O jantar do dia de S. Valentim – essa introdução recente na cultura urbana portuguesa – é bom pretexto para reanimar este blogue, que tem estado em hibernação. Não é nosso hábito ir nesse dia a restaurantes, muito cheios. Jantamos em casa, esmeradamente, eu a cozinhar, a morena a dispor a mesa como em cerimónias as mais especiais, não esquecendo, claro, as velas e as flores.
Ontem fiz lagosta à americana. Esclareça-se, não se vá pensar que não sinto a crise, usei umas lagostinhas pequenas de Moçambique, congeladas, a 30 euros. Como são imprestáveis para comer como gosto mais, simplesmente cozidas, com molho de salsa verde da minha terra (cebola, salsa, sal, pimenta, malagueta e açaflor), usei a preparação à americana, como também uso frequentemente outra muito boa, à Thermidor.
Este prato célebre tem a sua história, embora controversa. Deve-se a Pierre Fraysse, cozinheiro francês que, depois de vários anos de trabalho na América, abriu em Paris o seu restaurante Peter’s, em 1854. Diz-se que uma noite, por volta dessa data, recebeu ao fim da noite um grupo de comensais importante, quando já só tinha alguns lavagantes (homard; lagosta é langouste em francês). Improvisando, com vinho, legumes, caldo de peixe (“fumet”) e algumas bases, serviu-lhes o que ficou célebre como lavagante à americana.
Isto seria homenagem ao país em que trabalhou muitos anos, com muito sucesso. No entanto, há quem diga que o nome é uma corruptela de “à la armoricaine”, zona da Bretanha famosa pelo seu marisco, mas esta receita não tem nada a ver com a cozinha bretã. também há quem radique esta receita no lavagante Bonnefoy, do restaurante do mesmo nome (e a quem se deve o molho Bonnefoy, uma variante do bordelês), antes conhecido como “langouste niçoise”.
Procurei em vão a receita original de Fraysse. Na net há dezenas de receitas, com muitas variantes, sobretudo da gama de legumes e de alguns processos de preparação. Acabei por fazer a receita do grande Escoffier (“Le Guide Culinaire”), com pequenas modificações minhas, que indicarei depois.
Ingredientes. Lavagante, 800-900 g, 2 chalotas, 1 dente de alho, 4 c. sopa de óleo, 130 g de manteiga, 1,5 cálice (7,5 cl) de aguardente, 2 dl de vinho branco, 1,5 dl de “fumet” (caldo de peixe com legumes, em água e vinho branco), 1 c. sopa de geleia de carne, 3 c. sopa de “demi-glace” (tenho sempre em casa, preparados com frequência e guardados no frigorífico ou no congelador, o caldo, a geleia e o molho “demi-glace”), 2 c. sopa de polpa de tomate, salsa, pimenta da Caiena.
Preparação. Separar as cabeças, pinças e patas. Cortar os lombos e caudas em troços. Numa caçarola larga, aquecer a lume médio (nível 10-12 na minha placa de indução) o óleo e 30 g de manteiga. Alourar bem os pedaços de lavagante, com cuidado para não queimar. Rejeitar a gordura, juntar as chalotas picadas e o alho esmagado. Flamejar com a aguardente. Juntar o vinho, o caldo, a geleia, o “demi-glace”, a polpa de tomate e os temperos. Tapar e cozer no forno, 15-20 minutos. Reservar a carne e reduzir o caldo até relativamente espesso. Fora do lume, incorporar, batendo, 100 g de manteiga, adicionada à carne das pinças e patas, e ao coral (ovas). Reintroduzir os pedaços de lavagante, aquecer sem ferver mais e polvilhar com salsa picada. Servir imediatamente.
Modificações minhas. Para além de ter usado lagostinhas, alterei pouca coisa. Cozi as cabeças e patas (claro que, sendo lagosta, não tinha pinças), extraí os restos de carne e as ovas. Usei para o molho parte do caldo, para além do vinho e do “fumet”. Juntei também um grande talo de aipo, cortado às rodelas. Fiz tudo numa frigideira alta e cozi no fogão, não no forno. Para manter o volume de molho, não o reduzi mas usei a manteiga trabalhada com 2 c. chá de maizena. Em vez da salsa, juntei ao molho, quase a terminar a fervura, umas folhas de estragão, erva de que gosto muito com mariscos. Servi com arroz branco.
Permitam-me que me gabe: ficou uma delicia, um excelente prato.
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