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terça-feira, 14 de outubro de 2014

Ketchup não é só de tomate

Nunca estive em nenhum dos restaurantes de Heston Blumenthal, mas tento às vezes imitar as suas criações. Uma coisa excelente é o seu molho de cogumelos, com base num ketchup de cogumelos, tradição inglesa muito anterior à do hoje vulgar ketchup de tomate. 
O molho é elaborado, embora não difícil, com base num extracto de suco de cogumelos salgados. Para o molho base, Heston pica os cogumelos, que devem estar inteiros e frescos, para não terem entretanto perdido líquido, tempera-os com bastante sal, encerra-os numa musselina e deixa a pingar para uma tigela, torcendo bem o saco de vez em quando. Consegue-se um líquido abundante.
O problema é quando se quer fazer o mesmo com outros ingredientes mais secos, como tentei com a malagueta da minha ilha. Acabei por acertar com uma alternativa de molho base, que vem noutra receita clássica de ketchup de cogumelos, no “Complete Cook”, de J. Sanderson, um clássico anglo-americano publicado em 1846.
800 g do ingrediente X (já experimentei com malagueta, pimentão, cebola e alho, funcho, banana, maçã), picado fino ou moído com toques breves do liquidificador, 70 g de sal grosso, 30 g de pimenta preta, 15 g de pimenta da Jamaica, 1 c. sopa de aguardente.Misturar X e o sal, tapar e deixar 2 dias. Juntar as pimentas, passar para um frasco com tampa e ferver a banho maria, 2 horas. Coar por pano, apertando bem e passar o restante no pano por uma passador de puré, aproveitando ao máximo o suco. Juntar a aguardente.
A partir daqui, seja qual for X, pode-se seguir a receita geral de Heston:
6 dl de vinho tinto, 3 dl de vinagre de vinho tinto, 1 chalota picada, pimenta preta, cravinho (ou pimenta da Jamaica), noz moscada, 2,5 dl molho base, 2 c. sopa de maizena diluídas em 1,5 c. sopa de água fria.Reduzir tudo, menos a maizena, até 1/2 ou 2/3. Engrossar a lume baixo com a maizena. Juntar os cogumelos (ou X) marinados, escorridos.Cogumelos marinados: aquecer 1,5 dl de vinagre de vinho tinto e 60 g de açúcar, até derreter o açúcar. Marinar 24 horas com esta calda 120 g de cogumelos laminados. Para além der se usar para o Ketchup de cogumelos, vão muito bem para outros usos.
Com os restos secos do molho base, bem escorridos, faço uma pimenta. Junto pimentas a gosto (essencialmente preta e da Jamaica), em boa quantidade, levo tudo a secar no forno e moo num homogeneizados potente.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Uma salada de tom oriental

Acontece-me andar pelo supermercado e comprar coisas porque me apetecem, porque logo hei-de arranjar forma de as usar, mas, às vezes, acabarem por se estragar. Ontem ia sendo assim. Dou exemplo porque mostra que há sempre forma de se inventar uma coisa simples mas engraçada, com alguma ideia, e também porque, sendo uma salada, vai bem nesta época. Aqui vai então uma salada de rebentos de soja.
Para duas pessoas. 300 g de rebentos de soja, 6 folhas tenras de alface, 1/4 pepino, de bacon, 80 g de cogumelos shitake, 50 g de bacon ou de toucinho fumado. Molho: 2 c. sopa de sake, 2 c. sopa de molho de soja, 1 c. sopa de mirin, sal, pimenta, gengibre, piripiri.Lavar os rebentos e as folhas de alface e ferver em água já a ferver, um minuto. Levar com água fria e reservar. Cortar o bacon em tiras estreitas, ao longo da largura e alourar moderadamente em margarina dietética de cozinha. Escorrer bem, secar com papel absorvente e juntar aos legumes. Cortar os cogumelos aos quartos e saltear num fundo de óleo, a lume alto, mexendo bem, retirando quando ainda estiverem crocantes. Juntar à salada. Levar ao frigorífico até arrefecida mas retirar cerca de 15 minutos antes de servir. Preparar o molho, juntando todos os ingredientes. Embrulhar a salada no molho.
Mesmo os ingredientes do molho se encontram facilmente num bom supermercado, por exemplo na secção de cozinhas exóticas. Se não houver sake, não faz mal um vinho branco ligeiro e o miri pode ser substituído por um vinho licoroso.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Bife à café de Alfragide

Está longe de ser a primeira vez que escrevo sobre bife. Vale a pena mais? Certamente, porque quem não gosta de um bom bife e ganha com alguma troca de impressões e de experiências sopre esta coisa culinária tão simples e tão difícil? Vou por todos os bifes. Os meus favoritos são o bife à Marrare, o seu primo à café e o regional micaelense, mas não desdenho qualquer dos outros tradicionais portugueses, um bife com pimenta ou qualquer bom bife simples de óptima carne desde um T-bone a um bife argentino no churrasco.

Relembro o essencial. O bife à Marrare é um bife do pojadouro ou da alcatra frito em manteiga, juntando-se alho. Retirado o bife, acrescenta-se mais manteiga, tempera-se com sal e pimenta e faz-se o molho com leite. Acrescenta-se sumo de limão. Pode-se enriquecer esta receita, como faço, usando carne de melhor qualidade, rejeitando a gordura de fritar e fazendo o molho com leite e nata.

O bife à café é frito, genuinamente, em manteiga com alho. Junta-se mais manteiga fresca à manteiga de fritar os bifes e três colheres de sopa de leite em que se dilui uma colher de café de maizena ou fécula de batata. Deixa-se ligar mexendo sempre e acrescenta-se sumo de limão e uma colher de café de mostarda. Costumo usar um pouco de cerveja para levantar os sucos caramelizados, antes de juntar o resto para o molho. Também tempero com pimenta preta e pimenta da Jamaica, esmagada, e uma ponta de massa de malagueta micaelense.

O bife à micaelense (ou bife à regional)é um bife de lagarto (lombo, na nomenclatura micaelense) simplesmente frito em manteiga, com muito alho e uma tira de malagueta, fazendo-se o moinho com um pouco de vinho branco a levantar bem os sucos. Antes de fazer isto, costumo rejeitar cuidadosamente a manteiga de fritar, substituindo-s por manteiga fresca, sem se perderem os sucos. Também prefiro barrar o bife com massa de malagueta em vez de a usar em peça e tempero também com pimenta preta.

Hoje, não vou apresentar nenhuma criação especial. É apenas uma troca de impressões, na sequência de um bom almoço há dias, feito com esmero: uma variante pessoal de bife à café, a que, por ter sido feita em casa, chamei ambiguamente de bife à café de Alfragide.

Bife

Como não o faço todos os dias – até por restrições dietéticas – acho que um bom bife vale uma boa carne, mesmo em tempo de vacas magras. Pode-se usar outras carnes, as que os talhantes muitas vezes vendem quando se pede apenas carne para bife, como pojadouro, alcatra, acém comprido ou redondo, tudo carnes de primeira. Eu vou só pelo lombo (nos Açores, lagarto) ou pela vazia. No caso do lombo, prefiro que me cortem os dois ou três bifes de 2 cm de espessura que dá a cabeça do lombo, em vez dos bifes tirados da cauda do lombo. Os primeiros dão um corte mais transversal às fibras, ao passo que quanto mais estreita o lombo mais inclinado tem de ser o corte.

