Sesimbra. O fundo da peixeira tem legumes e ervas e recolhe o caldo de cozedura do peixe, a vapor. A peixeira vem à mesa e o criado (não há nada de pejorativo nesta designação tradicional) arranja e serve o peixe, com um pouco de molho que agora não recordo. O caldo volta para a cozinha, para ser servido a seguir como uma sopa com pão.
Um exemplo bem conhecido de prato em dois serviços – neste caso simultâneos – é a galinha assada do NoMad, em Nova Iorque, concebida e executada por Daniel Humm. A galinha, pequena, é recheada entre a pele e o peito (a galinha recheada dos Açores!) com uma mistura riquíssima de “foie gras”, trufas e brioche. No interior, só limão e alecrim. Forno, e aqui, segundo a minha experiência, está boa parte do resultado. Digo minha experiência porque, com grande sucesso convivial, faço-a às vezes, em versão pessoal obviamente embaratecida, em tempos de crise.
Apresentada a galinha, como boa decoração (até com as unhas pintadas!), volta à cozinha. Separam-se os peitos, que já devem estar bem assados e rosados pela gordura do recheio e as coxas, ainda mal assadas, que acabam de cozer em fricassé com morilhas. Ambas as coisas são servidas em paralelo. Vincent Farges faz no Hotel Fortaleza do Guincho um prato do mesmo género, de codornizes, mas em que os peitos são revestidos com “pralin” de frutos secos.
Também ainda não provei, no Belcanto (quando é que lá voltarei?) o lavagante em dois serviços de Avillez, um prato já com dois anos. Não sei como é, mas ficaria satisfeito se amigos apreciassem uma versão de amador, em que primeiro se serviria a carne das pinças, descascada e fria, em salada muito simples com pontas de espargos e tomate assado (não é tomate seco), com uma espuma de champanhe e nata, com um toque de gengibre. A seguir, a carne da cauda estufada numa variante de molho Thermidor modernizado e incluindo uma redução de moído do tórax, contrastando com arroz negro cozido simples (a variedade naturalmente negra, Venere, “riso nero”, não o arroz de tinta de choco).
Há ainda outros casos de dois em um, no mesmo prato, ou mesmo três e quatro em um, como a mistura contrastada de molhos coloridos que, como pintura expressionista abstrata, Avillez criou no seu prato justamente chamado raia à Jackson Pollard. O uso de mais do que um molho contrastante já começa a ser vulgar nas sobremesas, mas também já se vê nos pratos principais.
O oposto, também inovador, é “um em dois” ou “um em três”. Trata-se principalmente de guarnições, aquilo que popularmente se designa como acompanhamentos. É verdade que é um conceito hoje duvidoso na cozinha moderna, se considerarmos que, para muitos, num prato não há um elemento principal e outros secundários, a acompanhá-lo e ao seu serviço.
A própria composição visual do prato tende a realçar a sua integração ou, pelo contrário, a distinção mais ou menos clássica dos “naipes”, como há pouco tempo vi num restaurante estrangeiro superestrelado: um lombo de halibute claramente separado, em empratamento tradicional, de uma grossa fatia de funcho glaceado. E, por falar em música, numa sinfonia todos os músicos se combinam, mas não num concerto para instrumento e orquestra.
A própria composição visual do prato tende a realçar a sua integração ou, pelo contrário, a distinção mais ou menos clássica dos “naipes”, como há pouco tempo vi num restaurante estrangeiro superestrelado: um lombo de halibute claramente separado, em empratamento tradicional, de uma grossa fatia de funcho glaceado. E, por falar em música, numa sinfonia todos os músicos se combinam, mas não num concerto para instrumento e orquestra.
Deixo um exemplo de “um em três”, inovador, numa receita de Raymond Blanc, a mesma coisa mas cozinhada de três maneiras. Vieiras coradas, acompanhadas só com couve-flor de três formas ao mesmo tempo: em puré simples, depois de cozidas em leite; fritas embrulhadas em polme bem temperado com especiarias, como “bhajis”; e cortadas em fatias e caramelizadas. Como se vê, o essencial aqui é o contraste, mas dificultado por ele não poder vir do uso de componentes diferentes. É só um, mas tendo de se conseguir aquilo que é sempre a fórmula desejável do contraste equilibrado: sabor, aroma, cor, temperatura, textura.
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