Na última entrada, a propósito do uso corrente de limões galegos nos Açores, falei de um prato típico micaelense que não os dispensa, os torresmos de molho de fígado ou, popularmente e em abreviado, molho de fígado. Há outro tipo de torresmos, os simples ou “de pauzinho” (por causa das costelas), de que não vou falar agora.
Em qualquer dos casos, são confitados, conservados na banha solidificada. Por isto, era menos vulgar, na cidade, fazê-los em casa do que comprá-los nas barracas (o nome açoriano dos lugares de frutas e hortaliças). Quantas vezes os fui comprar ao Sr. Lopes, da Casa Verde. Retirados dos característicos potes grandes de louça da Vila, lá iam para casa já com a envolvente de banha para a fritura. Quem os apreciava removia boa parte dessa banha, como removemos a gordura de pato de um confit. Por isto me faz impressão ver hoje as pessoas nos supermercados de Ponta Delgada comprarem molho de fígado a nadar numa gordura enjoativa.
Note-se que também eram comida vulgar de taberna. Não era vergonha nenhuma no meu tempo ir de panela à taberna comprar alguns petiscos, mesmo que também alternassem com os feitos em casa – o polvo guisado em vinho de cheiro e as favas secas, assim como, no Balão da Ribeira Grande os célebres canarinhos.
Pela sua tipicidade e diferença em relação a tudo o que se faz no continente como rojões e semelhante (os torresmos nos Açores não são as tiras fritas de pele e toucinho), os torresmos de molho de fígado serão uma boa surpresa para os vossos amigos, com a vantagem de praticamente tudo se poder obter no continente. Excepção para a insubstituível malagueta micaelense e para a açaflor, (não é a curcuma ou açafrão indiano ou amarelo!) mas que já se vendem nas duas lojas açorianas de Lisboa (R. S. Julião, 58 e Av. Elias Garcia, 57). A caiena pode ser um longínquo substituto da malagueta, mas nunca o piripiri.
A carne de porco e o fígado, tudo em cubos grandes, são marinados em vinha de alhos com bastante limão galego e temperos. Vai a fritar na própria gordura ou com um pouco mais de banha primeiro a carne e mais tarde o fígado, molhando de vez em quando com um pouco da marinada. O molho deve ficar bem apurado, para o que contribui um bom pedaço de fígado bem desfeito. Como é vulgar na cozinha açoriana, pode-se comer sem acompanhamento. Quando há, é geralmente o inhame ou o minhoto, uma variante maios pequena e mais saborosa do inhame. Inhame decente é que também só se encontra cá nas tais lojas, porque o que se vende nos hipermercados é, para mim, incomestível. A alternativa é simplesmente batata cozida ou batata doce cozida.
Ao fim de muito revirar os torresmos e a banha dentro do pote, vai-se formando uma massa desfeita que se chama pé de torresmo. É uma deliciosa pasta para sandes. Hoje já se faz industrialmente, moendo os torresmos com um pouco do seu molho e, ao que me dizem, um pouco de vinho. Em casa, prefiro os que faço à moda antiga.
O molho de fígado da minha avó paterna era considerado uma especialidade e fazia as delícias dos 14 filhos (!). Nos jantares de família inteira, era prato habitual e não me lembro de quem o rejeitasse. Não deixou a receita e as minhas tias não eram muito viradas para a cozinha. Vale que herdei do meu pai uma excelente memória gustativa e, em experiências sucessivas com ele na prova final, que a princípio me deixavam muito frustrado (“está bom, mas ainda não é o da tua avó”), cheguei a uma receita que os sobreviventes da família garantem ser a da minha avó. Mais adiante, passarei essa receita.
Esse molho de fígado não diferia das variantes que descrevi nas carnes, no vinho nem no limão galego, mas sim nos condimentos. Propositadamente, não os referi acima, porque, na melhor recolha de cozinha micaelense, do já falecido Augusto Gomes, e em recolhas minhas, a variedade de temperos é muito grande: um ou mais de entre colorau, erva-doce, canela, pimenta preta ou pimenta branca, para além, claro de malagueta (pimenta da terra). As proporções também variam muito, de receita para receita.