Não tenho pressa em os utilizar. Três ou quatro dias no frigorífico só lhes faz bem. Claro que também não os bato. Um bife de lombo que necessita de ser batido é estranho. Para fritar, ao contrário do que é moda dietética, prefiro manteiga a azeite, que, para meu gosto, dá ao bife um gosto enjoativo. Muita gente julga o contrário, mas não há prova provada dos alegados malefícios da manteiga, em pequena quantidade, como a que se usa só para fazer fundo da frigideira. Em todo o caso, mas também sem indiscutível fundamento, pode-se substituir a manteiga por margarina dietética de cozinha (não de barrar!).

Como toda a gente sabe, o aspecto crítico é o ponto da carne. Habitualmente, fala-se de mal passado (“rare”, para quem pedir no estrangeiro), ao ponto ou meio passado (“medium rare”) e bem passado (“well done”). Eu acrescento o um quarto de passado), em que o interior está bastante rosado e mole mas o bife já não deixa escorrer o suco sanguinolento. Quanto a tudo isto, é difícil de instruir com exactidão, porque depende muito do lume, do peso e espessura do bife e até da própria frigideira e das suas características térmicas. 

A título meramente indicativo, um bife mal passado está pronto ao fim de 3 minutos (metade de cada lado); um bife ao ponto ao fim de 2 minutos de selagem de cada lado e mais cerca de 3 minutos de fritura a menor temperatura; um bife mal passado é selado de cada lado durante cerca de 4 minutos, fritando a menor temperatura durante mais 6 a 8 minutos. Um truque é o de se avaliar do ponto pela consistência quando se pressiona o bife, comparando com a consistência da eminência ténar, a zona da mão que une o polegar ao pulso. Experimentem avaliar a sua consistência quando se une a ponta do polegar à ponta do indicador, do médio ou do anelar. Vai ficando cada vez mais dura. A primeira é do bife mal passado, a segunda do ao ponto e a terceira do bem passado.

A técnica mais fidedigna é a de medição da temperatura interior, por meio de um termómetro de agulha. Pode parecer estranho eu falar de tal instrumento, como se não fosse coisa de amador. De facto, é aparelhinho bem barato e que devia haver em todas as cozinhas. Veja-se a sua utilidade em assados. As temperaturas que indicam os três pontos – mal, médio e bem – são, respectivamente, 45º, 60º e 70º. O meu ponto é de 50º. Para verem qual o vosso e poderem sempre reproduzir a confecção, meçam a temperatura de um bife a vosso gosto imediatamente antes de o tirarem da frigideira (se o fizerem já no prato não é fiável, porque a temperatura continuou a subir).

Há outra coisa em que não sigo a técnica habitual, indo mais pelo uso mais recente. Tradicionalmente, selava-se o bife de uma só vez, primeiro de um lado e depois do outro, a lume forte. Depois, baixava-se o lume ou até se podia levar ao forno pré-aquecido a 140-160º. Eu dou-lhe uma fritura mais uniforme e sem ficar muito crestados seco por fora, sempre a lume alto, mas virando a cada meio minuto, desde o início.

Finalmente, duas coisas bem sabidas: sal já com o bife meio feito ou mesmo no fim, e flor de sal. Dar tempo ao bife, num prato fora do lume, para deixar sair o resto do suco, que se aproveita para o molho.

Molho

Reduzi a metade 2 dl de vinho branco com 2 dentes de alho laminados, uma haste de tomilho e só um pouco de folhas de estragão, bem como 6 grãos de pimenta preta e 4 de pimenta da Jamaica. Numa caçarola, a lume baixo, tostei 1 colher de sopa de farinha, mexendo bem, até ficar bem dourada mas não queimada. Deixei arrefecer e misturei bem com a redução de vinho e 1 dl de leite aquecido, levando a lume baixo e mexendo com varas até ficar aveludado muito espesso. Juntei 1 colher de sopa de geleia de carne (porque a tenho sempre, feita por mim pelo menos uma vez de quinze em quinze dias; de outro modo, pode-se usar 1 dl de caldo de carne bem concentrado) e deixei fervilhar, a aveludar, juntamente com o suco entretanto libertado pelo bife. Corrigi a espessura e os temperos e, no fim, sal (cuidado com o sal da geleia ou do caldo), 2 colheres de chá de mostarda, 2 colheres de chá de molho Worcestershire (molho inglês) e sumo de limão, a gosto.

Batatas fritas

Como mandam as regras, uso farinhentas, com alto teor de amido (Astérix, que eram as que tinha em casa, mas também Agria ou Desirée). Ao contrário do que se julga, não é obrigatório que tenham casca vermelha; por exemplo, as Agria são amarelas. Essencial é o grossura dos palitos, 1,2 cm e lavá-las muito bem.

Sempre fiz, como julgo que quase toda a gente, simplesmente introduzir as batatas numa fritadeira com temperatura regulada para 180º ou numa frigideira com óleo bem quente (o truque de um pedacinho de miolo de pão ficar dourado). Modernamente, os bons cozinheiros fritam em dois passos, primeiro a 150º, cerca de 5 minutos, escorrendo as batatas e acabando de as fritar, antes de servir, em óleo mais quente, a 180º. Ficam mais cozinhadas no interior e estaladiças por fora. Faço sempre assim, com muito bons resultados.

Mas se costumam ser bons, desta vez foram óptimos, seguindo a técnica de fritura em 3 passos de Heston Blumenthal: bem cozinhadas por dentro, com bela textura, e bem estaladiças. Dá trabalho, mas nunca tinha comido batatas fritas tão boas. Começa-se por se semicozer as batatas em água sem sal, só a fervilhar, durante 20 minutos. Depois de escorridas, vão ao frigorífico durante uma hora. O resultado é tornar a superfície dos palitos porosa, para deixar penetrar mais gordura no passo seguinte, de fritura a 130º, durante 5 minutos. A fritura seguinte é como na técnica anterior, a 180º. Nesta experiência, não confiei no termos tato da fritadeira e usei um termómetro de altas temperaturas para xaropes (não é o de baixas temperaturas que usei para o bife), controlando com cuidado a escala da placa de indução para manter estável a temperatura. Foi requinte de primeira vez, dá muito trabalho. Usarei a fritadeira, depois de testar se o seu termostato funciona bem.

Esparregado

Outro acompanhamento vulgar de bifes, e à medida das minhas necessidades dietéticas. tenho pouco a dizer. Faço-o frequentemente com espinafres mas o meu favorito, hábitos açorianos, é de nabiças. A técnica é básica. Usar só as partes verdes das folhas, escaldar durante um minuto em água sem sal a ferver bem, escorrer e lavar, ferver durante 15 minutos em água com sal, a ferver alto, com a panela destapada (uma colher de chá de bicarbonato de sódio ajuda a avivar o verde). Para saltear, o azeite, em pequena quantidade, é previamente aromatizado com alho laminado, a baixa temperatura para não queimar, e que se retira depois. Antes de saltear, as folhas de nabiça são picadas com duas facas, nunca de forma mais violenta (moinho ou misturadora). Para amaciar, nata qb. Pimenta branca e um pouco de preta, moídas a fresco, e é tudo. Como toque pessoal, gosto de polvilhar com amêndoa ralada grosso, para contrastar com o amargo.

E é tudo. Bom proveito e, em troca, mandem a vossa receita de bife à café de onde seja lá que for.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Salada de camarão com molho a evocar thermidor

Já sabem que não é regra deste blogue publicar receitas. É de gastronomia, não de culinária, muito menos de folheto de supermercado. Mas às vezes justifica-se, quando me sai alguma coisa mais inventiva ou bem conseguida.

