Nos meus bem gostosos exercícios de estudo de tradições culinárias, tenho-me defrontado com dúvidas e surpresas bem estimulantes. Normalmente, não dizem respeito à cozinha popular, particularmente a que conheço bastante bem, a das minhas ilhas, em especial S. Miguel e Terceira. Falo principalmente da cozinha burguesa.
Não sei bem se devia falar de cozinha aristocrática e de cozinha burguesa, como coisas distintas. Pelo menos nos Açores, não há razão para distinguir, a não ser por as famílias fidalgas darem mais festas e, por isto, terem mais hábito de uma cozinha mais rica e refinada. Mas, no essencial, e quando comparo livros familiares de receitas que pude consultar, não há uma diferença substancial.
A cozinha burguesa/aristocrática tem dois níveis. No dia vulgar comem-se coisas de um cardápio não muito variado, como a que se espalha de norte a sul do país, mas com variações de família estimadas como património, numa época em que ser-se prendada era coisa importantíssima para as meninas de família. Isto passa-se em outros países, fazendo com que os colectores de receitas arrumem essa cozinha burguesa como cozinha da capital.
Ao fim de semana e em jantares de festa, esmera-se nos segredos de família. É aqui que entram mistérios quase insondáveis. Já aqui os tenho questionado, em relação às minhas tradições de família. De onde vem um prato difícil e requintado de galinha semicozida, depois assada e envolvida, fria, numa maionese com a gordura do assado, especiarias e bastante do seu fígado? Porque é que só se comia a língua feita em fricassé, complicado? Ou a canja, sempre cremosa, com os ovinos do oviducto e com massa pérola? Ou uma galinha desfiada num arroz com amêndoas, muito antes de se popularizar o arroz à árabe? Ou as línguas de bacalhau em fricassé?
Há dias, comentava com o meu irmão, tão vivo como eu para as memórias da mesa de família de nós miúdos, uma coisa tão vulgar na nossa casa, as empadas a vapor. Creio, mas não garanto, que se chamavam assim em homenagem ao comboio, por serem mais rápidas de fazer do que as tradicionais. Eram deliciosas e vou ter de as fazer um dia destes.
O que é mais bizarro é que ele, lendo um livro de receitas da mãe de um seu amigo, encontrou a receita exactamente igual, de una casa dos confins do nosso interior, tão longe dos Açores. Fui procurar no que tenho, Pantagruel, Oleboma, Bento da Maia, Maria de Lourdes Modesto, nada. Viria nos velhos almanaques, na Ilustração Portuguesa?
Passa-se o mesmo nas recordações minhas e da minha morena, ainda com maior distância, entre Açores e Angola. Quantas vezes diz um “na minha casa era assim” e o outro responde “tem graça, também na minha”, de tal forma que, um dia destes, para as duas famílias, vamos fazer um jantar de comparação.
As nossas referências culinárias são as avós, mas tão diferentes. A minha avó Adélia sempre vivida nos Açores, em meio próximo da metrópole, em tradições e cultura. A avó Mariana, da Catumbela e depois de Luanda, educada em escola estrangeira mas, sabe-se lá como, instruindo as filhas em artes domésticas tão próximas das que marcaram a minha infância. Há tempos, pedimos num sítio pastéis de massa tenra. Um de nós disse “há que tempos não comia iguais aos pastéis da minha avó”. E o outro, “eu também”.O mundo é pequeno.
NOTA – Se esta crónica parece coisa do MEC e da Maria João, peço muita desculpa.
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