sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Carne Stroganov, uma história complicada

Quanto a padronização, sensata, sou menos exigente com a cozinha urbana, aristocrático-burguesa, do que com a cozinha tradicional, um património muito mais identificativo da história culinária de todo um povo ou, pelo menos, grandes regiões. 

Pouco me interessa que haja milhentas receitas de bacalhau com natas, mais ou menos inspiradas (muitas vezes muito mal) no bacalhau à Conde da Guarda e em mestre João Ribeiro. Não é prato tradicional, façam como quiserem, desde que não invocando a receita do mestre. Diferente será fazer bacalhau à Gomes de Sá com natas e usar à mesma o nome do célebre homem de secos e molhados.

Também acho perfeitamente legítimo que, na minha casa de miúdo, contra a generalidade dos usos, almôndegas sempre tenham sido feitas (e de forma complicada) de fricassé, ou até, melhor dito, numa variante de molho poulette. Que de geração em geração familiar se tivesse inventado, melhorado, adaptado pratos de certo requinte, como peixe assado com nozes e azeitonas ou galinha de molho de perdiz ou um arroz que só muito mais tarde começou a ser moda, chamado de árabe. Não está em causa nenhuma violação dos cânones da cozinha tradicional, e mesmo estes há que saber tratá-los com bom senso e com a evolução de ingredientes, gostos e técnicas hoje ao dispor.

Vem este prolegómeno a propósito do jantar de anteontem e de alguma conversa à volta dele. Mensalmente, tenho um ótimo cozinheiro que, como agora se faz muito, traz as coisas prontas, tudo nos trinques. Simplesmente, não é de nenhuma empresa, é o meu alter ego gastronómico que frequentemente refiro aqui. Anteontem trouxe um stroganov, porque leu a receita original e a sua história, ao que parece, não sei em que tradução do livro de Elena Molokhovets, de 1861 (“Oferta para jovens donas de casa”). Talvez com exceção do “boeuf bourguignon” e da “paella”, mas que não são de invenção erudita, não deve haver prato de “cozinha de restaurante” com tal variedade inventada ao longo dos anos e por todo o mundo.

Comece-se pelo nome e sua razão de ser. Stroganov ou strogonov ou stroganoff ou strogonoff, este último talvez o nome mais usado entre nós? Se formos pela origem geralmente invocada, tendo tudo a ver com variadas famílias Stroganov, desde aristocratas a grandes burgueses, assim se grafaria, não strogonov ou strogonoff. Mas porquê Stroganoff? Porque em russo o “v” final se pronuncia “f”. No entanto, por exemplo, lê-se Popof ou Pavlof, mas translitera-se sempre do russo como Popov ou Pavlov. Agora para letra em duplicado, stroganoff, é que não encontro justificação.

Quem o inventou? Teria sido o cozinheiro francês de um tal Conde Pavel Alexandrovich Stroganov (1774-1817) General Adjunto do Czar Alexander I, inspirando-se no clássico “fricassé de boeuf” francês? Ou, mais tarde, de um diplomata, outro conde Pavel Stroganov? Ou foi inventado, segundo outra lenda, num concurso culinário de chefes de cozinha de aristocratas russos, em 1890, o que é desmentido pela publicação anterior no referido livro? Até há a história anedótica de o prato ter sido criado porque um tal desses Stroganov tinha perdido todos os dentes e precisava de comer carne muito fatiada e tenra, com muito molho a fazer “ir para baixo”. 

Ou tem história muito mais antiga, como prato popular russo assimilado da cozinha militar, no séc. XVI, quando se levava como ração, em barricas, carne cortada em pequenos pedaços, para se poder descongelar facilmente, salgada e curtida em aguardente, acrescentando-se antes de comer um pouco de gordura e nata azeda? Ou ainda, também com velhas origens populares, coisa muito simples que não tem nada a ver com lendas principescas: em russo, o verbo “strogat” significa cortar em pedaços pequenos.

Certo é que a dispersão pelo mundo dos emigrados russos depois da revolução de 1917 tornou o prato um dos mais internacionalizados da cozinha do séc. XX. Diz-se que esta popularização começou por Hong Kong, onde se estabeleceu uma grande colónia de russos brancos. Daí o hábito hoje muito vulgar de acompanhar a carne com arroz, em vez das batatas da tradição russa.

O livro de Elena Molokhovets foi traduzido (com introdução) por Joyce Toomre, em 1992 (Indiana University Press, ISBN 0-253-36026-3). Lá vem, com o número 635, a “carne Stroganov com mostarda”, “Govjadina po-stroganovski, s gorchitseju”. A receita é muito simples. 
1 kg de carne tenra, 10-15 grãos de Jamaica, sal, pimenta, 125 g de manteiga, 2 colheres de farinha, 4 dl de caldo de carne, 2 colheres de nata azeda, 1 colher de chá de mostarda. Duas horas antes de servir, cortar a carne em cubos pequenos e temperar com sal e Jamaica. À última hora, misturar 2 colheres de sopa de manteiga com a farinha, fritar levemente e diluir com caldo e mostarda, temperando com pimenta. Deixar ferver, a ligar bem e juntar no fim a nata. Fritar a carne no resto da manteiga, juntá-la ao molho, levar à fervura e servir.
Nem cebola, nem tomate, nem cogumelos, nem conhaque. Repare-se no pormenor da Jamaica, hoje pouco usada nos stroganoves que comemos por toda a parte. Também no facto de a carne ser cortada em cubos e a quantidade de nata ser pequena.

