Cabo Verde, nha cretcheu!
Passamos férias em Cabo Verde, país lusófono que não conhecíamos. País de interseção para estes dois nós, tão díspares em origem, tão próximos no que a origem traça de linha de rumo de encontro. Ilhéu atlântico e branco, mas ilhas são sempre igualmente ilhas, na formação do espírito. Angolana dos grandes espaços continentais, a respirar savana, mas que descobriu agora em ilhas tão bizarras a alma de toda a gente africana, metade da sua gente, com outra metade que fez na vida com gentes do mundo (e que mais não seja, o irresistível abanar de corpo na dança que vem lá dos dentros, seja merengue ou kizomba lá na terra da morena, seja coladera ou funaná em Cabo Verde).
Não podemos deixar de escrever sobre isso, mas onde e como? Para quem tem dois blogues, um de notas políticas, sociais, culturais, e outro de gastronomia (onde também cabe o lazer), é um desafio: em qual escrever isto ou aquilo? Claro que também "o gosto de bem comer" é o comer onde, como, quando. É comer saboreando a história. É cultura nossa e, em terras alheias, é o diálogo entre a cultura nossa e a dos nossos anfitriões.
A primeira entrada é fácil, vai aparecer em ambos, com algum desconchavo, porque ainda venho dominado pelo gosto de férias de pensar ligeiro, solto, em notas esvoaçantes. Como gosto muito de conversar com M. de la Palisse (ou com o antigo e venerando cabeça de abóbora), começo por dizer que Cabo Verde são ilhas. Mas não é patetice de todo. Os quatro pilares da Macaronésia fizeram-se de povoamento duro, nuns casos por europeus brancos, rudes e verticais, coisa ainda hoje marcante, Açores e Madeira; mistura grande nas Canárias; escravos negros em Cabo Verde, desde tempos em que, segundo livro do séc. XVII que lá comprei, havia 30 brancos.
No entanto, a miscigenação foi forte, passou por lá marinhagem diversa europeia - principalmente no ciclo económico do carvão para o Porto Grande - mestiço feito regado com grogue e, hoje, quase que se fica com a noção de haver uma tipologia física cabo-verdiana, embora diversa. Altos e magros, pele pigmentada de claro a muito escuro, mas frequentemente cabelos pouco encarapinhados, até olhos claros, anatomia da laringe com pouca guturalidade e falar doce (ao contrário da Guiné e Angola), corpos femininos de grande esbelteza, muitas vezes feições tão caucasianas que só a cor de pele trai. Da gente africana mais bonita que conheço.
Disse que são ilhas, também a lembrar-me de coisa minha de açoriano, a pluridimensionalidade, sobreposta, dos afetos. Primeiro Cabo Verde, mas depois a ilha materna. “Vieste de Portugal para Boavista para praia?” “Não, quisemos conhecer a tua terra, andamos antes uns dias em Santiago e em S. Vicente”. E aí, sorriso rasgado, ou "Santiago, minha ilha, é o máximo", ou "S. Vicente não é capital mas merecia, minha ilha”. Só um ilhéu tosco - como alguém insiste em pensar que este tratamento é o mais terno que há… - compreende outro ilhéu ainda mais tosco, de Santiago ou de S. Vicente. Já agora, ilhéu que tem quem lhe chame ilhéu tosco tem com isso quem tenha a intuição do que é a insularidade, tanto mar e tão pouca terra. Terra duramente conquistada, a exigir caráter. Lembram-se dos corvinos que foram a Angra falar com Mouzinho?
A paisagem mostra as diferenças de antiguidade vulcânica na Macaronésia (não falo das Canárias, que não conheço). Não é nada difícil ver-se logo que o magnífico Porto Grande do Mindelo é uma enorme cratera vulcânica semi-submarina. O Fogo obviamente não engana, como vulcão. Mais difícil é perceber-se que a Serra Malagueta em Santiago ou as suas montanhas já muito carcomidas pela erosão, deixando magníficos recortes de rocha, imaginação de escultor, são restos de vulcões. O que não engana é o omnipresente basalto e as magníficas hematites, em todos os tons de vermelho.
Aliás, é o mesmo na Madeira. Fora algumas formações do litoral (Câmara de Lobos, Machico), qual é o amador de geologia que apostará em que os grandes picos, Ruivo e do Areeiro, são vulcânicos? Nada comparável com as crateras jovens e suas lagoas das minhas ilhas açorianas.
Não posso continuar sem referir o que direi mais tarde e depois. Um país, “nôs tera”, é a sua gente. E, tanto quanto conheço razoavelmente África, Cabo Verde é um exemplo. A gente, muita, com quem falei, só podia andar de chanatas e vestir modestamente. Mas tinha um considerável nível de educação, de articulação de conversa, de observação e de reflexão crítica sobre a sua sociedade. E um evidente patriotismo e orgulho nacional, coisa que não fica mal a ninguém.
Desgostou-me só, mas compreendo, o esquecimento ou ignorância do passado, mesmo que recente. Até a memória de Amílcar Cabral me pareceu um pouco esfumada. A visita a Chão Bom é um episódio de passagem, quase uma curiosidade turística, numa volta pelo interior montanhoso de Santiago - muito bonita com a vegetação húmida a contrastar com a secura das zonas baixas. Embora visitantes como nós verguem por igual a cabeça à memória de presos portugueses e africanos, o campo evoca hoje muito mais a reabertura por Adriano Moreira para os presos dos anos 60, dos movimentos de libertação, do que a geração de três décadas antes, dos portugueses, em especial dos que lá morreram. Até, irmanados na morte lenta, os dois maiores adversários na política operária portuguesa, Bento Gonçalves, comunista e Mário Castelhano, anarquista.
NOTA - “nha cretcheu”: minha amada, minha muito querida.
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