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sábado, 1 de dezembro de 2012

Recordando a minha vida na Suíça

Já há tempos que vinha a ver à venda, no meu hiper, “fromage à racler”. Sempre houve, em sítios muito excecionais, desde que vim da Suiça e não o dispensava, mas agora amigos começam a perguntar-me para que serve, porque, como queijo, não o apreciam muito. Têm razão, não se compara a um Gruyère ou outros grandes queijos suíços (em que não incluo o Ementhal!). É um queijo com utilização muito específica, a raclette dos cantões suíços francófonos do Vaud (onde vivi, em Lutry, à ilharga de Lausana) e do Valais, o cantão que dá aqueles louros grandalhões e católicos beatos da guarda suíça do Vaticano.

Mas, antes, alguma divagação pelas minhas memórias de suíço adotivo, no princípio dos 70s. Tenho com a Suíça uma relação afetiva complicada de “amor e ódio”. Aprecio profundamente o grande sentimento de liberdade dos suíços, própria e dos outros, o seu civismo, a sua democracia direta (embora com altas taxas de abstenção) e a força de intervenção e de participação cidadã nas pequenas comunas, um exemplo para as nossas autarquias. Mas, neste plano dos valores políticos e de cidadania, acho execrável a xenofobia que já sentia há trinta anos e que agora se acentua, bem como o seu isolacionismo e egoísmo nas relações internacionais. 

No dia a dia, apreciava a cortesia das pessoas mas irritava-me quando, num autocarro, as velhotas faziam caras francamente reprovadoras se os meus filhos crianças falavam um pouco mais alto. E, acima de tudo, a mania da ordem e da limpeza, tão bem parodiada no Astérix, que eu valorizava, mas que também me irritava um pouco. Costumava dizer que as vacas suíças, antes de irem para o pasto, tomavam duche todos os dias. É o único país onde eu vi, até na minha pequena comuna de Lutry, brigadas de funcionários que, semanalmente, lavavam os sinais de trânsito! Mas isto está a passar à história, porque hoje me impressiona a quantidade de plásticos e latas de Coca-Cola que se vêem pelo chão, no centro de Genebra.

A cozinha suíça, que conheci bem, é peculiar. Talvez os leitores não saibam que a Suíça, ainda na primeira metade do século XX, era um pais pobre, de forte emigração. Pobre também era, por isso, a cozinha popular. Cozinha de batata! Hoje, na Suíça rica, há uma excelente cozinha, mas principalmente burguesa e de forte influência francesa, pelo menos na zona francófona, onde vivi. Passemos então à raclette.

A raclette é todo um cerimonial de festa. O queijo é cortada à metade e posto junto à lareira, a amolecer. Cada conviva sabe bem quando está no ponto de, com uma espátula, rapar (“racler”) uma fatia mole e passá-la para o seu prato. Quem tem lareira pode fazê-lo assim. Eu dispenso-a, usando, para lhe apresentar defronte o queijo, um velho aquecedor elétrico, de resistência ou de lâmpada de infravermelhos. Esta é a parte menos importante da história, o que interessa é com que se vai comer o queijo.

Talvez mais importante, com que se vai beber. Com um Dorin, de preferência Dezaley, uma variante “vaudoise” de chasselas, que dá vinhos brancos muito aromáticos, se sabor intenso, prolongado fim de boca, extremamente secos, tipicamente chamados de vinhos com gosto de pederneira. Produção limitada, nunca os encontrei cá, são coisa obrigatória na bagagem de regresso de Genebra. Mas pelo menos a 30 € por garrafa! Mantendo-me nos brancos, e também chasselas mas menos agreste do que o Dorin, pode-se optar por um Fendant do Valais.

Quem vai à lareira recolher a sua pazada de raclette já leva o prato como quer, a cobrir com o queijo. Não vou dar receitas, porque cada um se esmera no que inventa, mas há coisas básicas. Desde logo, lascas de batata cozida, por vezes temperada com paprica. Não se esqueça, como disse, que a batata era a base da alimentação suíça, quando o país era pobre e exportador de gente, no séc. XIX. Também picles, pepinos de conserva, anchovas, “boeuf valaisan” (um presunto de carne de vaca), legumes, variados enchidos, o que calhar.

É um ritual que dá pela noite dentro, em festas com exuberância suíça. O meu senhorio, M. Fuchs, vivia no apartamento por cima do meu. Um dia, veio pedir-me desculpa pelo incómodo de uma festa de raclette. Eu tinha dormido como um justo, nem dei pela festa.

