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terça-feira, 4 de março de 2014

Carnaval açoriano

Uma das mais visitadas das entradas neste blogue é sobre as malassadas micaelenses. Hoje, terça feira de Carnaval, é dia de recordar essa entrada. Isto porque os fritos, cá feitos e comidos no Natal, são costume açoriano típico do Carnaval. Fazem-se lá os conhecidos fritos doces, filhós, coscorões, sonhos, rosas do Egipto, e também as tais malassadas que descreverei já a seguir. Há alguma diferença de nomenclatura. Por exemplo, as filhós açorianas são fritos de massa semelhante à dos choux, por isto muitas vezes recheadas com creme. Já as filhós continentais é que são mais parecidas com as malassadas de S. Miguel. Malassadas também se fazem na Madeira, mas nunca provei e não conheço a receita, pelo que não posso comparar com as micaelenses.

Escrevo malassadas segundo o uso estabelecido, mas de que não gosto. Como discuti então, as malassadas (de mal-assadas?) descritas em crónicas antigas são um prato de ovos vulgar nas viagens marítimas e que nada têm a ver com uma sobremesa. Parece-me que o nome correcto é melaçada, de melaço, o açúcar mais usado nos tempos do povoamento dos Açores (obviamente, nunca dizemos colonização, nas ilhas).

Relembro uma das muitas receitas, a que faço:
2 kg de farinha, 6 c. sopa de açúcar, 12 ovos, 250 g de manteiga, leite q. b., 40 g de fermento de padeiro, 1-2 cálices de aguardente, raspa de limão.  
Diluir o fermento em leite morno. Amassar tudo muito bem, juntando um ovo de cada vez, até a massa estar fina (com consistência de polme grosso) e deixar levedar em lugar quente, num alguidar embrulhado em cobertores. Untar as mãos com óleo ou leite  e separar pedaços de massa, que se achatam em disco alto de cerca de 15 cm de diâmetro, com menos massa ao centro. Fritar em óleo bem quente. Servir frias, polvilhadas com açúcar ou com açúcar e canela.
Fecho a secção culinária e passo à memória do carnaval de S. Miguel, no meu tempo de criança. Deixo de lado o terceirense, a que também estou ligado por via materna, com base em danças populares muito interessantes. Em S. Miguel, o Carnaval prolongava-se por quatro semanas, às quintas feiras: de amigos, de amigas, de compadres, de comadres, todas pretexto para os assaltos, em que grupos de mascarados tomavam de surpresa (real ou fingida) as casas do seu círculo para grandes festas. Nas mais das vezes, eram festas mais organizadas, como as das festas de longa dançaria do meu grupo de amigos e amigas do liceu, muitos já misturando amizades com namoros.

Entretanto, preparava-se a batalha da água, de terça feira, com infantaria – a maioria das tropas –, artilharia e cavalaria. Claro que estes termos estou eu a lembrar-me deles agora, mas vêm a propósito. A infantaria, quase tropa de comandos, combatia sorrateiramente, de surpresa às esquinas, armada com uma enorme seringa de lata, que abastecíamos em postos estrategicamente distribuídos. Nestes postos, assentavam praça os de artilharia, com armas pesadas, principalmente mangueiras, abastecidas por grandes bidões cheios de água. A cavalaria vinha em camiões, também com seringas e mangueiras.

A par disto, as limas, formas de parafina cheias de água. Ninguém deixava de ter os moldes para as fazer, coisa que preenchia horas a fio nas semanas antes da batalha. Em casos felizmente raros de brutalidade, havia quem fizesse as limas maciças, sem água… Coisa que dividia as opiniões era se se devia ou não proteger com gabardinas ou oleados de pescador. Nunca o fiz, porque ao fim e ao cabo ficava-se ensopado à mesma e a temperatura nos Açores é sempre amena.

Da molha geral havia isenções consensuais: pais com crianças não combatentes, soldados, bêbedos e danças. Estas danças, que desciam de fora da cidade (em S. Miguel, havia a cidade e tudo o mais, que era “fora da cidade”), ainda me fazem sorrir. Grupos de marmanjos, aos pares, “elas” às vezes com bigode, com arcos floridos de papel e comandadas por um garboso capitão de espada desembainhada, com bicórneo de plumas e sempre a apitar. Por vezes, uma dança de cadarços, do tipo das velhíssimas danças de entrançamento de fitas num poste vertical. Seja como for, constante de todas as danças eram a paragens frequentes nas tabernas, com os efeitos que se calculam e a total perda de elegância e comedimento de maneiras de tão donairosas donzelas dançarinas (olha, olha, vejo que isto dá 3D e política! Desculpem, é dia de carnaval).

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Malassada - entre a cozinha e a linguística

