Já há tempos que vinha a ver à venda, no meu hiper, “fromage à racler”. Sempre houve, em sítios muito excecionais, desde que vim da Suiça e não o dispensava, mas agora amigos começam a perguntar-me para que serve, porque, como queijo, não o apreciam muito. Têm razão, não se compara a um Gruyère ou outros grandes queijos suíços (em que não incluo o Ementhal!). É um queijo com utilização muito específica, a raclette dos cantões suíços francófonos do Vaud (onde vivi, em Lutry, à ilharga de Lausana) e do Valais, o cantão que dá aqueles louros grandalhões e católicos beatos da guarda suíça do Vaticano.
Mas, antes, alguma divagação pelas minhas memórias de suíço adotivo, no princípio dos 70s. Tenho com a Suíça uma relação afetiva complicada de “amor e ódio”. Aprecio profundamente o grande sentimento de liberdade dos suíços, própria e dos outros, o seu civismo, a sua democracia direta (embora com altas taxas de abstenção) e a força de intervenção e de participação cidadã nas pequenas comunas, um exemplo para as nossas autarquias. Mas, neste plano dos valores políticos e de cidadania, acho execrável a xenofobia que já sentia há trinta anos e que agora se acentua, bem como o seu isolacionismo e egoísmo nas relações internacionais.
No dia a dia, apreciava a cortesia das pessoas mas irritava-me quando, num autocarro, as velhotas faziam caras francamente reprovadoras se os meus filhos crianças falavam um pouco mais alto. E, acima de tudo, a mania da ordem e da limpeza, tão bem parodiada no Astérix, que eu valorizava, mas que também me irritava um pouco. Costumava dizer que as vacas suíças, antes de irem para o pasto, tomavam duche todos os dias. É o único país onde eu vi, até na minha pequena comuna de Lutry, brigadas de funcionários que, semanalmente, lavavam os sinais de trânsito! Mas isto está a passar à história, porque hoje me impressiona a quantidade de plásticos e latas de Coca-Cola que se vêem pelo chão, no centro de Genebra.
A cozinha suíça, que conheci bem, é peculiar. Talvez os leitores não saibam que a Suíça, ainda na primeira metade do século XX, era um pais pobre, de forte emigração. Pobre também era, por isso, a cozinha popular. Cozinha de batata! Hoje, na Suíça rica, há uma excelente cozinha, mas principalmente burguesa e de forte influência francesa, pelo menos na zona francófona, onde vivi. Passemos então à raclette.
A raclette é todo um cerimonial de festa. O queijo é cortada à metade e posto junto à lareira, a amolecer. Cada conviva sabe bem quando está no ponto de, com uma espátula, rapar (“racler”) uma fatia mole e passá-la para o seu prato. Quem tem lareira pode fazê-lo assim. Eu dispenso-a, usando, para lhe apresentar defronte o queijo, um velho aquecedor elétrico, de resistência ou de lâmpada de infravermelhos. Esta é a parte menos importante da história, o que interessa é com que se vai comer o queijo.
Talvez mais importante, com que se vai beber. Com um Dorin, de preferência Dezaley, uma variante “vaudoise” de chasselas, que dá vinhos brancos muito aromáticos, se sabor intenso, prolongado fim de boca, extremamente secos, tipicamente chamados de vinhos com gosto de pederneira. Produção limitada, nunca os encontrei cá, são coisa obrigatória na bagagem de regresso de Genebra. Mas pelo menos a 30 € por garrafa! Mantendo-me nos brancos, e também chasselas mas menos agreste do que o Dorin, pode-se optar por um Fendant do Valais.
Quem vai à lareira recolher a sua pazada de raclette já leva o prato como quer, a cobrir com o queijo. Não vou dar receitas, porque cada um se esmera no que inventa, mas há coisas básicas. Desde logo, lascas de batata cozida, por vezes temperada com paprica. Não se esqueça, como disse, que a batata era a base da alimentação suíça, quando o país era pobre e exportador de gente, no séc. XIX. Também picles, pepinos de conserva, anchovas, “boeuf valaisan” (um presunto de carne de vaca), legumes, variados enchidos, o que calhar.
