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sexta-feira, 14 de julho de 2017

Massa sovada

A massa sovada é um ícone da cozinha açoriana. E aqui até digo bem, no singular, contra o meu habitual “cozinhas açorianas”, porque é coisa antiquíssima que se radicou em todas as ilhas, portanto logo no início do povoamento. E entrosou-se com a religiosidade especial açoriana, sendo essencial nas festas de Espírito Santo.
Como acontece nestas circunstâncias, quase que cada família tem a sua receita, que só um turista muito subtil gastronomicamente pode distinguir. Habituei-me, criança em Ponta Delgada, ao que me diziam ser a melhor, a da pastelaria João Luís. Mas sempre ouvi a minha avó, mestra inventiva de pastelaria, gabar a da sua cunhada, minha tia-avó Leonor, que a fazia, como a minha avó fazia muitos seus doces inventados, para a Pastelaria Atanázio, em Angra, do seu cunhado.
Sempre ouvi a minha avó queixar-se de que, contra o seu próprio hábito, a minha tia não dava as receitas nem à cunhada. No entanto, vejo no livro de Augusto Gomes, “Cozinha Tradicional da Ilha Terceira”, ISBN 972-81§57-19-3, uma receita dessa massa sovada da pastelaria Atanásio. Duvido da genuinidade e não me consta que quem a forneceu a Augusto gomes fosse próxima da minha tia Leonor. Mas, com o benefício da dúvida, servi-me dela para a minha própria versão, que criei há dias, com muito bom resultado. Como exige grande esforço braçal, fiz a receita para a Bimby. Facilmente se adapta a uma boa batedeira.
A propósito do esforço, pode haver dúvidas sobre o nome do bolo. Massa sovada, por ser muito batida? Ou massa cevada, por ser muito levedada? É como malpassadas ou meladas, em relação a um frito micaelense, no carnaval, de que já falei aqui.
Outro pormenor. Hoje vende-se por toda a parte a massa sovada cozida em forma. Não era assim, em parte nenhuma, império ou pastelaria, que eu a via, antes como um pão com feitio da broa. Foi assim que a fiz. E é deste formato uma excelente massa sovada, em bolos pequenos, de 250 g, que se vende no El Corte Inglês, da Padaria Gomes de Ponta Delgada. Recebem-na semanalmente, creio que às terças. É bastante parecida com esta minha. Só o descobri depois de escrita esta nota, trazida pelo meu irmão alter ego gastronómico.
Ainda mais. Quando começa a secar e endurecer, dá umas ótimas torradas, barradas com manteiga (dos Açores, claro!...).
Crescente. 25 g de fermento de padeiro, 50 -100 g de água, 100 g de farinha de milho. 
Massa: 1000 g de farinha, 10 ovos, 250 g de açúcar, 200 g de manteiga, 50 g de leite, 5 cl de aguardente de vinho (não de bagaço!), 1 c.sopa de chá de flor de laranjeira, uma pitada de canela. 
De véspera, preparar o crescente.  Juntar no copo o fermento e a água. 1 m/40º/2. Baixar e juntar a farinha de milho. 1m/-/3, a fazer massa consistente. Guardar abafado. 
Para a massa.Juntar ao copo a manteiga e derreter, 2m/60º/1, e os outros ingredientes, exceto a farinha. 15s/-/5. Juntar a farinha e o crescente. Bater 10 minutos, em espiga. Deixar arrefecer a máquina, 20-30 minutos, e repetir mais duas vezes. A massa nesta altura deve estar relativamente mole, mas moldável, e com bolhas. Deixar levedar umas horas, no copo, até se soltar e aumentar bem de volume. Tender sobre superfície enfarinhada, polvilhando repetidamente o suficiente para obter massa consistente mas relativamente mole.  Fazer bolo como na massa sovada tradicional, tipo broa, não em forma. Segundo os hábitos antigos, faz-se uma cruz com uma faca. Levar ao forno pré-aquecido a 190º, cerca de 30-40 minutos.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Morcelas açorianas

