Uma coisa é cozinha de festas outra coisa é cozinha na festa. A primeira, Natal, Páscoa, Carnaval nos Açores, é uso com tradução caseira, em nada irmanado com os valores e símbolos da festa. Diferente, e só conheço uma, é a cozinha do Espírito Santo nos Açores, que faz parte da própria festa, celebrada há duas semanas. Lembremo-nos, aliás, de que os aspetos profanos das festas, a cargo do mordomo (fabrico do pão, arranjo dos novilhos, distribuição das pensões de carne, vinho e massa sovada, foliões e cantorias, etc.), numa festa de fraternidade que vem das raízes franciscanas do acompanhamento do povoamento, sobrelevam os ritualmente religiosos, a cargo do imperador (repartição da coroa e bandeira pelos irmãos, terço final, coroação).
Já escrevi sobre isto.
Gastronomicamente, o melhor exemplo é o da Terceira, com a função: sopa de carne, cozido, alcatra. E é sobre a alcatra que vou dizer alguma coisa, protestando contra o que me dizem que foi perorado por alguém de um “restaurante especialista em alcatra”. parece que da Terceira. Não se confunda. À falta do restaurante da R. Álvaro de Sousa, o Espaço Açores, embora de cozinheira picarota, não desmerece.
A alcatra é só esmero de qualidade e técnica, a começar pelo alguidar alto não vidrado, sem tampa. Essencial! Também a lenta assadura a forno alto, mexendo-se a carne de vez em quando.
Vou ao que disse o tal especialista, para mostrar como vai mal a sabedoria gastronómica.
“É um prato que se chama alcatra e que não leva alcatra”. Erro. Durante muito tempo, o prato fez-se principalmente com a peça de vaca da parte superior da anca que resulta, muito caracteristicamente, em desfazer-se em fibras quando os pedaços são cortados ao comprimento. Chamava-se alcatra, como ainda hoje se chama cá (folha de alcatra) mas entretanto, não sei porquê, passou a chamar-se na Terceira rabadilha (era assim no meu tempo de miúdo). Hoje voltou ao nome de alcatra e quem a quiser fazer bem feita é esta a carne a usar. Na minha casa, para gelatina um pouco o molho, era hábito acrescentar um pouco de cachaço.
“A alcatra deve levar três carnes, para misturar sabores”. Tolice. As carnes de vaca diferem em textura, em suculência, mas não em sabor. De facto, a alcatra que se come hoje na Terceira, em restaurantes e em festas, varia em carnes, descendo até à alcatra pobre de chambão, mas isto tem a ver com a maior ou menor riqueza. Os novilhos são abatidos e arranjados, em mistura de carnes. As carnes de 3ª vão para o cozido, as outras para a alcatra. Esta diversidade é coisa prática, de aproveitamento total da carne, e não tem a ver com esquisitice sabores.
“A origem da alcatra é a chanfana beirã, origem do povoamento”. Coisa que está longe de certa, porque tudo indica que o povoamento veio de todo o país por onde o infante e a seguir o infante sobrinho tinham criados. Chanfana é prato de cabra, cuja produção é minúscula nos Açores e sempre foi. Chanfana é assado com vinho tinto, quando a tradição açoriana da alcatra é de vinho vermelho branco. Chanfana faz-se em assadeira baixa vidrada, diferente da alcatra.
Era bom que os sapateiros não subissem acima da chinela. Mas todo o português sabe coisas.
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