Em jantares de amigos até esmerados, fico muitas vezes com a ideia de que o esforço que fazem para apresentar um prato agradável ou uma boa sobremesa não tem correspondência na secção prévia, o tempo de antes de ir para a mesa. Também leitores do meu livro “O Gosto de Bem comer” me dizem que não encontram lá muitas sugestões (o que julgo ser afirmação um pouco injusta). Por isto, sai hoje nota daquelas que motivarão comentário de “post de pouco nível gastronómico, banalidade, quem é que não sabe isto”.
Garanto que muita gente, meus correspondentes, não sabe isto. Lembro que gosto de ser um amador com nível decente que gosta de ajudar amadores com gosto mas com nível “indecente” a passarem a nível decente. O resto fica para os profissionais, por um lado, ou para os que, no outro lado, não se importam muito com essa coisa da decência.
Claro que só vou falar desta fase prévia do jantar a nível doméstico. Os "amuse bouche" de grandes restaurantes, já à mesa, são outra coisa. Todavia, o que escrevo também vale para alguns restaurantes em que temos de esperar no bar, com uma bebida, até a mesa estar pronta, muitas vezes mais demoradamente do que devia ser. Frequentemente, essa bebida não tem acompanhamento que valha.
Aperitivo: uma bebida e qualquer coisa a ir com ela. É tão importante que ocupa um terço do espaço da minha sala (foto) em convívio informal a rasar o chão, a par da zona da mesa e da zona de sofás pós-prandial, tudo com grande porta deslizante a abrir para o meu território, a cozinha. Em festa, eu estou num lado da porta e a morena no outro com os convidados, quando estes não estão nos bancos da ilha central da cozinha, do lado oposto ao mestre.
Primeiro, uma bebida. Como estou relativamente limitado por razões de saúde, não mando eu e vou pelo que sei que os amigos apreciam. Geralmente, nada de bebidas fortes – já lá vai o tempo do uísque e do gin, hoje cada vez mais tomados como “digestivos”. Antes champanhe bruto, um Biscoitos, Madeira, Moscatel ou outro generoso (reparem que não falo de Porto, para aperitivo), um bom branco muito seco ou até cerveja. Tenho um primo que me pede sempre um tinto, e faz muito bem. As minhas amigas, seguindo a morena, perdem-se por um rosé. Quem sou eu para discutir gostos femininos?
Qualquer coisa a ir com ela. Para mim, cada vez mais “dips” (pastas ou molhos muito espessos) que se colhem com qualquer coisa, a simular uma colher. Tem aspeto de ritual. Encher a mão com uma data de cajus é coisa grosseira. Servir-se de uma coisa pseudo-colher para apanhar um pouco de pasta, com a necessidade de escolher entre umas tantas (não demais), já é ato gastronómico.
Apanhar com quê? Coisas que faço em casa, crocantes, mas não vou complicar esta nota. Nas boas lojas de gourmet há uma boa variedade de crocantes que servem muito bem de colher. Em qualquer supermercado, também minitacos, hóstias fritas de arroz, bolachas muito finas, até boas batatas fritas de pacote podem ir bem! Gressinos são excelentes, em firmeza e suavidade de sabor, para molhar em pastas, mas têm o grande inconveniente do desperdício. A não ser que contemporizemos com alguma promiscuidade, cada gressino só vai uma vez da pasta à boca, viagem de ida sem volta. A habilidade – ainda não experimentei – é molhar abundantemente pelo menos 5 cm de gressino. Até se pode fazer campeonato, o que alegra o jantar.
Outro tipo de coisas que se podem usar para molhar são vegetais duros, crus ou escaldados muito rapidamente: tiras de aipo, cenoura, nabo ou cherovia, curgete ou pepino (sem o interior mole), palitos grossos de palmitos, raminhos de brócolos ou couve-flor, espargos verdes, talos de funcho, lâminas de cogumelos duros, etc. E porque não, conforme os “dips”, coisas como palitos grossos de melão, de abóbora dura, cebolo, tiras estreitas de courato ou torresmo fritas? Até já usei mexilhões ainda presos a metade da casca.
E os “dips”? Se “googlarem”, são muitas centenas. Só eu já improvisei muitos e muitos, em jantares de amigos ou até só em ceias amorenadas, embora muitas vezes me esquecendo de os passar a escrito. Ficam aqui apenas ideias muito gerais.
Começo por queijos. A coisa mais simples é um queijo de pasta mole, de dimensão média (cerca de 12-15 cm) de vaca (Camembert, alguns açorianos recentes) ou de ovelha pouco curado, levados ao forno ou ao micro-ondas e cortados a toda a superfície superior. Se o queijo já estiver bastante curado, pode ser difícil colher a pasta a não ser com uma faca ou colher pequena e passá-la para uma minitosta ou uma cracker.