A par dos queijos, de que falei há dias, os enchidos e a doçaria fazem parte do trio icónico da gastronomia açoriana, sem esquecer, obviamente, os peixes, ou únicos lá ou, a meu ver, muito melhores do que cá. Nos enchidos, sobressaem as morcelas e a linguiça. Como vou falar principalmente das morcelas, só uma nota sobre a linguiça.
À primeira vista, parece um chouriço, com o diâmetro a que estamos habituados. Não se fazem lá as linguiças estreitas continentais. Há muitas variantes, mas, em geral, fazem-se só com carne limpa, de preferência de lombo, posta de vinha de alhos com vinho branco, vinagre, limão galego, malagueta, laranja, colorau, alho e sal. Muito diferentes das muito mais simples linguiças continentais.
Morcelas, à primeira vista, parecem basicamente o mesmo, cá e lá: sangue de porco, vinagre, gordura de porco (véu ou rissol), farinha ou arroz, cebola, salsa, cominhos. A grande diferença está nas especiarias, tão típicas das cozinhas açorianas, de ilhas de aguada e abastecimento das naus da Índia, a tomar a latitude de Lisboa.
Essencialmente, as morcelas açorianas, com variantes de ilha para ilha, levam os ingredientes que referi, mais frequentemente o pão, inclusive de milho, mas também o arroz ou farinha de arroz. Frequentemente, cebola de rama em vez da cebola normal. A mais, vinho branco e aguardente ou vinho do Porto e, sobretudo, os temperos, que lhes dão um toque distintivo notório: cominhos, erva doce, canela, cravinho, massa de malagueta (pimenta da terra).
Cada produtor rivalizava na qualidade das morcelas e as pessoas escolhiam-nos com fidelidade. Na minha infância era a charcutaria Cardozo, que até ia a casa recolher as encomendas e entregá-las. Muito mais tarde, já indo lá só a férias, passei a comprar do Costa, um supermercado na Calheta, ou do Cavalo Branco, um restaurante nos Mosteiros. Desaparecidas as do Costa, passei para as do Borges ou as do Viveiros, nas Capelas, também muito boas. Por tudo isto, sabem-me a muito pouco as que cá compro nas lojas dos Açores, de uma salsicharia Ideal. No entanto, para quem não conhece as morcelas açorianas, mesmo que não as supra-sumo, recomendo estas. Há dias, comprei muito boas da Charcutaria Açoriana (Azores Gourmet), num espaço temporal que o Corte Inglês dedicou a produtos açorianos. Agora, já não as encontro lá.
Comiam-se as morcelas de todas as formas. Cortadas em rodelas grandes (cerca de 5 cm), eram habitualmente fritas em banha, embora o restaurante Castelo Branco tenha popularizado, e bem, as morcelas assadas no forno de lenha. Hoje frito-as em frigideira só untada com banha (azeite não!). Havia quem gostasse delas ainda em papa, outros, como o meu primeiro sogro, comia-as como se fossem pedaços de carvão aromático. Frequentemente, comem-se com ovo estrelado. Para acompanhar, muitas vezes batatas fritas ou arroz branco, mas eu habituei-me sempre ao inhame cozido, cuja textura e suavidade (e até cor) se ligam magnificamente com as morcelas.
Decididamente não vou é com a moda de algumas poucas dezenas de anos, em todos os restaurantes, da morcela com ananás. Lembro-me bem de onde isto veio. Nessa altura, surgiu na Madeira a confecção dos filetes de espada preto com banana. Fica muito bem, porque são sabores suaves e compatíveis, valorizando-se mutuamente. Algum esperto micaelense lembrou-se do ananás para a morcela. A meu ver, não só não adianta nada ao excelente enchido como estraga o também excelente fruto, abafado pelo sabor intenso da morcela. Mas há gostos para tudo. Ou razões, como um amigo que me diz que assim consegue vencer a sua dispepsia.
NOTA – Falei de inhame. Sempre que possível, sugiro alternativas locais para os produtos açorianos. No meu livro, até sugeri um sucedâneo da coisa mais característica, a massa de malagueta, hoje à venda nas lojas dos Açores. O mesmo, por exemplo, para a batata doce, que cá temos muito boa. Não consigo dizer o mesmo é do inhame. O que cá se vende nos hipermercados, da América latina, é para mim incomestível. Valha que há quase sempre à venda nas lojas dos Açores (R. S. Julião, R. da Madalena ou R. Viriato) genuíno inhame açoriano.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Queijos açorianos