Outra festa ritual é a da fondue, também tipicamente “vaudoise”. Muita gente tem cá o apetrecho, “caquelon”, lamparina, garfos, mas para fazerem a chamada fondue borguinhona, de carnes. Ainda não consegui apurar a sua história, que, com a fondue chinesa e a de chocolate, começa nos anos 50 do século passado, com origens obscuras, a aproveitar o utensílio tradicional suíço. Como se sabe, são pedaços de carne fritos em óleo e molhados em molhos diversos. O que é que isto tem a ver com "fundida" ("fondue")? Até podia ser interessante, como faço às vezes, desde que a carne seja de lombo, o óleo fresco e os molhos feitos à maneira, ao gosto do chefe, e não retirados a esmo da prateleira do supermercado.

Não é disto que vou falar, mas da fondue suíça. Ela não é verdadeiramente um prato. É parte essencial de um ritual de convivência. Vai-se comendo lentamente, ao longo de horas, entre muita conversa e copos de vinho.

Quem for pela informação histórica hoje abundante na net, lerá que as primeiras referências a um prato rústico e simples, só de queijo fundido, datam de séc. XVII. A sua inclusão no catálogo da cozinha erudita deve-se a Brillat-Savarin, em 1834, com a designação inédita de "fondue". Nada do que é hoje: metia trufas e ovos mexidos. Só no fim desse século é que se "codificou" a fondue como ainda hoje é feita, considerada o prato nacional suíço (apesar de mais tipicamente da Suíça francófona).

Há variantes de fondue, tida cada uma como emblemática de cada cantão francófono, mas a genuína é a do Vaud, só com queijo Gruyère (o tal queijo que, há tempos, uma tia famosa da net disse que era o queijo francês mais conhecido, cheio de buracos). Aquela que, a seguir, por mais equilibrada de sabores, sempre me atraiu, é a "dos três cantões", uma criação erudita, misturando, terço a terço, Gruyére, vacherin de Friburgo e Ementhal. Já não se pode fazer, porque deixou de se fabricar o já então raro e magnífico vacherin, um dos melhores queijos que já comi. E também há a minha fondue açoriana, só de S. Jorge ou então de mistura de S. Jorge, queijo velho de S. Miguel e queijo do Pico mal curado ou um dos novos açorianos de pasta semimole.

A técnica não é difícil. Quanto aos queijos, passá-los na mandolina, a ralado grado. Esfregar o recipiente (“caquelon”, de metal mas preferivelmente de cerâmica), com bastante alho. Juntar 600 g de queijo, 6 dl de vinho branco seco (em Portugal, sugiro um Arinto) e 1 cálice de aguardente (na Suíça, as suas aguardentes de frutos) com 1 c. sobremesa de maizena. Temperar com pouco ou nenhum sal – o queijo é salgado – pimenta preta e bastante noz moscada. Aquecer a lume médio até fundir e fervilhar. Passar para a mesa, sobre a lamparina.

Aqui é que está o segredo do artista. Chama muito alta seca logo a fondue, chama muito baixa mantém-na muito líquida, quando o que se pretende é uma pasta a envolver bem os cubos de pão, espetados no garfo, sem escorrer. Bonito é uma pequena estalactite de queijo a pingar do pão, mas sem se soltar. No fim, deve haver no fundo uma fina película de queijo queimado (a "freira"). Experimentem e ganhem prática. E não esqueçam a regra absoluta: quem perder o pedaço de pão paga a próxima fondue! Ou, se for uma senhora, dá uma volta à mesa a beijar todos os homens.

Ainda fica por descrever coisa magnífica, cá desconhecida,  a “crôute”, que merece ida a Gruyère – uma linda aldeia medieval, minúscula, toda dentro de um castelo. Quem lá comeu muitas, como eu, pode fazer variantes (por exemplo, uns cubinhos de pepinos de conserva ou de presunto, cogumelos ou um toque de paprica), mas aqui fica a genuina, muito simples. Misturar cebola (ou chalota) picada e salteada em manteiga, vinho Dorin, ovo batido e muito queijo Gruyère ralado grosso. Temperar com sal, pimenta preta, noz moscada, cobrir com esta pasta fatias de pão rústico e levar ao forno a gratinar. É tudo! Outras coisas já são variantes, de outros cantões ou de coisas de família, não digo que não muitas boas. Eu próprio as faço, como disse acima.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Novamente as morchelas

Já aqui falei das morchelas, um excelente cogumelo só conhecido no nordeste transmontano mas agora à venda, seco, na boa oferta de cogumelos do Corte Inglês. Tenho-os usado em coisas diversas de que não vou dando conta, mas hoje em coisa fácil de que vale a pena falar.
Faço muito “croûtes”, à maneira do Vaud suíço em que tão bem vivi. Essencialmente, são uma mistura de ovos e queijo ida ao forno a gratinar, sobre uma fatia de pão. Tudo o resto, e pode ser muito, é enriquecimento da mistura, inclusivamente cogumelos, o que me deu a ideia para nova receita.