Hoje vai uma salada (ou cocktail) de camarão. Sou do tempo em que eram excelente novidade, em marisqueiras (Solmar) e até em coisas despretensiosas mas que inovaram, como o Noite e Dia e o Galeto. Muito simples, alface ripada, camarões e molho cocktail (maionese, ketchup, nata, molho inglês, piripiri, uisque e vermute). Perdeu-se, “oh simple thing”. 

Continuo a fazê-la, mas apeteceu-me variar o molho.  Saiu coisa a evocar thermidor, o mês cujo dia 9 (27 de Julho de 1794) não me agrada muito. Mas há outra boa coisa também a evocar thermidor, e que me serviu de inspiração, mesmo que bastante à distância. Os leitores que se lembrem. Vai a receita desta minha salada no sítio habitual.

NOTA – Por razões que compreendem se forem ver a sua página de Facebook, e falando do 9 thermidor, esta receita é dedicada ao João Carlos Graça.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Olha-se e experimenta-se

Já muitas vezes, e até no prefácio do meu livro Gosto de bem Comer, deixei homenagem à minha principal raiz gastronómica, a minha avó Adélia, de solteira Adélia Guiomar Fagundes, família de pequena aristocracia rural, “sociedade bem” praiense em que o património culinário era muito considerado. Simplesmente, a minha avó ia muito mais longe, porque foi uma grande criadora, principalmente em pastelaria, com fama por toda a ilha.

Mesmo em coisas icónicas, como a alcatra terceirense – cuja receita de família, hoje minha e dos meus irmãos, julgo não ter rival, e os três a fazê-la muito bem, em variante rica de carne e vinho de 1ª, com muita técnica exigente – aventurava-se por sugestões das amigas, de que tinha de “dar fé” [*], nem que fossem, que me lembro, uma alcatra com linguiça e outra com canela, com a minha mãe a repreender, “lá se foi tão boa carne”.

O melhor exemplo, lembro-me tão bem, foi quando o meu pai, um dia, comprou uma novidade, línguas de bacalhau, que não se vendiam nos Açores. Como fazer aquilo? Para a minha avó, nada mais fácil. Língua é língua. Na nossa família, língua de vaca é de fricassé, e assim ficou a receita familiar de línguas de bacalhau em fricassé. Curioso é que, muitos anos depois, vim a descobrir que é uma forma, embora não muito vulgar, de as cozinhar na cozinha burguesa continental.

A que vem isto? Aqui na cidade ao lado, Amadora, hoje mais encantadoramente de pretos que de brancos, mesmo do outro lado da estação, há uma boa mercearia só de produtos exóticos, africanos, brasileiros (anote-se: o único sítio em que encontro hoje carne seca para a feijoada) e agora até ucranianos. Há dias, havia uma coisa que não conhecia, o jiló. Parece quiabo, mas é redondo e mais curto.

Como fazer aquilo? Hoje tenho a net, que a minha avó não tinha, mas nenhuma receita me convenceu, embora a leitura tenha sido útil para ficar a saber de algumas características da coisa (por exemplo, como o quiabo, precisa de demolha). Aqui fica então o estufado de jiló com farofa.
2 pessoas. 500 g de jiló, 3 dentes de alho, 2-3 c. sopa de azeite ou óleo, 80 g de charque (ou bacon), 1 dl de leite de coco, coentros, sal, pimenta, piripiri. 1 cebola, 150 g de farinha de mandioca grossa, 4 c. sopa de óleo de palma, 2 c. sopa de leite, 2 ovos, sal, pimenta. 
Cortar os jilós em quartos e deixar libertar o “ranho” em várias mudas de água quente. Se se usar charque (carne seca), demolhar. Alourar o alho laminado no azeite ou óleo e saltear o jiló, cortado aos quartos. Molhar com o leite de coco, temperar e estufar. Refogar em óleo de palma a cebola picada e saltear com a mandioca entretanto amolecida com leite. Misturar com os ovos batidos, incorporando a lume baixo e temperar.
[*] O “dar fé”, expressão açoriana para se conhecer alguma coisa pela primeira vez, era coisa muito característica da minha avó. Muitas expedições de dar fé combinava ela coma Ascensão, memória querida da minha casa de criança. E quantas vezes a minha avó, já toda branca, se queixava de que o genro tão amigo ainda não a tinha levado a “dar fé” do que era um jogo de futebol? Para o meu D, sempre reservado e meu grilo criticamente falante, eu estou a violar a nossa privacidade de família, mas eu sei que isto também lhe puxa pela lágrima.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O Natal merece cozinha elaborada

Cá vai mais uma das minhas francesices. Daqueles que me fazem valer a alguns bloguistas a acusação de eu ser um pretensioso, todo esquisito na cozinha, que deve ser é forte e bruta, rústica e caseira, mesmo que um pouco aligeirada, porque ser moderno e bom cozinheiro é só isto, ficando o resto para os profissionais. 

Mesmo assim, aceito que alguns deles, variando coisas tradicionais que fizeram a sua cozinha de infância, como me aconteceu a mim, fazem bom trabalho. Fazem incomparavelmente melhor do que as tias que rasgam para levar para o blogue as folhas da revista do cabeleireiro. Mas criar com arte é outra coisa, perdoe-se-me a imodéstia. Admito que seja “twilight zone” culinária, porque fica entre amador tosco embora bem intencionado e especialista profissional. 

A minha consoada é tradicional, do lado transmontano da morena. Polvo frito, sopa de bacalhau com ovos em fio, bacalhau com todos. Como era para ser cá em casa, preparei uma ementa que acho interessante. A cada prato tradicional seguir-se-ia um miniprato de cozinha moderna, minha, baseada nele. Afinal, não vai ser assim, mas provavelmente publicarei o que seriam esses pratos de cozinha elaborada.

Fica o jantar de Natal, que, na minha tradição açoriana, é o momento máximo das festas. Era só a canja e a galinha recheada, que depois virou peru, que depois virou capão e que hoje, com a retração da família dispersa, virou novamente galinha. O bacalhau não tinha tradição de meninos Costa, até eu consagrar muitos anos depois, como ícone natalício, o bacalhau à Conde da Guarda, genuíno.

Da galinha recheada não vou dizer nada, creio que já escrevi sobre ela vezes e vezes, desde o meu livro “O Gosto de Bem Comer”. Hoje fica só nota para inovação de Natal, “Consomê de lambujinhas aromatizado com champanhe e sabor a bicho de pena”. Dir-me-ão que é maluquice, que “perdi” horas e horas, mas acho que valeu a pena. Cozinha de meia-bola-e-força, mesmo que “inovadora” em relação à tradicional, é muito boa, mas, para outros esforços maiores e para quem é capaz, há dias únicos no ano. Aqui fica a receita, no sítio habitual.

P. S. (26.12.2012) - provável sinal de cansaço de azáfamas festivas, a receita saiu toda mal na minha página de receitas. Só agora vi e corrigi. As minhas desculpas.

domingo, 11 de novembro de 2012

Outra vez o bife à café

Muito tenho escrito aqui sobre o bife à café (não é bife com café!). Hoje, é coisa que se come ainda em algumas cervejarias tradicionais ou cafés-restaurantes como o Nicola ou o Império. Na grande generalidade dos restaurantes de bairro, come-se o “bife da casa” – seja lá o que isto signifique – ou o habitualmente execrável bitoque.

No meu tempo de jovem estudante, o bife era essencial, era o luxo que nos permitíamos depois de uma reunião associativa bem frutuosa. Como muitas dessas reuniões eram na minha casa, na então Av. 28 de Maio, no prédio depois famoso pelo caso Casa Pia, de que nunca suspeitei, lá íamos ao José Ricardo, na Av. da República. Não era grande coisa, mas era notável em relação qualidade preço: um bom bife por 12$50 (hoje 6 cêntimos!). Perto também havia o 1º de Maio. De resto, mais uns icónicos, a sobressair a Portugália, então só na cervejaria original na Almirante Reis. Com o terraço com cinema, coisa magnífica.