Um dos bons blogues gastronómicos que sigo, o Garficopo, traz crónica sobre fritos doces.  São sempre coisa funda nas memórias de criança, como comida de festa. Nos Açores, não são de Natal, mas sim de Carnaval. Deixo aqui um exemplo, provavelmente o mais típico e diferente em relação ao continente, as malassadas - que, mesmo nos Açores, são verdadeiramente típicas é de S. Miguel. São muito simples, rústicas, mas deliciosas. E, ao contrário de muita cozinha açoriana, não dependem de ingredientes ou condimentos locais. Já nem sei de quem é esta receita, recolhida nos meus tempos de gastrónomo a iniciar-se. Creio que de uma excelente cozinheira de casa da então minha namorada.
2 kg de farinha, 6 c. sopa de açúcar, 12 ovos, 125 g de manteiga, 125 g de banha, 2,5 dl de leite, 2,5 dl de água, 40 g de fermento de padeiro diluído, 1 cálice de aguardente. Bater tudo muito bem até a massa estar fina e deixar levedar, embrulhada num pano. Cortar ao tamanho de um bife e deixar o centro mais fino que os bordos. Fritar em óleo bem quente. Servir frias, polvilhadas com açúcar.
Comer e beber bem suscita sempre bom devaneio de conversa à mesa. Aqui vai uma sugestão a propósito. De onde vem o nome antiquíssimo e provavelmente já corrompido destes fritos? De “mal assadas” ou de “melaçadas”?
Há tempos, li numa crónica de Virgílio Nogueiro Gomes, e muito bem, que "a doçaria popular era confecionada com melaço, muito embora os árabes que estiveram na Península Ibérica já tivessem açúcar, apenas ficaram alguns que o poderiam vender em feiras."
Praticamente toda a doçaria açoriana é rica, conventual. Uma exceção notória, popular, são essas tais malassadas do Carnaval, que se fazem também na Madeira e que foram levadas pelos emigrantes açorianos para o nordeste americano e até para o Hawai.
Sempre vi escrito “malassada” e assim escreve M. Lurdes Modesto. Já o bom recoletor de receitas açorianas que foi Augusto Gomes escreve mal-assadas. Mas o “sempre” e o “costume” nem sempre têm razão.
Só conheço uma referência antiga a “malassada” assim escrita, de António Tenreiro, no seu “Itinerário” da viagem da Índia, e referindo-se a uma coisa ambígua, malassada de ovos, que me parece ir mais ao encontro da definição no dicionário de Cândido de Figueiredo, “malassada:  ovos, que se batem e se fritam ao mesmo tempo”. Não vejo o que possa ter o frito açoriano com estes ovos mexidos e com mal assado, até porque de facto é muito bem frito em óleo muito quente e fica muito tostado.
Palpita-me que é corruptela de melaçada, o que vai ao encontro do que Virgílio Gomes diz, genericamente. No entanto, é termo não registado por C. Azevedo nem por modernos dicionaristas. E também não é vulgar o "e" passar a "a", antes o contrário, como passo do nosso típico emudecimento das vogais átonas (lembram-se do costume baixo-beirão de Eanes ao nomear o “governe”?). O que acham disto tudo?

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Confusões de terminologia

Como falei nos últimos textos em confusão de terminologia de carnes, lembrei-me de outras questões de nomenclatura. Não vou falar de coisas recentes, a meu ver reveladoras de pouco rigor de cultura gastronómica, como seja, por exemplo, o uso abusivo que alguns chefes respeitáveis fazem de termos consagrados, como confitado, a confundir o consumidor. Noutros casos, a confusão é antiga e difícil de resolver.
Lembrei-me de coisa que sempre me despertou dúvidas, o nome consagrado (e escrito) de um típico doce-frito da minha ilha, a malassada. Nos Açores, os fritos não são de Natal, mas sim de carnaval. Sonhos, rabanadas, filhoses, coscorões, rosas do Egito e, em S. Miguel, as malassadas. Fazem-se com bastante farinha com fermento, açúcar (30 vezes menos), ovos, manteiga e/ou banha e leite. Depois de amassadas e levedadas, são fritas completamente imersas em óleo muito quente.
Também se fazem na Madeira, sinal da sua antiguidade na tradição culinária portuguesa, neste caso aparentemente perdida no continente. Em compensação, os ilhéus emigrantes popularizaram-nas nos EUA, até no Hawai. Para americanos, é coisa que cai bem, parece donuts.
Na pronúncia típica micaelense, são “malassadas”. Ortograficamente, sempre vi assim e é assim que Maria de Lourdes Modesto escreve, embora Augusto Gomes, notável recoletor de receitas açorianas, escreva “mal-assadas”. E é termo que figura nos nossos bons dicionários, mas com significado totalmente diferente. Veja-se no Cândido de Figueiredo: “malassada: ovos, que se batem e se fritam ao mesmo tempo”. Para mim, isto parece obviamente a descrição dos ovos mexidos.
Augusto Gomes defende a origem “malassada” com a referência mais antiga que também conheço, uma passagem do “Itinerário” de António Tenreiro (1529-…) em que se diz que “as iguarias que se deram geralmente foram carneiro e arroz guisado, tortas e mal-assadas de ovos com açúcar por cima”. Parece-me que se está a referir é aos ovos mexidos mal-assados dos dicionaristas, neste caso polvilhados com açúcar (que horror!…).
Esta questão, que já abordei antes, já não sei onde nem quando (googlem…) saltou-me agora à memória por causa de uma das muito boas notas de Virgílio Gomes, de que respigo:  
“Um dos elementos diferenciadores da doçaria conventual para a doçaria popular é que esta utiliza sempre, na receita, mais farinha do que açúcar. O açúcar era um produto de elevado preço o que levou vários reis a legislar para reduzir o seu consumo. (…) A doçaria popular era confecionada com melaço.”
Por isto, palpita-me que a designação das célebres malassadas micaelenses vem de corruptela de melaçadas. Teria quase a certeza se não fosse um óbice das regras da linguística, embora eu seja leigo nisso. Mas creio que é vulgar, e naquilo em que tenho estudado como amador a fonética micaelense, o “a” átono passar a “e” mudo mas não o inverso, como seria nessa passagem de “melaçada” para “malassada”. Há por aí algum linguista que dê a sua opinião?