É claro que, no Vaud, em cujo coração está a linda aldeia de Gruyère, tudo o que se junte ao queijo, na fondue, no molho de assado, nas croûtes, é supérfluo. Eu, não vaudois, quase que alinharia, considerando que o gruyère é o melhor queijo do mundo (mas só o rótulo preto, "super choix", há 40 anos que não o provo!).
Como já disse, este blogue não fornece receitas. É truque para, se interessados nesta receita de morchelas em croûte de queijo à Vaud, verem as muitas mais na minha página de receitas
Claro que a receita não pode incluir os acessórios, a (bom) gosto de cada um. Sugiro, para guarnecer, por exemplo:
- Estufado de uma brunesa de caiota (chuchu), batata doce e aipo.
- Tomatinhos untados com azeite e ervas e alourados no forno.
- Compota de legumes (cebola, malagueta, pimentão, etc.)
- Uma salada simples.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Fondue

Há algum tempo, convidaram-nos para um jantar de especialidade, uma “fondue”. Com a tendência que confesso ter para alguma ironia snob e maldosa, fiz-me de engraçadinho e perguntei “que bom, gosto muito, com que queijo vão fazer?”. Imagina-se a perplexidade, ele está a confundir queijo com carne. Como o nome diz, a "fondue" é coisa fundida, derretida, pasta de queijos amolecida ao lume raquítico da lamparina, emblema da Suíça francófona, a dos grandes queijos, a do meu queijo número um, o Gruyère (ai, um açoriano a ter de confessar isto!).
Tudo o que por aí vai mais de “fondues” (e ainda hei de ver uma russa, indiana ou libanesa) só pode justificar o nome por usar o apetrecho do “caquelon” com lamparina e por se usarem uns garfos para espetar sabe-se lá o quê.
Depois das genuínas suíças, a que me lembro de primeiro ter aparecido foi a borgonhesa. Cubos de carne - ao menos que fossem sempre do melhor lombo! - fritos no tal tacho com óleo, passados para o prato, a pingar óleo, e a embeber em molhos. Aqui é que está o problema. Eu até me divirto a servir esta coisa com molhos imaginados por mim, na altura, a surpreender os convivas. Já passei, com gozo, por esta experiência em casa de alguns amigos bons cozinheiros e recomendo este exercício, como brincadeira (mas com qualquer coisa absorvente do óleo antes de embeber no molho). No entanto, na generalidade dos restaurantes que tinham - felizmente cada vez menos têm - esta “especialidade”, os molhos eram aquela enormemente imaginativa mistura de tártaro, barbecue, cocktail, alho, pimenta verde, bearnês, tudo Calvé (como marca, até há bem pior).
Depois, a “fondue” chinesa, coisa que, tanto quanto tenho estudado, nunca existiu na cozinha chinesa rica, das grandes cidades. É tradicional, parece, na cozinha pobre e banal de tribos fronteiriças mongólicas, como prato simples para nómadas. As mesmas carnes, mas cozidas em caldo de galinha e embebidas num único molho simples de soja e gengibre, acompanhada com legumes. Nada dos molhos pretensamente orientais que nos servem com esta “fondue”. Coisa muito diferente é o “sukiyaki” japonês, que tem muito mais que se lhe diga.
“Fondue” para mim é a da Suíça, acima de tudo a do Vaud, onde vivi bons tempos da minha vida. A utensilagem é bem conhecida, mas a melhor, tradicional, que ainda tenho de lá trazida, é em velha cerâmica, quase um dedo de espessura. Hoje, quase toda a gente usa inox. Há por aí de outros tipos, mas, ao contrário do que se julga, tem de aguentar bem ir primeiro ao lume, antes de ir à mesa.
Há muitas variantes regionais, mas pode dar-se uma receita básica, indicando só “queijo”, aquela que aprendi com bastante gente especialista no seu prato emblema cantonal (também há a “raclette” e as “crôutes”). Depois direi que queijos. Para a receita, toda a gente tem de cor 6-3-3-3. Para quatro pessoas, são 600 g de queijo lascado ou ralado muito grosso (se mais fino, derrete antes de cozer!), 3 dl de vinho branco, 3 c. café de maizena, 3 cálices de “kirsch”, pimenta preta, noz moscada, alho. O “kirsch”, aguardente de cereja, vende-se por aí, mas pode ser substituído por qualquer aguardente branca.
