Como sabe qualquer frequentador de restaurantes que se prezem – não falo de restaurantes de bairro ou de tascas – o vinho, depois de aberto, é dado a (a)provar a quem o encomendou, em geral o convidante (ou o homem numa refeição de casal) ou um convidado a quem ele pediu para se encarregar da escolha do vinho.
O que se pretende é que, antes de o vinho ser servido a todos os comensais, se verifique se ele está em boas condições. Só isso e nada mais! Mesmo um bom vinho, por mau engarrafamento, por má conservação, por má rolha, etc., pode estar passado, ácido, oxidado, com rolha, turvo ou com depósitos. Pode também não estar a boa temperatura, embora isto já dependa um pouco mais do gosto do cliente. Um simples exame visual e a prova de um pequeno gole de vinho, eventualmente com momento rápido de avaliação do aroma, dizem-nos logo, em geral, se o vinho está ou não em condições.
No entanto, quantas vezes se assiste ao espectáculo caricato de a abertura de uma garrafa dar origem a toda uma encenação de prova enológica. Pessoas muito entendidas, mas com cuidados não se vá sujar o Armani, agitam longamente o copo, para a esquerda e para a direita, levantam-no à altura dos olhos e voltam a mirar. Inclinam-no para ver se escorre “glicerina”. Enfiam o nariz e dão uma grande fungadela. Depois a prova, com estalos de língua e revirar da bochecha, a antecipar o “fim de boca”. Entretanto, o escanção à espera, com a garrafa na mão. Finalmente, ridículo dos ridículos, longa conversa com o escanção, a discutir toda a análise ultracompetente que fizeram do vinho.
Imagine-se que o cliente, depois de tão aprofundada análise, concluisse que o vinho não era de seu gosto, mesmo que em perfeitas condições. Teria o direito de o devolver, como teria se o vinho estivesse estragado? Por isto, o espectáculo dos nossos “especialistas” não faz sentido, pois não corresponde, com a elegância da simplicidade, ao que estritamente se pretende: garantir o estado do vinho. O resto, a sua apreciação, a conversa sobre ele, o acompanhamento da sua aprendizagem de maturidade ou das suas travessuras ao longo da refeição, é matéria de boa piapação de amigos.
Tudo isto é mais um exemplo do insuportável novo-riquismo que por aí anda, e que até parece crescer em proporção directa com a crise. Será isto essencialmente português? Por exemplo, será que podemos assistir a tal espectáculo por parte de um francês educado? Para tranquilização das feridas no meu amor pátrio infligidas pelos jotinhas e betinhos locais, tive há dias a comprovação de que uma boca francesa já não é o que era.
Estávamos no bar-esplanada muito agradável (recomendo) de um bom hotel à beira-Tejo e instalou-se ao lado um casal francês. Encomendada uma garrafa de tinto, não é que assisto, da primeira à última cena, ao tal espectáculo? Pior foi que a conversa com o empregado nem foi de exibição provinciana, de competência enófila de frequentador do equivalente dos pedrosianos (segundo a Guidinha, lembram-se?) restaurantes de jaquinzinhos com natas.
O francês que faria envergonhar qualquer mestre francês nas artes de bem comer e beber (mesmo em tascas) protestou foi que o vinho não estava em condições ideais e pediu gelo. Depois deve-se ter arrependido e decidido aquecer a garrafa, porque de todas as vezes que enchia o copo segurava a garrafa em cima, junto ao gargalo, em vez de segurar por baixo, com os dedos à volta do fundo, como sabe qualquer bom amador. Mesmo assim, provavelmente achava que ainda não estava bem quente, porque segurava o copo pelo bojo, em vez de pelo pé.
Julguei que o espectáculo ficava por aí, mas o belo fim de tarde prometia mais. Noutra mesa, uma turista, palpitou-me que americana snob, com aquele ar característico de pateta convencida que pode ter uma intelectual americana de universidade de segunda e especialista em mistura de eurofilia tonta (à protagonista de Woody Allen) e de politicamente correcto.
Fez exactamente o mesmo, mas com dois acrescentos de morrer de rir. Primeiro, é que não ficou satisfeita com a primeira prova e pediu ao empregado para lhe servir mais vinho a provar. Isto repetido quatro vezes! Garanto que não estou a inventar. O outro acrescento vai deixar os leitores entre o riso e o choro: o vinho era um moscatel de Setúbal, generoso. Só faltou aquela cena toda com um bom Porto vintage!