Todos estes condimentos são marcantes na cozinha micaelense. As morcelas que maravilham os turistas levam o sangue coagulado, mais cebola e alho, temperado com malagueta, bastante canela e erva-doce. O debulho – sangue cozido esmagado num refogado – também é temperado com esses condimentos. Mais caracteristicamente, as “favas de taberna” (fava rica, de fava seca) levavam obrigatoriamente “temperos”. Julgo que é difícil encontrar lá este prato, do melhor da cozinha micaelense. Felizmente, posso dá-lo a conhecer aos meus amigos, porque me gabo de o fazer muito bem, aprendido na juventude com uma excelente cozinheira popular.
O que são esses temperos, popularmente chamados, com bom sotaque, “todolos tamparos”? Luís Aguiar, conterrâneo e velho amigo, conta nas suas histórias do Pico da Pedra (“Raiz Comovida”) que ia à mercearia a recado da mãe e que frequentemente o troco era dado em temperos. De facto, faziam-se na mercearia ou nos armazéns de secos e molhados. Faz recordar tempos muito antigos de passagem pelos Açores das naus da Índia e em que as especiarias também eram moeda, não tanto para compra de mercearia mas para mais avultado negócio de frescos.
Durante muitos anos não soube qual era a sua composição mais ou menos secreta – cada armazém diria hoje que tinha os melhores temperos do mundo, mesmo que o mundo se ficasse por S. Miguel. Foi por um amigo do meu pai já reformado de encarregado de um armazém que obtive a receita. Não é fácil de a fazer em pequena quantidade, pela desproporção entre os ingredientes, a pedir balanças de sensibilidade diferente. Aqui vai.
100 g de colorau (pimentão doce),100 g de erva doce, 20 g de canela, 5 g de pimenta preta, 5 g de cravinho, 5 g de cominhos. Se se quiser preparar uma dose pequena, 2,5 c. sopa de colorau, 2,5 c. sopa de erva doce, 1/2 c. sopa de canela, 1 c. chá de pimenta preta, 1 c. chá de cravinho, 1 c. chá de cominhos.
Vai então aqui a receita da minha avó que, com muito esforço, julgo ter recuperado e que a tal minha memória gustativa aprova.
500 g de lombo de porco, 750 g de entrecosto (da parte com mais carne), 250 g de toucinho, 500 g de fígado de porco em peça, 125 g de banha, vinha de alhos com 4 limões galegos (substituir por meia laranja, três limas e um limão grande).
Cortar todas as carnes em pedaços de bom tamanho e deixar pelo menos um dia em vinha de alhos: um copo de vinho branco, 4 c. sopa de vinagre, 5-6 dentes de alho pisados com 1 c. sopa de sal grosso, 1 c. sopa de malagueta, uma folha de louro, 8-10 grãos de pimenta preta, 4 cravinhos, meia c. sopa de açaflor, 3 c. sopa de “temperos”, 4 limões galegos aos quartos, espremidos, água q. b. A minha avó juntava também uma isca de baço de porco, esfarelada.Numa panela sem gordura, derreter a banha do toucinho. Em alternativa, derreter banha. Juntar todas as carnes, bem escorridas e fritar bem a lume forte durante bastante tempo, mexendo, até secar o líquido, ficando só a gordura e as carnes estarem bem fritas. Entretanto, cozer à parte o fígado. Juntar às carnes a vinha de alhos coada, por partes e ferver, a apurar bem. A meio, juntar o fígado, tirando alguns pedaços que se esmagam bem num pouco do caldo e que se misturam com o molho, a engrossá-lo. Também há quem frite o fígado cru na fritada das carnes, mas fica muito seco e duro. Prefiro cozê-lo à parte e juntar só quase no fim.
Sem comentários:
Enviar um comentário