O bife à café tem muitas variantes porque a sua origem tem pouco mais de 100 anos. Antes, o que se comia nas tascas anexas aos talhos era um simples bife frito em banha, muitas vezes com alho e louro, "à cortador". Temperos e presunto vieram depois. Também era assim na minha terra, e até hoje, mas, lá, juntando malagueta e desglaciando com vinho branco.

A grande inovação veio com o bife do Marrare do polimento, na R. dos Sapateiros, afrancesado, com pimenta preta e nata. Caiu no gosto dos seus frequentadores de ceia depois do S. Carlos, sabia-lhes ao que Fradique escrevia nas suas cartas, só não entrou no jantar oferecido por João da Ega ao cornudo do Cohen porque bife não era coisa requintada para jantar de gente bem educada e no Hotel Central.

Mas bife com natas era coisa amaricada e carota para o cliente de taberna. Daí vem a sua adaptação a bife à café. Bifes à café há muitos, mas podemos definir o essencial: à manteiga de fritar o bife junta-se farinha ou fécula de batata diluída em leite; tempera-se com mostarda e sumo de limão. Claro que sem café, “à café” e “com café” são coisas bem diferentes. Como receita básica, é tudo. O resto é aquilo em que se vê o artista.

O meu artista de hoje estava mal inspirado. Fui ao Relento, em Algés, boa catedral de bifes da minha juventude. Tinha ido lá há um ano ou mais, mas a morena moderou-me, “está muita gente, talvez seja a razão da má qualidade”. Hoje não havia razão, almoço com o meu filho em sala vazia. Opinião unânime de dois: boa carne (creio que alcatra), grande quantidade (talvez 300 g), ovos de fritura impecável em equilíbrio de gema e clara, boas batatas fritas. Mas molho execrável, farinhento, a saber só a mostarda de má qualidade, nem Savora devia ser. Só água, nada de sabor de leite. Nada do fundo de fritar o bife.

Para não me acusarem de falar de poleiro, aqui fica a minha receita.

À MARGEM – Vai sair coisa brejeira. Há muitos anos, ainda eu andava pelos lados de Entrecamos, is muito a um restaurante banal, de "barra", ali na zona. era seu frequentador um pândego, miserável mas muito composto e de porte digno, que só jantava uma taça de arroz doce, não tinha dinheiro para mais mas também não pedia. O que fazia sempre era lastimar-se para os vizinhos do banco ao lado: "nesta altura é que me lembro daquele ordinário do meu capitão: saia lá esse cabrão de bife com as putas das batatas fritas!"

domingo, 28 de outubro de 2012

Cozinha e música

Tenho receitas em que só uso três ou quatro ingredientes e condimentos. Tenho outras em que combino muito mais coisas. São dois estilos de cozinha, um minimalista e de valorização de combinações muito simples de sabores, outro mais complexo, mais difícil, para mim mais desafiante para dar música sem dar ruído. O primeiro está mais na moda, o segundo é neo-clássico, a lembrar a velha cozinha francesa. O primeiro é de música de câmara, o segundo de música sinfónica. Não vejo razão para se dizer que um é melhor do que o outro.

Vem isto a propósito do meu almoço de hoje, de coisa banal, pernil de porco fumado. Com ele, posso fazer uma bela sandes (como levarei amanhã para o almoço), um prato frio simples a valorizar o sabor do pernil fumado, ou, como fiz hoje, um prato mais clássico, mais sinfónico. Vai hoje, no sítio do costume, essa receita sinfónica de pernil, cozido e depois crestado no forno, bem condimentado. Para a próxima, será um pernil ao estilo de quarteto de cordas. 

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Hoje há receita


Hoje, excecionalmente, vai receita. Vivendo à cigano desde há duas semanas, tropeçando em caixotes, em mudança de casa, sem saber onde estão os meus queridos instrumentos de cozinha, estamos a comer à bárbaro. Não obstante, ainda fomos imaginando coisas com o que havia à mão e delas lavrei auto, para recordação saudosa na ternura de velhos, mas não se justifica publicitação.
Diferente foi este fim de semana da grande refeição inaugural. Amanhã, morena manda, será de tom angolano, agora foi açoriano e temático. Lembrei-me da minha origem remota sefardita de exportador de laranja, mas de que muito mais importante nesse ciclo da economia micaelense foi a colónia inglesa. Em sua homenagem, preparei este Wellington açoriano de galinha com fricassé de legumes. Fricassé, coisa que tanto marca, com tantas variações, a minha cozinha de família praiense. Digam de vossa justiça.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

A melhor sopa de mariscos do mundo


A cultura dos óscares invadiu tudo, desde os “rankings” das universidades às 7 maravilhas de tudo ou nada, ao melhor bolo de chocolate do mundo, etc. Claro que tudo isto é marketing e não é para levar a sério, exceto quando vejo envolvidos em coisas destas pessoas muito respeitáveis, que admiro.
Por exemplo, porque se envolve distinta figura numa campanha de excecionalização da nossa cataplana, afinal um “wok” com tampa, que pouco adianta à técnica culinária, até pelo contrário - é aproveitada por todo o Algarve turístico para coisas de muito má qualidade? Porque desafia patrioticamente toda a chefia restauradora para inventar - muito mal e à matroca - coisas para um instrumento, essa cataplana, que é muito exigente e de forma alguma popularizável como coisa a usar por alguém ignorante a “cozinhar à portuguesa”?
A última é “temos o melhor peixe do mundo”. Começa por esquecer o que quer dizer o “nosso (?)” peixe, numa ZEE enorme. É o peixe que o que resta da nossa frota vai pescar a Marrocos e à Mauritânia, quando não consentido na Galiza e no golfo da Biscaia? É a pesca artesanal, nas 10 milhas tradicionais, cujo produto hoje quase só se adquire quando se vai à lota? Ou é o excelente peixe açoriano, que pouco se vende cá porque as traineiras o passam na maioria, em alto mar não fiscalizado, para os navios pesqueiros de Vigo? Quanto peixe execrável Pescanova do capitão Haddock é o nosso “melhor peixe do mundo” maltratado?
Nas peixarias, o rótulo habitual é “Atlântico norte”. O que é que isto me diz? E quando eu tenho de dizer a amigos apreciadores que isto tanto pode querer dizer uma excelente abrótea açoriana, carne firme a lascar, ou essa coisa molenguenta que por aí se vende com nome idêntico, posso dizer honestamente que temos o melhor peixe do mundo? E temos o melhor carapau do mundo? A banalidade do carapau branco que aqui se come, o Trachurus trachurus, ou o carapau azul açoriano, o “charrinho”, o Trachurus picturatus? E o atum português é o melhor do mundo? O atum algarvio banal ou a albacora açoriana? Os navios japoneses ao largo é que decidem.
Pronto, temos sempre o melhor do mundo. Isto justifica-me dar a receita de uma coisa minha que acho a melhor do mundo ;-), uma banal sopa de marisco. Mas é a melhor do mundo, decreto isto, "trincando uma perninha de frango ou de galinha", com o mesmo direito que tem quem acha que o nosso peixe é o melhor do mundo ou que temos o melhor bolo de chocolate do mundo ou os melhores queijos do mundo (garanto que já li esta dos queijos, avalizada pelo grande perito Marinho "e" Pinto!). Ridículo e pretensioso!