Fez exactamente o mesmo, mas com dois acrescentos de morrer de rir. Primeiro, é que não ficou satisfeita com a primeira prova e pediu ao empregado para lhe servir mais vinho a provar. Isto repetido quatro vezes! Garanto que não estou a inventar. O outro acrescento vai deixar os leitores entre o riso e o choro: o vinho era um moscatel de Setúbal, generoso. Só faltou aquela cena toda com um bom Porto vintage!
À margem: não vejo hoje o escanção começar por provar ele próprio o vinho, andes de o sujeitar à aprovação do cliente, como ensinava a escola francesa. Há bastantes anos, era o uso corrente de um restaurante que nem era de luxo, mas que tinha, para mim e muita gente, o melhor serviço de vinho, a Isaura (a começar pela carta de vinhos, um tratado). O escanção, o célebre Sr. Costa, aconselhava o vinho de acordo com a escolha dos pratos, trazia-o no cesto próprio, abria-o como deve ser, observava-o à transparência, contra uma vela e decantava-o se necessário. Apesar de já não ir lá há bem trinta anos, lembro-me de que provava ele próprio o vinho antes de perguntar se o cliente o queria também fazer. O mesmo se passou comigo num restaurante três estrelas inglês onde jantei há pouco tempo (a convite…). Era eu que tinha escolhido o vinho e, respondendo ao escanção após ele ter provado, declinei a proposta, como sinal de reconhecimento da sua capacidade de garantir o estado do vinho.
À margem, 2: Sobre garantia de estado do vinho, lembro-me de um episódio que me mereceu crítica. Como se sabe, o hotel do Buçaco tem uma excelente garrafeira, incluindo brancos antigos, que envelhecem como se fossem tintos. Uma das preciosidades, dos vinhos mais velhos do hotel, é mesmo um branco, de 1944. É caríssimo, só mesmo para ocasiões excepcionais. Há anos (os tempos não eram tão maus como agora), três amigos nascidos em 1944, eu incluído, resolveram festejar o aniversário no Buçaco, bebendo um vinho da nossa idade. Fiquei surpreendido por o hotel ter informado que não garantia o estado do vinho e que nós é que éramos responsáveis pela sua prova pré-consumo, mas pagando o preço da garrafa se não estivesse boa. Considerei isto inadmissível. Mesmo admitindo que isso se reflectisse no preço de venda de cada garrafa, é o hotel que é responsável por experimentar periodicamente o vinho e retirá-lo da lista se começar a haver um número significativo de garrafas estragadas.
P. S. (25.8) – Esqueci-me de dizer que, no primeiro caso, o vinho era tinto, de marca que não consegui ver. Também que depois o beberam com suchis, escolha que não seria a minha, mas que é questão de gosto (embora também de técnica – tinto com coisa suave como suchi duvido de que fique bem).
P. S. (25.8) – Esqueci-me de dizer que, no primeiro caso, o vinho era tinto, de marca que não consegui ver. Também que depois o beberam com suchis, escolha que não seria a minha, mas que é questão de gosto (embora também de técnica – tinto com coisa suave como suchi duvido de que fique bem).
Fantástico. Eu tornei um pouco irreverente em relação à prova do vinho. O restaurante é que deve ser responsável por verificar a qualidade do vinho. Eu só provo quando quero saber algo sobre um vinho novo, e que desconheço, e no sentido de saber se gosto ou não. Não vou iniciar uma refeição ficando com a boca a saber a um vinho estragado, correndo para o lavatório eliminar os restos que terão ficado na boca. Toda a refeição, a seguir, será uma má experiência. Os profissionais, e que há cada vez menos, é que deverão garantir que os vinhos que nos servem correspondem ao rótulo. Quanto ao novo-riquismo, a esse teatro de exibição, serve-me por vezes para um começo de conversa sobre o assunto e, normalmente, são atribuídos tratamentos de ridículo.
ResponderEliminarUm abraço
Pois, é verdade que há por aí muito exibicionismo bacoco (geralmente na proporção inversa aos conhecimentos na matéria) mas também não deixa de ser gritante que a falta de profissionais qualificados na esmagadora maioria dos nossos restaurantes levam que o consumidor avisado se tenha que rodear de alguns cuidados antes de gastar muitos euros na compra de uma garrafa de vinho. Já nem falo tanto do "gosto a rolha", a contaminação pelo composto tricloroanisol (TCA) que é facilmente identificável e prontamente resolvido sem prejuízo para o restaurante (não conheço nenhum produtor de vinhos que não aceite a devolução e troca das garrafas contaminadas!). No meu caso, tem sido muito mais vulgar o pedido para não servir o vinho até voltar a uma temperatura mais apropriada. Manias de gente picuinha? Será! Mas se me pedem 20 ou 30 € por uma garrafa, considero que tenho todo o direito de poder disfrutar o vinho em condições do mesmo ser apreciado.
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