Segundo Joyce Toomre, esta receita ficou na memória desse tempo, mas durou pouco, tendo dado origem, rapidamente, a variantes, das quais a mais importante – uso de cebola, tomate e cogumelos – parece datar de 1912, num livro de receitas de Aleksandrova-Ignatieva (não conheço tradução).

O que é que podemos usar como mínima definição comum de qualquer stroganov? Primeiro, essencial, a carne, muito tenra (“filet mignon”) é cortada em tiras finas, salteada a lume muito forte  e reservada, com o suco, para junção ao molho, só antes de servir. No entanto, a receita dita original, de 1861, é com carne em cubos pequenos. E hoje, em muita parte, a carne é guisada prolongadamente no refogado e no molho. Nos blogues brasileiros, como veremos adiante ser provavelmente o país mais imaginativo em relação a stroganov, até há muitas receitas que acabam no forno, mesmo a gratinar queijo ralado.

Segundo, obrigatoriamente nata azeda, coisa típica da cozinha russa. De forma alguma a nata vulgar que por cá se usa. Não é questão de variante legítima, é que o sabor da nata vulgar altera substancialmente o prato. O azedo de fermentação ácida, natural, da nata pode ser facilmente imitado – é o que faz cá uma minha amiga russa – misturando em partes iguais nata e iogurte simples, mais, a gosto, um pouco de sumo de limão ou vinagre.

Terceiro, o acompanhamento. Batata frita em palitos grossos, batata palha, legumes, massas, até milho verde (!), são coisas que se leem nas milhentas páginas de culinária. Vulgar, hoje, é o arroz. Foi assim que eu próprio, há muitos anos, comecei a acompanhar este prato muito frequente na minha casa, porque fazia as delícias dos meus filhos crianças (só rivalizando com maionese de atum, com croquetes com salada russa e com esparguete à carbonara). Mais tradicionalmente à russa, e como faço hoje, batata cozida. Normalmente batata muito bem cozida, esmagada grosseiramente, a fazer de cama à carne com molho. Outras vezes, puré de batata. Outra guarnição tradicional que também uso complementarmente, depois de ter comido o prato em Moscovo, só coisa em pequena quantidade, é pepino de conserva, aliás sempre presente na mesa russa, desde o pequeno almoço até à ceia.

Tudo o resto, lido e provado, não consigo definir como genuíno. Em geral, começa por se refogar cebola. No entanto, o refogado só aparece meio século depois da receita dita original. Hoje também é e quase regra usar um pouco de tomate, introduzido nessa receita de 1912, e também cogumelos. Acompanhamento com batata palha. Nada disto havia na origem. Em contrapartida, Elena Molokhovets inclui mostarda, que hoje nem sempre se usa. Outro tempero vulgar, que não uso no stroganov, é a paprika não picante, ou mesmo o colorau.

O resto é para quem gosta, embora aconselhe dizer que é “stroganov à sua maneira”. Procurem na net, coisas inimagináveis, em geral brasileiras. Carne picada, ketchup, molho Worcestershire ("molho inglês"), vodka, azeite, vinho branco, uisque, vermute, açúcar (!), salsa picada e até – pasme-se – molho de soja! Curiosamente, todos se reclamam da receita original. Também se tem variado no ingrediente principal, o que é uma variação legítima – como a carne à Brás bem típica da Marinha do meu tempo – desde que a variação seja claramente referida: peru, frango, camarão, borrego (no norte de África), até diversas salsichas (estas principalmente na Escandinávia).

Os clássicos não ajudam. A receita do Larousse envolve marinada prévia (e é aqui que entra a cebola), a juntar depois ao molho. Não leva mostarda, contra o inicialmente indicado na receita de 1861, nem tomate, à 1912. No entanto, refere que “uma versão mais russa” usa rebola refogada e mostarda. Escoffier omite o stroganov.

Já agora, o “meu” stroganov, receita da tal minha amiga russa. Costuma ficar muito bom. Mas de forma alguma lhe fica atrás o que comi anteontem, do meu cozinheiro que vem a casa. Estava magnífico.

NOTA – As corruptelas de designações culinárias por restaurantes e cozinheiros pouco instruídos dão coisas engraçadas. Há anos, era vulgar comer-se "carne à morangó". Claro que era à Marengo. E as disparatadas variações, que ainda se veem, do "al ajillo", nomeadamente um tal Guilho que não sei quem foi ou, se é lugar, onde é que fica?...

E A DESPROPÓSITO – Lido hoje num blogue culinário de tias: "o queijo francês mais famoso é o Gruyère, aquele cheio de buracos". E noutro: "o gulache é o prato típico mais conhecido da Polónia, que os meus amigos polacos em Paris faziam muitas vezes". E não se pode exterminá-las?, perguntaria Karl Valentin.

1 comentário:

  1. Aqui em Porto Alegre tive o prazer de conhecer Igor Balichanski, um chef russo que sustentava a teoria de que este prato era de origem campones,levava bacon, cogumelos frescos e era flambado antes de formar o molho. O molho levava mostarda e creme azedo.
    Sigo esta receita até hoje e todos adoram.

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