A receita vai no sítio do costume. Aceito que logo a sua leitura seja um susto, que trabalho! Não é assim tanto e vale a pena. É claro que receberei tantos protestos quanto a “o melhor do mundo” como deviam receber pessoas que respeito mas que alinham nestas coisas primariamente patrioteiras.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Cozinha angolana

Este fim de semana, para amigos especiais bons apreciadores, vai haver pirão, coisa emblemática da cozinha angolana, principalmente na zona costeira da área quimbunda (entre Catete e Cuanza). Vou excecionar, como dizem os ngolas, a minha regra de aqui não dar receitas. Devo esta exceção ao que tenho aprendido de bem comer tropical com a morena. 
Morena manda, quando tem memória mesmo que vaga de quatro gerações naquela terra, coisa que se intui e se sente com aroma de cravo e canela, também, em noite de poemas de Lorca, a confundir morena à Chico de chocalho na canela (e de família da Catumbela...) com morena cigana filha de feiticeira parida de lua cheia "preciosa en el aire" (ponham as vírgulas onde acharem melhor). 
E a lembrar que até o pateta (seria?) do D. João VI, comendo uma perninha de frango ou de galinha, decretou que a morena de Paquetá valia mais do que a Carlota Joaquina. “Porque eu sei e eu decreto que a morena é boa”.
Passemos ao sério, já chega de desvarios. A cozinha angolana não é muito variada, atendendo à enorme área do país e à existência de três etnias principais (bacongos, quimbundos, ovimbundos). Vive essencialmente do ubíquo óleo de palma, dos legumes do “lavra” (mandioca, batata doce, quiabos, abóbora, tomate levado do "puto"), do gindungo (piripiri), do amendoim (ginguba), da folha de mandioca (quizaca) - às vezes substituída pela da batata doce, menos amarga. Sobre esta base, a galinha doméstica, o cabrito selvagem ou a capota, no interior, o peixe fresco mas principalmente seco e salgado, no litoral.

Rei dos peixes secos é o cacusso (na foto), "kikuzo" em quimbundo, um peixe de laguna ou de foz de rio, de água entre salgada e doce, que os turistas que vão a Israel e almoçam em Tiberíades comem obrigatoriamente como preciosidade local, o "peixe de S. Pedro".

Como disse, pirão, ó coisa simples e tão boa, e sem precisar de nada que não encontrem no supermercado do costume. Peixe, com a respetiva sopa de peixe acompanhada com farinha grossa de mandioca a embeber com o caldo. Parecido, o muzongué, mais ao sul de Luanda, lá para Benguela. Mas talvez não seja assim tão simples, porque a nomenclatura das coisas básicas é traiçoeira, tão banais elas são que cada um diz como quer. Já ouvi chamar pirão ao simples funge, a papa de farinha de mandioca! Que, por seu lado, é funge porque feito simplesmente com água e com fuba (farinha), que sem mais nada é de mandioca. Mas também se faz funge com fuba de milho ou com mistura. Que confusão!
4 peixes pequenos, cacusso (cá, tipo cantaril ou redfish ou mesmo de pele escura, como o sargo, até a dourada); 2 dl de óleo de palma; 2 batatas doces grandes; 1 mandioca; 2 cebolas ; 3-4 dentes de alho; 2-3 tomates maduros ou 1 lata de tomate pelado; água (bastante, cerca de 1,5 litros); sal q. b.; gindungo q. b.; 300 g de farinha de pau grossa.
Refogar moderadamente a cebola e o alho picados no óleo de palma, acrescentar o tomate sem peles e sem sementes cortado aos bocados, acrescentar cerca de 1,5 l de água. Levantar fervura e juntar o peixe cortado em postas. Temperar. Cozer, cerca de 15 minutos, sem deixar desfazer o peixe.
Separadamente, cozer a batata doce e a mandioca, aos pedaços, escorrer e servir à parte.
Torrar a seco a farinha, num tacho e embeber com o sobrenadante gorduroso do caldo, colhido cuidadosamente com uma colher, sem ficar em papa.
Come-se o caldo e o peixe, em prato de sopa, temperando com sumo de limão. A farinha é servida ao lado e vai-se comendo à colher, molhando na sopa.

P. S. - Em homenagem a uma avó Mariana que lá está em cima conversando com outra avó Adélia sobre os predicados gastronómicos da neta e do neto.

sábado, 28 de abril de 2012

Conhecem Múrcia?


Estive uns dias em Múrcia. Já lá não ia há trinta anos, e como as coisas mudam. Hoje uma cidade desenvolvida e agitada. Antes, nessa tal vez, lugar de uma inesquecível memória minha negativa. Em Agosto, com calor insuportável, passei por Múrcia, em viagem de Córdova (ou Granada? Já não me lembro) para Cartagena. Lá cheguei a Múrcia por volta do almoço, apertado de fome e de outra coisa que adivinham. Aliviar a fome, impossível naquele poço de calor todo a dormir a sesta, nada aberto, nem uma sandes em loja de estação de serviço. Quanto ao outro aperto, não digo como me desenvencilhei. Só tive tempo para um olhar para a fachada da catedral, que confirmei agora ser o mais magnífico exemplo do barroco na península.
Múrcia é uma região autónoma. Dizem-me amigos meus, por piada, que quando se desenharam as autonomias, foram inquestionáveis as nacionais, até com língua própria, Catalunha, Galiza, País Basco. A seguir, outras muito respeitáveis, Castela a velha, Aragão, Estremadura, Andaluzia, os arquipélagos, etc. Toda a gente estava feliz até que repararam que havia no mapa um sítio em vazio, que ninguém queria: Múrcia, que lá ficou com a sua autonomia.
Em alguns dias, consegui conjugar o trabalho com alguma experiência gastronómica, graças à excecional hospitalidade de Joaquín Hernández, da U. Católica de Múrcia. “Insinuando-me” como apreciador junto de chefes de mesa, que num caso até me levou ao de cozinha, fiquei a conhecer alguma coisa da cozinha murciana, que me era alheia.
É uma cozinha rústica e simples, mas saborosa e principalmente com excelente qualidade de produtos hortícolas (por exemplo, o seu pimentão é excecional). É um deserto, quentíssimo e seco, mas com rios e ribeiros que ainda hoje são muito bem explorados com recurso à velha tecnologia hidráulica dos árabes. Claro que também hoje, como se vê por toda a parte, o regadio é completado por muita estufagem. Com tudo isto, eles falam sempre da “horta murciana”.
Não posso dar registo extenso de muita coisa interessante que comi. Por exemplo, uns pastéis magníficos de massa folhada mas tão fina que mais parecia massa filo, e recheados de carne ou de peixe (comi ambos). Uma salada de ovo cozido passado por mandolina e apertado em bolo com tomate e pimentão picados e um pouco de vinagreta, coberto com filetes de anchova. Os tais pimentos recheados com refogado e carne picada, mais uma. Um arroz confecionado ao estilo do levante espanhol, neste caso apenas com carne de porco (de uma raça regional, derivada do porco preto). Peixe grelhado com molho de tinta de polvo ou choco, mais tomate e pimentão pisados.
Nunca tinha ouvido falar da “mojama”. Pareceu-me preparado exatamente igual ao bacalhau, salgado e seco ao sol, mas feito com barriga de atum. Aconselho aos pescadores de atum da minha terra. Servem cru, em fatias muito finas, de sabor muito forte. Excelente, embora, para meu gosto, um pouco enjoativo quando já se vai no terceiro prato! Comi acompanhado com fatias cruas de ovas de atum fumadas, que não conhecia. Também acompanhamento obrigatório, em toda a cozinha murciana, excelentes amêndoas
Deixo para terminar uma coisa “oh simple things!”, como diz o meu amigo Pedro Aniceto, a única coisa que aprendi a fazer por informação do chefe e que reproduzo tão fielmente quanto consegui anotar. É o “zarangollo”, que seleciono porque é só e simplesmente um produto da tal horta murciana.
Não tenho quantidades, adaptem: curgete, cebolo ou cebola com rama, ovos, azeite, sal. Nada mais. Picar o bolbo da cebola e a rama. Cortar a curgete em fatias finas, com ou sem pele, a gosto.  Alourar bem a curgete em azeite quente mas a lume médio, em frigideira, até perder bastante água mas sem tostar. Juntar a cebola e continuar a refogar, a lume baixo, temperando com sal. Cerca de 15-20 minutos depois, juntam-se os ovos, inteiros, não batidos! Disseram-me que era o segredo (afinal, a técnica dos “huevos rotos”). Só quando a clara já está coagulada mas a gema ainda líquida, é que se embrulha tudo, fortemente. Vi fazer, é muito fácil. Comi quente, mas disseram-me que também fica muito bem frio. 

