Entre tantas coisas que me perdem, não há forma de concluir o meu segundo livro de gastronomia/culinária, agora vincadamente açoriana, conjugando a minha experiência culinária com muitos anos de pesquisa e recolha da gastronomia açoriana. É só juntar uma coisa à outra e fazer uma síntese de cozinha açoriana elaborada. Está prometido, será para o Natal. Creio que já aqui disse qual é a ideia.
“Este livro tem a ambição de representar uma “cozinha elaborada”. O que é isto? Talvez coisa a fugir a “cozinha de autor”, que cheira a chefe profissional, com diploma de escola, o que não é o meu caso. “Nova cozinha”? Não se trata disto, no sentido em que se fala de “nouvelle cuisine”, que já passou e de que não gostei por aí além. Esta “cozinha elaborada” é uma cozinha de e para amadores de bom gosto e com boa técnica, a tornar elegante e dieteticamente correto o excelente manancial de sabores, ingredientes, técnicas de confecção da cozinha das ilhas açorianas (melhor, das cozinhas, diferentes de ilha para ilha). Para amadores, mas também com sugestões aproveitáveis por restaurantes açorianos que, para proveito do turismo e também do dia a dia dos locais, se desejam de cada vez melhor nível.Gosto de lhe chamar cozinha de reconstrução, o que não se opõe inteiramente a outra que gosto de criar e comer, a de desconstrução.O desafio foi pensar num restaurante internacional, de cozinha de qualidade, mas com todos os bons sabores da cozinha açoriana tradicional, em confecções mais leves, adequadas ao estilo de hoje. Já há nas ilhas uns poucos restaurantes de boa qualidade, com ementas imaginativas e bem concebidas como evocação de sabores tradicionais. Não vão aprender comigo. Mas faltam outros e estou a pensar em todos esses que faltam. Ao mesmo tempo, receitas com boa técnica e imaginativas, acessíveis a cozinheiros competentes mas não estrelados e sem formação de muito alto nível. Outra coisa seria pretensão ridícula do autor, ele também não profissional, muito menos de alta escola. (…) E em casa? Claro que, na maioria dos casos, as receitas que proponho não são para o dia a dia, mas acho que poderão ir muito bem à mesa de um jantar de festa ou de experiência de deslumbrar (desafiar) amigos. Também, com um pouco de imaginação, a possibilidade de as adaptar a confecções mais simples mas com um toque de qualidade. Em alguns casos sugerirei a simplificação da receita para maior adequação à técnica, hábitos e até utensílios dos não experimentados.”
Afinal, esses casos serão muitos. O mesmo prato em duas versões, a de restaurantes de nível e a caseira, para cozinheiros amadores com bom gosto.
O desafio é muito interessante porque a regra imposta de só usar ingredientes açorianos é muito ambígua, quando hoje, em todas as grandes superfícies nos Açores se vê o mesmo do que cá. Vou usar vários critérios: o que eu vejo as pessoas comprarem lá, preferencialmente e pelo seu gosto ancestral; o que era a base das nossas despensas, quando eu era miúdo; e, principalmente, a evocação da memória dos sabores.
O meu almoço de hoje foi um bom exemplo: magret de pato com especiarias açorianas, legumes com toque exótico e arroz branco. O pato não é muito usual na cozinha tradicional açoriana, mas muita gente o encontra nos supermercados e se pergunta como o fazer. É como um grande e querido próximo meu que de vez em quando me escreve, “encontrei esta coisa nova, como sugeres que a faça?”. No meu tempo, creio que nunca lá vi à venda pato, no mercado. Lembro-me de o meu avô os ter na capoeira, mas não deviam ser coisa vulgar. Mas que mal tem? Hoje deve haver e quem está farto de frango que coma pato, não deixa de ser meu patrício ilhéu (não obrigatoriamente ilhéu tosco, como parece que eu sou…)
As especiarias são aqui uma variação dos clássicos “todos os temperos” de S. Miguel mas, depois de vários ensaios, pareceu-me que esta variação era a melhor para o pato (afinar uma receita dá muito trabalho!). Só elas já bastam para justificar a invocação açoriana do prato, bem como os legumes com Chico Maria. Usei alface, como coisa suave e delicada, mas também podia ter usado endívias. Mais açoriano ainda seria o excelente agrião da terra, mas teria de controlar bem o sabor amargo deste vegetal.
Aqui vai a receita.
Magret de pato com especiarias açorianas e legumes com tom exótico
Pato: 4 peitos, 1 c. sopa de mistura de especiarias (erva doce, canela, cominhos, cravinho, pimenta preta), sal.
Vegetais: azeite, 4 dentes de alho, grandes, pelados, cortados ao meio e retirados os gérmens, 1/2 alface, 1 cebola, 400 g de cogumelos Portobello ou pleurotos, 2 c. de sopa de molho de soja japonês, 1/2 copo de Biscoitos Chico Maria meio seco, 1 c. chá de massa de malagueta, 1 c. sobremesa de gengibre fresco ralado, 1 raminho de cebolo. 1 chávena de arroz agulha ou basmati.
Fazer cortes cruzados na pele dos peitos, com a ponta de uma faca afiada. Temperar de ambos os lados com bastante porção de sal e especiarias, esfregando bem. Aquecer uma frigideira siliconada, sem gordura, até estar bem quente mas a lume baixo. Fritar os peitos em 3 ciclos sucessivos, 3 minutos com a pele para baixo e 1 minuto com a carne para baixo. Remover e deixar descansar durante 5 minutos, até deixar de destilar suco.
Deitar 2-3 c. sopa de azeite numa frigideira alta e alourar bem primeiro a cebola em rodelas finas, depois as folhas de alface (nos Açores, eu tentaria o agrião da terra) e no fim os cogumelos em pedaços grandes. Regar com o vinho e deixar cozer, acrescentando um pouco de água se necessário. No fim, flor de sal quanto baste. Entretanto, preparar uma mistura dos alhos branqueados em leite e picados, do molho de soja, do gengibre ralado e da malagueta. Antes de ir para a mesa, juntar aos legumes, sem ferver.
Acompanhar também com arroz branco.
Sem comentários:
Enviar um comentário