Como crítica aos blogues intimistas ou de desnudamento da privacidade, diz-se que “nobody gives a shit about what you had for breakfast today” (ninguém dá um centavo [tradução suave] para saber o que comeste hoje ao pequeno almoço]. No caso de blogues gastronómicos talvez não seja bem assim.
Este blogue tem tido pouca atenção da minha parte, ocupado com as muitas provocações à minha escrita política no outro blogue, No Moleskine. Tenho agora a oportunidade de corrigir isto, falando de assunto fácil, as refeições de festa. Começo hoje, com atraso, pelo Natal. Antes, alguma coisa sobre as minhas tradições, a de menino e a de agora, em nova partilha.
Começo pelos Açores. Durante muitos anos, para mim, o bacalhau entrava pouco no ritual das festas. Na véspera de Natal, comia-se sem grande preocupação, porque as atenções do dia, na cozinha, tinham ido para a preparação da grande festa, o jantar do dia de Natal. Quando eu era miúdo, e os meus irmãos, deitávamo-nos cedo na véspera de Natal, depois de um jantar vulgar e de receber as ofertas. Mais tarde, começámos a ir à missa do galo, ficando para depois dela uma ceia e os presentes, numa espera ansiosa. A ceia era variada, com coisas leves e principalmente muitos doces de forma, mas sem nenhum prato marcante ou obrigatório.
Como disse, a refeição importante, de família, era o jantar de 25. Em algumas famílias podia ser de carne assada, em famílias mais pobres até uns simples mas excelentes torresmos de molho de fígado, mas a tradição largamente maioritária era a da galinha assada recheada ou não. Na minha casa fazia-se uma velha receita de família, excelente, de galinha recheada, cuja receita publiquei no meu livro “Gosto de Bem Comer”. Passei depois para o peru, de que acabei por me fartar em benefício de uma ave excelente, o capão. Sendo casa micaelense mas com domínio feminino terceirense, imperava também a grande doçaria terceirense, tanto mais que a minha avó era inventora célebre de muitos doces.
Abro parêntese para outra tradição açoriana, de todas as classes, a mijinha do Menino. Entre Natal e Reis, fica a mesa de jantar muito bem decorada, com as melhores louças e pratas quando as há, cheia de doces e frutos passados (não os fritos continentais, que nos Açores se fazem é no Carnaval). Ao mesmo tempo, profusão de licores, com toda a variedade com que ainda os fazem nas ilhas, e que se oferecem às visitas como a mijinha do Menino.
Passando então à minha festa de agora, ela é limitada por essa coisa cada vez mais frequente que é a obrigação de filhos e netos terem de gerir com habilidade a partilha por todas as famílias directas e afins. Assim, e como agora é nosso hábito, a consoada, em casa de pais angolanos com raízes em Vale Frechoso, Vila Flor, foi tipicamente transmontana. Pastéis de bacalhau e polvo frito enquanto se esperava pelo resto, sopa de bacalhau, bacalhau com todos, rabanadas, sonhos, coscorões, lampreia de ovos. A sopa foi novidade para mim quando, há anos, a experimentei lá em casa pela primeira vez. É de cebola refogada, com um pouco de tomate, caldo de cozer bacalhau e o próprio bacalhau moído na sopa e, no fim, ovo batido adicionado em fio, para cozer logo espalhado pela sopa. Ainda não encontrei quem mais a fizesse. Transmontanice, quem deve saber é o Virgílio Nogueiro Gomes.
Com isto, ficando para dia seguinte o jantar patriarcal (meu), o de Natal foi a dois. Esmerado, a contradizer a crise, mas Natal não é todos os dias. Como entrada – mas bem aviada – uns carabineiros cozidos simples, servidos sobre rodelas de caiotas (chuchus) glaceadas, no ponto certo e difícil de ficarem cozidas precisamente ao dente e muito brilhantes do glaceado. A regar, uma espuma de nata com daiquiri e temperada com um pouco de Caiena, polvilhada com caviar de ovas de anchova, relativamente barato e para meu gosto muito saboroso. O único senão foi o prato ter ficado com pouco contraste de cor. Para a próxima, experimento espargos verdes.
O prato principal – galinha em dois serviços com pudim de recheio terceirense e cogumelos salteados – foi um pouco mais trabalhoso, mas não muito caro. A tal galinha era assada, recheada no interior e debaixo da pele com um recheio com base de cebola refogada, pão, caldo, fígado esfarelado, ovos e azeitonas, com tempero de especiarias bem populares na Terceira, a pimenta preta e a pimenta da Jamaica. Depois de arrefecida trincha-se a carne e o recheio juntos e serve-se fria, sem mais acompanhamentos.
Pensando nisso, marinei uma pularda pequena (2 kg) e assei-a com laranja, limão e tomilho no interior. Interrompi a cozedura quando as coxas e as pernas ainda não estavam prontas e removi-as. Continuei a assar o resto, que depois arranjei separando os dois peitos. Entretanto, preparei o bolo em estilo de recheio, seguindo o processo tradicional da tal receita familiar, mas formando um rolo grosso, embrulhado em folha de alumínio e levando a assar.
A carne das coxas e pernas, desfeita grado, mais cubos de fígado de pato cozidos, foram adicionadas a chalotas refogadas, regadas com vinho generoso e caldo, temperadas com pimenta preta, sal e estragão e estufadas, tendo depois engrossado o molho como fricassé, com gemas diluídas em natas e sumo de limão.
À maneira do prato familiar, servi um peito frio sobre uma fatia de bolo, também fria, com acompanhamento quente de cogumelos morlhas salteados, tudo com o fricassé à parte.
Para sobremesa, um dos melhores doces açorianos de colher, o doce de vinagre, feito com leite coalhado com vinagre, açúcar e gemas batidas, temperado com erva-doce.
Um Natal que foi bem recheado. Muito obrigado por me citar. BOM ANO 2014. Um abraço. Virgílio
ResponderEliminarVirgílio, sabe se essa sopa de bacalhau ainda é vulgar em Trás-os-Montes?
ResponderEliminar