P. S. (30.4.2012) - Almoço de ontem foi de teste, quando ainda vinha com as papilas a mandarem chispas de memória recente: "zarangollo", com uma boa mistura de chouriços murcianos. Não é para me gabar, mas creio que ficou excelente, mas só pela razão que disse. Por mais cuidada que seja a escrita de uma receita, só se consegue reproduzi-la fielmente de duas formas: tendo-a feito ensinado por quem sabe; ou logo a seguir a ainda se ter bem de memória os sabores e os aspeto. 

É coisa de que ainda falarei, a importância da memória gustativa. A mais da recolha de receitas, da inventividade, os grandes chefes sempre disseram que o essencial do seu sucesso era uma volta por outros restaurantes e o regresso com a memória viva, não escrita, dos pratos que provaram. Isto também devia valer paras os críticos. Há algum crítico que escreva sobre Mozart sem ter ido antes a Salzburg e trazer de memória a mais recente e inovadora interpretação?

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Truques e tricas - sopas (II - Caldos/fundos)

Continuando com as sopas, passo para coisa mais difícil, os caldos de base, tecnicamente ditos os fundos. Podem bem ser sopa mas são muito mais, base de molhos, líquido de estufados, para regar assados, muito mais coisas. Dava muita conversa, mas acentuo o papel de um fundo num molho. Em muitos molhos clássicos mas também modernos, o molho parte de um aveludado, que é um "roux" (farinha alourada em manteiga), diluída num fundo, como na banal técnica de um béchamel. 

Até me cai tão bem uma boa chávena de caldo, ao deitar! 

Hoje vou falar deles como sopas, o resto facilmente adaptam. Mesmo como sopa, há níveis diferentes: os caldos na maior exigência, tipicamente os consomês; os caldos acrescentados com mais coisas; as sopas de “substância”. Também, coisa ótima para muitos usos, caldos concentrados de caça ou de carne (mais facilmente se incluindo mão de vaca) dão geleia, depois de arrefecidos.
A importância do caldo é tal que uma das minhas receitas de maior sucesso é simplesmente um “patê” (quer dizer, uma coisa a ir ao forno envolvida em massa) de três carnes, galinha, porco, vaca, mas cada uma previamente cozida em caldo bem diferente e depois cortada em cubos e misturadas as três ("Gosto de Bem Comer", pág. 75). Saberá tudo ao mesmo? Garanto que não.
Ao contrário do que escrevi sopre as sopas de hortaliças ou legumes, defronto-me neste caso com uma maior dificuldade. Então, tudo era relativamente simples, mesmo com boa técnica. Por simples quero dizer duas coisas essenciais na vida de hoje: rápido (o que também quer dizer pouco trabalhoso) e económico
Um bom caldo de base (fundo) é o oposto. Em muitos casos, por exemplo para base de uma sopa “farta”, para um molho do dia-a-dia ou para um estufado ou guisado, é perfeitamente razoável que se recorra a um produto industrial de qualidade (já aqui chamei a atenção para uma nova linha de caldos, em gel, que não têm nada a ver com os cubos tradicionais). C’est la vie! Se vai oferecer um bom jantar “a deslumbrar”, que certamente lhe vai dar trabalho, não é o trabalho extra do caldo que vai pesar muito. Não o fazer pesaria muito mais na qualidade. 
O compromisso é o meu hábito: algum tempo de trabalho - com o meu pequeno consumo, basta-me uma vez por mês - para fazer uma boa quantidade de cada caldo que depois distribuo, concentrado, em doses adequadas e que congelo, em sacos pequenos de fecho hermético, que não ocupam tanto lugar como as caixas. Não perde qualidade, só exige é espaço de congelador. Já agora, um truque. Por vezes, preciso de menos do que cada dose congelada. Como se sabe, nunca se deve descongelar e voltar a congelar o resto. Mas, como faço, há sempre um ponto no micro-ondas que, sem descongelar, já dá para cortar a dose de que se necessita. 

Noutros casos, sei antecipadamente que, durante a semana, vou dar vazão a uma boa dose de caldo. Então, fica no frigorífico, onde se aguenta bem uma semana. Em casa de família, creio que será o mais adequado, pelo menos para o caldo de aves, o que vai bem com tudo, até num risoto de marisco (quem quiser que me peça a receita)!
Há quatro caldos de base, bem diferentes. Melhor, seis, porque os de aves/caça e carne desdobram-se em duas variantes, clara e escura. Os quatro são marisco, peixe, aves, carne. Vou esquecer o de marisco, porque, em geral, para mim, caldo de marisco é simplesmente a água de os cozer, sem qualquer tempero, quando muito reforçada com mais fervura do esmagado de cabeças e cascas.  Se tiver de o temperar, apenas tomate, salsa, açaflor, eventualmente um toque de estragão. 
Os outros só diferem naquilo que usamos como base e no que juntamos ao caldo. Vai a meu gosto e segundo o meu uso (habitualmente, como disse, concentrando bem e guardando no congelador, distribuído, para diluir na altura). Quanto a concentração inicial, coisa básica: num caldo, a água inicial é só a necessária para cobrir os sólidos. Levar à fervura, tapar, passar para lume baixo e cozer durante 20-30 minutos o de peixe, 30-40 minutos o de aves, 50-60 minutos o de carnes. Eu vou pelo tempo menor, para suavizar o caldo (exceto quando, propositadamente, o concentro, como disse).
Peixe (“fumet). Restos de peixes nobres (cabeças, espinhas, bem lavadas para não levarem nenhum sangue) ou peixe inteiro barato (carapaus, fanecas, etc.). Um pouco de azeite, cebola em rodelas (não inteira, porque o tempo de cozedura é curto), alho porro (idem), cogumelos, vinho branco, salsa, sal, pimenta branca. Acho que tudo o que vier a mais prejudica o essencial, o sabor suave do peixe. Abro exceção para um toque de funcho ou de aneto, que vai muito bem com tudo o que é peixe.
Aves. Miúdos de galinha - a meu gosto e para alguns usos acrescentando um fígado extra. Cebola (inteira), alho, alho porro, vinho branco, salsa. Mas a avançar mais do que o “fumet” e a sua salsa, também cenoura, pimenta branca e preta, pimenta da Jamaica, louro, tomilho, casca de limão e, no fim, sumo do dito. Em contrapartida, para meu gosto, os cogumelos são dispensáveis, notam-se pouco. No caso do caldo de aves, começa a entrar a variante claro-escuro. 