Esfrega-se abundantemente com alho o “caquelon”. A lume médio, deixa-se fundir o queijo no vinho branco, com a maizena diluída na aguardente e os temperos, mexendo com frequência. Quando ainda um pouco líquida, passa-se para a lamparina, à mesa. Vai-se comendo lentamente, embrulhando na pasta cubos de pão espetados no garfo. Ao fazer isto, cada comensal contribui para ir mexendo a pasta. Manda a tradição que quem deixar cair um cubo de pão no “caquelon” paga a “fondue” seguinte.
A grande técnica, da responsabilidade do hospedeiro, é a do controlo da lamparina. A “fondue” tem de ser mantida à temperatura e espessura necessárias para longa refeição, muita conversa e muito vinho.
E que vinho? Obrigatoriamente um Dorin, de preferência Dezaley. Há quantos anos não consigo esta preciosidade, de limitada produção, às vezes à venda no aeroporto de Genebra por qualquer coisa como 80-100 €. O Dorin é o nome vaudense para o “chasselas”. Bebe-se em todas as circunstâncias mas, com a sua extremada secura - mas dentro do muito agradável - e o seu típico “gosto a pederneira”, prefiro-o como aperitivo, neste gosto que vou assentando de o meu melhor aperitivo, principalmente enquanto cozinho o jantar, ser um bom copo de branco. Como não tenho à mão nenhum Simenon, não me lembro de como se chamava o bistrot a que Maigret ia com Lucas ao seu “verre de blanc” antes do almoço, ali ao lado do Palais. P. S. - lembrei-me, Brasserie Dauphine!
A “fondue” que os meus amigos “vaudois” (Lausana) reivindicam como única é feita só com Gruyère. É excelente, mas admito outras variantes e faço-as de vez em quando. Há uma “de três queijos” que se internacionalizou e que se vende já como mistura (de queijos de qualidade medíocre), em todo o lado: em partes iguais, Gruyère, Ementhal e “vacherin”. O Ementhal embaratece-a. O “vacherin” é importante, dá untuosidade e permite controlar melhor a “fondue”, mas não é fácil de encontrar. É um queijo de vaca de meia cura, feito no cantão de Friburgo, com um sabor inconfundível. Em Portugal, sugeriria um dos novos queijos micaelenses de pasta semimole ou, na falta, uma mistura de um queijo banal tipo Castelões e de um queijo de ovelha mal curado e de sabor forte, nomeadamente um Azeitão.
Outras variantes: em Neuchatel - Gruyère e Ementhal; nos velhos cantões - Gruyère, um dos variados “montanha”, “appenzeller”; em Friburgo - “vacherin” e Gruyère; etc., etc.
Também faço uma “fondue” portuguesa: 400-450 g de S. Jorge, 150-200 g de flamengo Terra Nostra (600 g no total), 4 dl de vinho em vez dos 3 dl canónicos, para ficar na consistência devida.
E vão duas “estórias”. Pouco depois de chegar a Lutry - o meu inesquecível subúrbio de Lausana, a deitar para o lago - o meu senhorio da bela vivenda duplex “Goupil” que morava por cima de mim, veio pedir-me desculpas antecipadas porque ia dar uma grande festa de “fondue” e “raclette” e ia fazer muito barulho. “Muito barulho”, à suíça, que nem me tirou um segundo de sono. Em contrapartida, se os meus filhos falassem um pouco mais alto no autocarro, apanhavam com olhares furiosos de velhas. “Ils sont fous, ces helvètes!” Os que todas as noites lavavam os sinais de trânsito e que parecia que davam duche diário às vacas. Por isto não consigo ver hoje as ruas do centro de Genebra cheias de copos de CocaCola e caixas de hambúrgueres.
E quando me vim embora, disse à malta do laboratório que me faltava um único queijo, o Glärner verde (sabe a bosta de vaca!…) para a exigência suíça de especialista em queijos, 365 tipos, um por cada dia do ano. Não havia em Lausanne, mas o Bernhard mandou-o vir por DHL ou coisa parecida, para o último café dessa tarde. Amizade!