Mais variado é imaginarem uma pasta de queijo (ou Philadelphia, mascarpone ou ricotta), com alho, com presunto, com pimentas, com ervas, ou com hortaliças. Por exemplo, muito simples, de inspiração alentejana (alho, chouriço, coentros) ou açoriana (malagueta, alho, boa dose de pimenta da Jamaica). Também transmontana, terrincho moído com recheio de alheira de caça e um toque de azeite e azeitonas. E, como sou provocador, até digo que, sem muita exigência, e aldrabando por não mostrar a embalagem industrial, servem umas pastas que uso para barrar o pão da ceia, com alguma diversidade, da Président.
A seguir, os mariscos. Claro que muita gente aldrabará, sem confessar, juntando substância com delícias do mar (de onde raio terá vindo nome tão piroso? Já não me lembro). Hoje, há a preço acessível miolo de camarão e carne de caranguejo. Se em peça com cascas, dá aproveitamento de concentrado de cozedura prolongada das ditas, para acentuar o gosto. Como regras gerais, envolver a substância em coisas suaves que não abafem o gosto do marisco. Maionese, aioli, aveludado de legumes ou até de galinha, desde que muito suave, redução de coisas adequadas em vinho branco seco, ervas com escolha muito criteriosa. Para mim, a melhor erva para mariscos é uma que se associa normalmente a carnes, o estragão.
De peixes, o atum fresco, o espadarte ou a cavala, com maior cuidado o atum de conserva e o salmão. Também o não peixe polvo e, claro, uma brandade de bacalhau, pouco espessa e bem temperada, a vosso gosto criativo. Não vou dar dicas, é mesmo caso para desafio de imaginação. Deixo só uma ideia geral, para peixes: comecem por um escabeche e transformem-no numa pasta. Vão ser importantes os condimentos mediterrânicos e os temperos macaronésicos. Também ingredientes muito usados, como azeitonas, filetes de anchovas ou alcaparras, massa de pimentão, etc., etc..
Outro capítulo, ovos. Podem-se preparar variadíssimas bases, de legumes, queijos, enchidos, etc. Junta-se alguma coisa a engrossar, por exemplo tostas ou crackers raladas, eventualmente cremificadas com um pouco de aveludado, nata espessa ou iogurte, mas deixando lugar destacado, no final, para os ovos. As gemas, separadas das claras, vão ao micro-ondas (não dou indicações precisas, porque cada aparelho é único) até ficarem com consistência cremosa, nem cruas nem cozidas. E é só misturar com o resto, com os temperos adequados. Lembrar que gema de ovo fica sempre bem com um toque de tempero com noz moscada, assim como um pouco cortada com sumo de limão.
Inevitavelmente, as pastas de fígado, minha grande predileção. Muitas vezes, reina em aperitivo na minha casa pura e simplesmente a terrina do “je”. Mas dá tanto trabalho e exige tão constante acompanhamento que, na prática, a substituo por um “dip” de pasta de fígado, de consistência mole para colher ou um pouco mais dura para barrar tostas ou bolachas não doces, com sementes. Quantas variações, mas deixando aqui dicas sobre coisas que ligam muito bem para uma pasta final, que até pode ter como base – porque não? – uma boa pasta de fígado de pato industrial (de ganso, para este efeito, não vale a pena em termos de qualidade-preço): um pouco de presunto ou toucinho fumado, cogumelos, espargos verdes, alcachofras, “chèvre” moderado, vinhos generosos, laranja, agridoce de frutos silvestres, zimbro, pimentas exóticas.
Depois as fantasias, misturas contrastantes e extravagantes do que vejo no supermercado, que até pode ser bacalhau com uma fruta, leite, alho e sei lá que mais; ou misturas moídas de enchidos e frutas; ou variantes mais ou menos desviantes do guacamole; uma coisa tipo moqueca, moída e com a consistência devida; “caviar” com nata azeda e funcho; curtumes misturados com uma compota e um pouco de aveludado concentrado; variantes suavizadas e enriquecidas de tapenade; tahini e variantes, etc.. Ou coisas de inspiração exótica: com base em iogurte ou leite de coco, manga, tamarindo, caril; ou óleo de palma, quiabos e abóbora; ou miso, gengibre rosa e wazabi (wazabi, coisa que detesto) eventualmente com algas aquecidas e maceradas; etc.. Sobre isto, já disse demais, inventem!
A propósito da última evocação, japonesa, lembrei-me de uma alternativa a “dips”, não exatamente pastas: coisas moles e encorpadas por si próprias ou por mais ingredientes ou por molhos, como arroz à japonesa, mais húmido e colado do que habitualmente, com o que merecer por companhia, ou cuscus, ou farofa, ou milho moído grado, ou nabo ralado um pouco grosso em mandolina. Em todos os casos, ao contrário dos “dips”, a notar-se bem o ingrediente de base. Claro que a “colher” deve ser adequada, dura e seca. Provavelmente será melhor servir sobre minitostas ou bolachas, servindo-se de faca ou colher. Não tenho experiência mas certamente que a vou ter. Depois conto.
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