Se crescer uma carcaça de ave, podem levá-la ao forno a dourar bem, esmagá-la e juntar ao caldo, a escurecer, mas moderadamente. Há quem, para caldo escuro, também aloure no forno os vegetais, antes de os pôr a cozer. É gosto de cada um, faço no caldo de carne escuro mas no de aves acho que esforça o sabor. Claro que, em qualquer caso, é obrigatório aproveitar para o caldo os sucos da assadura, diluídos com um pouco de água quente. Evidentemente que tudo isto vale para o melhor caldo de aves, o de caça, obrigatório quando nos ficam sempre as carcaças de perdiz, galinhola ou codorniz depois do jantar. Esqueçam que os convidados podem ter levado as ditas à boca, a roer a carne. Fizeram muito bem...
Carne. Mão de vaca, mais alguma carne pobre (aba, cachaço, chambão), eventualmente chispe ou toucinho. Mais avanço nos sabores dos temperos: a mais de tudo o que ficou dito, mais alho, bastante aipo, cravinho espetado na cebola, pimenta preta só, não branca, salsa, tomilho, cerefólio, um toque de estragão (cuidado, tem sabor muito acentuado). Não obrigatoriamente, aguardente e/ou vinho generoso, Outra vez o claro-escuro, e aqui com maior importância. Para escuro, é só arranjar antes a mão e o chispe, levar os ossos ao forno a assar bem, se possível esmagá-los com martelo e só então juntar ao caldo. Juntar também uma fatia de osso buco, também ido ao forno e regressado ao caldo. Por vezes, se lhe vou dar uso posterior (porque frequentemente uso essas coisas depois de fervura, para suavizar), cozo à parte, só em água, um pedaço de presunto ou de chouriço e uso um pouco deste caldo para reforçar, ligeiramente, o sabor do caldo de carne, misturando a gosto. É o que faço também na sopa do cozido, porque não cozo juntamente as carnes e os enchidos.
Em qualquer caso, coisas de técnica básica. Atenção à água, não volto a dizer, e neste caso muito mais crítica! Depois, um caldo coze muita proteína, que coagula. É importante escumar com frequência. No fim, não basta separar os grados. Deve-se coar grosso e a seguir filtrar por pano ou papel. Para muitas utilizações, basta isto. Noutros casos, é desagradável ver-se ou comer-se a gordura, principalmente, para meu gosto, a gordura enjoativa da galinha ou do pato (porque, esqueci-me de dizer antes, também se pode fazer um excelente caldo de pato). Deixa-se no frigorífico umas horas e facilmente se remove com uma colher ou uma espátula (frias) a gordura solidificada, à superfície. Também se faz facilmente passando à superfície do caldo arrefecido papel absorvente.

Mais requintadamente, clarificar, tornar o caldo transparente, como deve ser um consomê. É voltar a cozê-lo, durante meia hora, com 2-3 claras batidas quase em castelo e com as respetivas cascas, esmagadas. Ter cuidado com o que daqui resulta em concentração do caldo, pelo que os temperos, principalmente o sal, só devem ser corrigidos no fim.
Que fazer com um caldo destes, assim requintado? Já não é questão de técnica, é de criatividade culinária. E já lá vai o tempo em que, em qualquer grande restaurante, eram emblemáticos o consomê, a terrina e o suflê, que demonstravam a maestria culinária e a inventividade quanto aos ingredientes.
NOTA - Passei um pouco por alto o caldo de mariscos, mas há uma dica importante. Mesmo que coma mariscos já cozidos, as cascas e cabeças ainda ficam com muito suco. Não vão para o lixo! Escorra bem e congele-as, antes ou depois de bem esmagadas. Se forem restos de um prato temperado (caril, etc.) comece por as lavar bem. Vão dar um bom caldo, quando se lembrar de as ir buscar esquecidas no congelador. Também uma base de "marisco à americana". Em alternativa, uma manteiga de mariscos. Esqueça que os convidados podem ter chupado as cabeças! Porcarias há muitas...

Por exemplo, e à baila. Há dias, num centro comercial com cinema, como é costume a minha mulher e eu fomos à casa de banho antes do filme, não fosse haver urgências depois. À saída, vinha indignada. "Olha, uma empregada de qualquer restaurante, não há dúvida, vinha de uniforme e avental, saiu da sanita e não lavou as mãos". O pior foi que, havendo ainda uns minutos para o seu único vício, lá quis a minha morena um café. Quem havia de lhe servir o café?... Eu ainda tentei ajudar, "repara que ela não tocou na borda da chávena". A sério, isto tem de ser dito às claras, porque protestei sem sucesso. Foi no Fonte Nova de Benfica, com uma empregada do restaurante da cave, junto aos cinemas. 

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Outra vez a cataplana

Confesso que tenho idiossincrasias irritantes, como a de me ficarem atravessadas na garganta espinhas minúsculas, falando metaforicamente. Nos últimos tempos, sei lá porquê, foi a cataplana. Dela falei aqui e aqui e prometi uma receita, construção (nem sequer se pode dizer que reconstrução) das minhas memórias de Angola, agora avivadas pela cativa que me tem cativo.
Para o que tecnicamente pode dar a cataplana, pouca coisa há tão adequada como o peixe seco africano. Podem ler no sítio habitual uma receita de cataplana de peixe seco de inspiração angolana, que já experimentei depois de inventar. 
O cacusso, muito vulgar em Angola e o mais apreciado peixe para secar, habita as águas entre rio e mar e, muito tipicamente, as lagunas. Foi muito popularizado em Israel pelos restaurantes do lago de Tiberíades, onde o comi relembrando Luanda, com a invocação mítica de ser o “peixe de S. Pedro”. São muitas espécies do género Tilapia, hoje espalhadas por todo o mundo. Mas quem fixar a imagem e for à peixaria, certamente arranja bom substituto, embora não seco. Mas é difícil secar? É só deixar uns dias em sal, eliminar o excesso de sal e levar ao forno a 80-90º, 4-6 horas.

P. S. (29.12.2012) - Reparei agora que a receita tinha erros, que já corrigi. Peço desculpa.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Oferta de Natal

Já é tradição de bom ror de anos eu inventar no Natal uma receita de bacalhau para o meu amigo Nuno. Estou certo de que ele não levará a mal partilhá-la com outros amigos que ainda vão gostando de coisas que eu proponho. O deste ano é bacalhau escaldado em leite temperado, com migas de batata e espargos mais espinafres salteados. A receita está no sítio do costume.
Este bacalhau é simples e claramente evocativo de sabores tradicionais portugueses, neste caso com forte tom alentejano, uma região que até nem é emblemática em termos de bacalhau. Todavia, permite adaptações regionais, a que desafio os meus amigos. O Nuno, na sua Madeira, pode bem substituir as migas de batata por uma açorda bem consistente e dourada, como as migas alentejanas, feita com o nosso pão de milho ilhéu, mais os espargos e com um toque de tempero de segurelha. Os açorianos que façam as migas das duas batatas, inglesa e doce e com um toque subtil de malagueta.
Importante é que me parece ser desafio deste prato, o compromisso estreito entre a rusticidade singela dos componentes e a suavidade dada pela técnica, simples e por isto obrigatória de se seguir. Por exemplo, experimentem saltar por cima dessa coisa parva de escaldar primeiro os espinafres e depois digam. Não tenho a pretensão, eu amador, de chamar a isto coisa na moda, “reconstrução”. Digamos, para simplificar, que é coisa que eu serviria a um amigo estrangeiro, introduzindo-o “com bons modos” nos sabores portugueses.