É um ritual que dá pela noite dentro, em festas com exuberância suíça. O meu senhorio, M. Fuchs, vivia no apartamento por cima do meu. Um dia, veio pedir-me desculpa pelo incómodo de uma festa de raclette. Eu tinha dormido como um justo, nem dei pela festa.
Outra festa ritual é a da fondue, também tipicamente “vaudoise”. Muita gente tem cá o apetrecho, “caquelon”, lamparina, garfos, mas para fazerem a chamada fondue borguinhona, de carnes. Ainda não consegui apurar a sua história, que, com a fondue chinesa e a de chocolate, começa nos anos 50 do século passado, com origens obscuras, a aproveitar o utensílio tradicional suíço. Como se sabe, são pedaços de carne fritos em óleo e molhados em molhos diversos. O que é que isto tem a ver com "fundida" ("fondue")? Até podia ser interessante, como faço às vezes, desde que a carne seja de lombo, o óleo fresco e os molhos feitos à maneira, ao gosto do chefe, e não retirados a esmo da prateleira do supermercado.
Não é disto que vou falar, mas da fondue suíça. Ela não é verdadeiramente um prato. É parte essencial de um ritual de convivência. Vai-se comendo lentamente, ao longo de horas, entre muita conversa e copos de vinho.
Há variantes de fondue, tida cada uma como emblemática de cada cantão francófono, mas a genuína é a do Vaud, só com queijo Gruyère (o tal queijo que, há tempos, uma tia famosa da net disse que era o queijo francês mais conhecido, cheio de buracos). Aquela que, a seguir, por mais equilibrada de sabores, sempre me atraiu, é a "dos três cantões", uma criação erudita, misturando, terço a terço, Gruyére, vacherin de Friburgo e Ementhal. Já não se pode fazer, porque deixou de se fabricar o já então raro e magnífico vacherin, um dos melhores queijos que já comi. E também há a minha fondue açoriana, só de S. Jorge ou então de mistura de S. Jorge, queijo velho de S. Miguel e queijo do Pico mal curado ou um dos novos açorianos de pasta semimole.
A técnica não é difícil. Quanto aos queijos, passá-los na mandolina, a ralado grado. Esfregar o recipiente (“caquelon”, de metal mas preferivelmente de cerâmica), com bastante alho. Juntar 600 g de queijo, 6 dl de vinho branco seco (em Portugal, sugiro um Arinto) e 1 cálice de aguardente (na Suíça, as suas aguardentes de frutos) com 1 c. sobremesa de maizena. Temperar com pouco ou nenhum sal – o queijo é salgado – pimenta preta e bastante noz moscada. Aquecer a lume médio até fundir e fervilhar. Passar para a mesa, sobre a lamparina.
Aqui é que está o segredo do artista. Chama muito alta seca logo a fondue, chama muito baixa mantém-na muito líquida, quando o que se pretende é uma pasta a envolver bem os cubos de pão, espetados no garfo, sem escorrer. Bonito é uma pequena estalactite de queijo a pingar do pão, mas sem se soltar. No fim, deve haver no fundo uma fina película de queijo queimado (a "freira"). Experimentem e ganhem prática. E não esqueçam a regra absoluta: quem perder o pedaço de pão paga a próxima fondue! Ou, se for uma senhora, dá uma volta à mesa a beijar todos os homens.
Ainda fica por descrever coisa magnífica, cá desconhecida, a “crôute”, que merece ida a Gruyère – uma linda aldeia medieval, minúscula, toda dentro de um castelo. Quem lá comeu muitas, como eu, pode fazer variantes (por exemplo, uns cubinhos de pepinos de conserva ou de presunto, cogumelos ou um toque de paprica), mas aqui fica a genuina, muito simples. Misturar cebola (ou chalota) picada e salteada em manteiga, vinho Dorin, ovo batido e muito queijo Gruyère ralado grosso. Temperar com sal, pimenta preta, noz moscada, cobrir com esta pasta fatias de pão rústico e levar ao forno a gratinar. É tudo! Outras coisas já são variantes, de outros cantões ou de coisas de família, não digo que não muitas boas. Eu próprio as faço, como disse acima.
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