Já discuti várias vezes neste blogue a legitimidade de alterações a receitas que são parte do património cultural (gastronomia também é cultura) de um povo ou de uma região. Não considerando que a questão deva ser posta em termos absolutos, de total respeito ou de total liberdade, fica mais difícil estabelecer uma linha de bom-senso e mesmo de adequação a condições práticas e técnicas. Não se pode manter obrigatoriamente nos dias de hoje coisas antigas limitadas – ou mesmo prejudicadas – por falta de ingredientes, por dificuldades de conservação, por má técnica de fabrico e ausência de análise de qualidade. Manter hoje coisas negativas, quando algumas inovações só melhoram o sabor daquilo que se quer respeitar, e desde que não se altere o essencial desse sabor, é a maior homenagem que se pode fazer ao património culinário tradicional. Por exemplo, só com mudança de técnica, o bacalhau à Brás de José Avillez é excelente e em nada ofende o prato habitual, muito pelo contrário.
Da mesma forma, pode ser difícil estabelecer critérios para avaliar da legitimidade de variações a um cânone. Em primeiro lugar, muitas vezes ele nem existe, permitindo-se variações de acordo com gostos particulares. Por exemplo, pouco pode haver de mais consensual do que o cozido (descontadas algumas variações regionais) mas o que eu faço é temperado com um pouco de pimenta preta e da Jamaica, dispensa coisa de que não gosto, a farinheira e inclui obrigatoriamente batata doce ou até inhame, a recordar-me da minha ilha. Deixa por isto de ser um cozido à portuguesa? Posso acrescentar é “à minha maneira”.
Novamente, como disse acima, acho que o essencial é saber manter as características essenciais de um prato, se se invocar uma designação tradicional. Não me parece acertado fazer uma caldeirada à fragateiro que leve óleo de palma e leite de coco ou migas alentejanas com pão de especiarias e estragão.
Vem isto a propósito de transgressões muito frequentes, de brasileiros, principalmente em relação a receitas de cozinhas estrangeiras. Também da sua cozinha, como vi num jantar recente, com bobó de camarão. Estava óptimo, mas pareceu-me estranho, em relação ao que faço, e vim verificar em casa. Normalmente, em relação à cozinha baiana, sigo o que me dIzem ser um excelente livro, o editado pela escola de hotelaria do SENAC (o instituto brasileiro de formação profissional) e que comprei no seu restaurante do Largo do Pelourinho.
Mas já me aconteceu, como neste caso, consultar uma amiga baiana e grande cozinheira que, mantendo essa norma, acaba sempre por me dizer que conhece boas cozinheiras que também fazem variantes. É assim a cozinha regional.
Já aqui uma vez discuti um exemplo de diversidade que tem a ver com factores históricos e económicos: a alcatra terceirense. No essencial é um assado de carne, em forno quente, demorado, num típico alguidar de barro não vidrado. A carne, em pedaços grandes, alterna com uma gordura, cebola cortada em rodelas, toucinho fumado, um osso com tutano, alho, louro, vinho, sal, pimenta preta e pimenta da Jamaica. No entanto, só com isto, comem-se muitas alcatras diferentes, para já não falar de variantes mais radicais, como alcatra de peixe e alcatra de coelho.
Augusto Gomes, um infatigável colector de receitas açorianas, publicou nada menos do que dez variantes de alcatra de vaca. Como fonte dessa variedade, principalmente três diferenças – classe de carne, gordura, vinho. Isto, como disse, por razões principalmente económicas, o que faz haver uma alcatra popular e uma alcatra burguesa. Esta, a que sempre comi e continuo a fazer, é de grande qualidade culinária. A carne é de folha de alcatra, mais um pouco de cachaço ou de aba grossa para gelatinar um pouco o molho. Já nas alcatras populares ou nas que se comem em festas do Espírito Santo ou em restaurantes típicos, a carne é habitualmente de qualidade inferior, predominando o chambão.
A mesma distinção quanto à gordura. Nos Açores, predominam na cozinha tradicional as gorduras animais, manteiga e banha. Para fritos imersos, o óleo mas nunca o azeite, só usado para temperar saladas. Novamente, o critério económico e o uso enraizado fazem distinguir as alcatras, a burguesa só com manteiga, a popular com banha. Como imaginam, a diferença é de tal ordem que não consigo comer a alcatra com banha, rústica, pesada e enjoativa. Lá vai que alguns restaurantes vão começando a usar mistura de ambas as gorduras.
Diferença também radical é a do vinho. O vinho tradicional dos Açores é o branco de casta verdelho (como na Madeira), de origem obscura mas presente nas ilhas desde tempos antigos do povoamento. No século XIX, foi quase extinta por uma epidemia de filoxera, mantendo-se apenas, com baixa produção e alto preço, no Pico, na Graciosa e na zona terceirense dos Biscoitos. No resto das ilhas, foi tristemente substituído pelo “vinho de cheiro” (cá chamado morangueiro), de uva americana ou Isabel, um vinho mais do que ordinário. As casas burguesas ou fidalgotas continuaram a fazer a alcatra com vinho dos Biscoitos ou, quando não o conseguiam, com vinho branco, forçosamente importado. O povo passou a usar vinho de cheiro, tinto. Outra diferença, do dia para a noite.
No entanto, vou eu dizer que a minha alcatra é que é a genuína, comparada com uma alcatra popular que evoluiu que pelas piores razões ou que usa ingredientes que lhe roubam qualidade, mas que é aquela que praticamente toda a gente faz? Seria pretender que a música popular portuguesa tivesse de ser toda composta por Lopes Graça.
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