P. S. - E como nada se perde, os talos dos espargos, não utilizados nas migas, cozidos durante 15 minutos no leite de confitar o bacalhau, no fim tudo moído com parte do chouriço, e passado, resultou numa boa sopa cremosa. 

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Fondue

Há algum tempo, convidaram-nos para um jantar de especialidade, uma “fondue”. Com a tendência que confesso ter para alguma ironia snob e maldosa, fiz-me de engraçadinho e perguntei “que bom, gosto muito, com que queijo vão fazer?”. Imagina-se a perplexidade, ele está a confundir queijo com carne. Como o nome diz, a "fondue" é coisa fundida, derretida, pasta de queijos amolecida ao lume raquítico da lamparina, emblema da Suíça francófona, a dos grandes queijos, a do meu queijo número um, o Gruyère (ai, um açoriano a ter de confessar isto!).
Tudo o que por aí vai mais de “fondues” (e ainda hei de ver uma russa, indiana ou libanesa) só pode justificar o nome por usar o apetrecho do “caquelon” com lamparina e por se usarem uns garfos para espetar sabe-se lá o quê.
Depois das genuínas suíças, a que me lembro de primeiro ter aparecido foi a borgonhesa. Cubos de carne - ao menos que fossem sempre do melhor lombo! - fritos no tal tacho com óleo, passados para o prato, a pingar óleo, e a embeber em molhos. Aqui é que está o problema. Eu até me divirto a servir esta coisa com molhos imaginados por mim, na altura, a surpreender os convivas. Já passei, com gozo, por esta experiência em casa de alguns amigos bons cozinheiros e recomendo este exercício, como brincadeira (mas com qualquer coisa absorvente do óleo antes de embeber no molho). No entanto, na generalidade dos restaurantes que tinham - felizmente cada vez menos têm - esta “especialidade”, os molhos eram aquela enormemente imaginativa mistura de tártaro, barbecue, cocktail, alho, pimenta verde, bearnês, tudo Calvé (como marca, até há bem pior).
Depois, a “fondue” chinesa, coisa que, tanto quanto tenho estudado, nunca existiu na cozinha chinesa rica, das grandes cidades. É tradicional, parece, na cozinha pobre e banal de tribos fronteiriças mongólicas, como prato simples para nómadas. As mesmas carnes, mas cozidas em caldo de galinha e embebidas num único molho simples de soja e gengibre, acompanhada com legumes. Nada dos molhos pretensamente orientais que nos servem com esta “fondue”. Coisa muito diferente é o “sukiyaki” japonês, que tem muito mais que se lhe diga.
“Fondue” para mim é a da Suíça, acima de tudo a do Vaud, onde vivi bons tempos da minha vida. A utensilagem é bem conhecida, mas a melhor, tradicional, que ainda tenho de lá trazida, é em velha cerâmica, quase um dedo de espessura. Hoje, quase toda a gente usa inox. Há por aí de outros tipos, mas, ao contrário do que se julga, tem de aguentar bem ir primeiro ao lume, antes de ir à mesa.
Há muitas variantes regionais, mas pode dar-se uma receita básica, indicando só “queijo”, aquela que aprendi com bastante gente especialista no seu prato emblema cantonal (também há a “raclette” e as “crôutes”). Depois direi que queijos. Para a receita, toda a gente tem de cor 6-3-3-3. Para quatro pessoas, são 600 g de queijo lascado ou ralado muito grosso (se mais fino, derrete antes de cozer!), 3 dl de vinho branco, 3 c. café de maizena, 3 cálices de “kirsch”, pimenta preta, noz moscada, alho. O “kirsch”, aguardente de cereja, vende-se por aí, mas pode ser substituído por qualquer aguardente branca.
Esfrega-se abundantemente com alho o “caquelon”. A lume médio, deixa-se fundir o queijo no vinho branco, com a maizena diluída na aguardente e os temperos, mexendo com frequência. Quando ainda um pouco líquida, passa-se para a lamparina, à mesa. Vai-se comendo lentamente, embrulhando na pasta cubos de pão espetados no garfo. Ao fazer isto, cada comensal contribui para ir mexendo a pasta. Manda a tradição que quem deixar cair um cubo de pão no “caquelon” paga a “fondue” seguinte.
A grande técnica, da responsabilidade do hospedeiro, é a do controlo da lamparina. A “fondue” tem de ser mantida à temperatura e espessura necessárias para longa refeição, muita conversa e muito vinho.
E que vinho? Obrigatoriamente um Dorin, de preferência Dezaley. Há quantos anos não consigo esta preciosidade, de limitada produção, às vezes à venda no aeroporto de Genebra por qualquer coisa como 80-100 €. O Dorin é o nome vaudense para o “chasselas”. Bebe-se em todas as circunstâncias mas, com a sua extremada secura - mas dentro do muito agradável - e o seu típico “gosto a pederneira”, prefiro-o como aperitivo, neste gosto que vou assentando de o meu melhor aperitivo, principalmente enquanto cozinho o jantar, ser um bom copo de branco. Como não tenho à mão nenhum Simenon, não me lembro de como se chamava o bistrot a que Maigret ia com Lucas ao seu “verre de blanc” antes do almoço, ali ao lado do Palais. P. S. - lembrei-me, Brasserie Dauphine!
A “fondue” que os meus amigos “vaudois” (Lausana) reivindicam como única é feita só com Gruyère. É excelente, mas admito outras variantes e faço-as de vez em quando. Há uma “de três queijos” que se internacionalizou e que se vende já como mistura (de queijos de qualidade medíocre), em todo o lado: em partes iguais, Gruyère, Ementhal e “vacherin”. O Ementhal embaratece-a. O “vacherin” é importante, dá untuosidade e permite controlar melhor a “fondue”, mas não é fácil de encontrar. É um queijo de vaca de meia cura, feito no cantão de Friburgo, com um sabor inconfundível. Em Portugal, sugeriria um dos novos queijos micaelenses de pasta semimole ou, na falta, uma mistura de um queijo banal tipo Castelões e de um queijo de ovelha mal curado e de sabor forte, nomeadamente um Azeitão.
Outras variantes: em Neuchatel - Gruyère e Ementhal; nos velhos cantões - Gruyère, um dos variados “montanha”, “appenzeller”; em Friburgo - “vacherin” e Gruyère; etc., etc.
Também faço uma “fondue” portuguesa: 400-450 g de S. Jorge, 150-200 g de flamengo Terra Nostra (600 g no total), 4 dl de vinho em vez dos 3 dl canónicos, para ficar na consistência devida.
E vão duas “estórias”. Pouco depois de chegar a Lutry - o meu inesquecível subúrbio de Lausana, a deitar para o lago - o meu senhorio da bela vivenda duplex “Goupil” que morava por cima de mim, veio pedir-me desculpas antecipadas porque ia dar uma grande festa de “fondue” e “raclette” e ia fazer muito barulho. “Muito barulho”, à suíça, que nem me tirou um segundo de sono. Em contrapartida, se os meus filhos falassem um pouco mais alto no autocarro, apanhavam com olhares furiosos de velhas. “Ils sont fous, ces helvètes!” Os que todas as noites lavavam os sinais de trânsito e que parecia que davam duche diário às vacas. Por isto não consigo ver hoje as ruas do centro de Genebra cheias de copos de CocaCola e caixas de hambúrgueres.
E quando me vim embora, disse à malta do laboratório que me faltava um único queijo, o Glärner verde (sabe a bosta de vaca!…) para a exigência suíça de especialista em queijos, 365 tipos, um por cada dia do ano. Não havia em Lausanne, mas o Bernhard mandou-o vir por DHL ou coisa parecida, para o último café dessa tarde. Amizade!