Sou grande apreciador de queijos e sou muito bairrista açoriano. As duas coisas juntas tornam-me exigente em relação aos queijos açorianos, até porque uma tão importante imagem de marca não pode ser adulterada.
Sou de tempo, recém-chegado ao continente, em que o “queijo da ilha” era apenas uma opção mais barata. Exceção era Angola, como me diz a morena, em que só ele lá chegava, mais algum flamengo. Cá, a nossa tradição e gosto sempre foi para os queijos de ovelha e eventualmente cabra. De vaca, só o banal Castelões e alguns flamengos, principalmente o Limiano e um que fabricava a Martins e Rebelo e de que não recordo o nome.
Note-se, todavia, que na grande lista dos queijos mundiais famosos, a grande maioria é de vaca e curado, ao arrepio do nosso gosto tradicional. Claro que gosto muito de Azeitão, Serpa e Serra (por esta ordem), mas prefiro um queijo de vaca curado, a começar pelo meu queijo dos queijos, um Gruyére super-choix.
Nos últimos tempos, tem havido por cá grande propaganda a queijos açorianos de vaca, pastosos, quase não curados. São os queijos da Terceira, também alguns de S. Miguel e agora, muito falado, o queijo de “O Morro”, do Faial. A meu ver, deslustram o panorama dos queijos açorianos e quase nada adiantam à oferta continental de queijos de pasta mole, artesanais ou industriais.
Acima de todos, o S. Jorge, principalmente o do Topo e Rosais. Vende-se em três tempos de cura, 3, 4 e 7 meses. O de 3 meses (e até o de 4) é ainda incaracterístico, para quem não aprecia um bom queijoMais raramente, oferecido na Loja dos Açores e na Manteigaria Silva, o de 12 meses e até de 24, que, para mim, já não adianta muito. Conselho essencial é que, sempre que possam, comprem fatias cortadas na ocasião ou já embaladas mas em filme, porque o mais vulgar, a embalagem a vácuo, prejudica muito o queijo e deixa-o aborrachado. A tradição, na minha terra, era de provar sempre uma lasquinha do queijo inteiro, antes de o comprar. Vejo aqui, por vezes, nas lojas que o vendem à fatia, a designação queijo picante. Vão por ela!
O queijo da Graciosa é semelhante. Já o do Pico difere muito, sendo um queijo pequeno, de cura rápida e sabor muito característico. O mais famoso, e para mim, é o S. João. Começou também a ver-se por cá o queijo do Corvo, próximo do do Pico e muito bom.
Em S. Miguel havia queijos industriais muito bons, que por cá se vendem, dos Lacticínios Loreto: o flamengo e um chédar que nunca mais vi. Mas os grandes queijos, tradicionais, eram o de Água Retorta e o Queijo Velho. O primeiro, aparentado com o S. Jorge, mas com um gosto mais subtil e menos áspero, deixou de se fabricar. Pelo contrário, o excelente Queijo Velho, desaparecido no meu tempo, foi renascido há alguns anos. É muito diferente do S. Jorge, embora também seja um queijo curado de vaca. Reconhecem-no facilmente pela casca preta. Não percam.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Oh!, coisas simples!

Comi hoje ao almoço, muito saudavelmente, peixe cozido. Parecendo que não, justifica algumas notas.
O peixe foi abrótea, um peixe desconsiderado cá, mas aquele a que, desde miúdo açoriano, me habituei. É certo que o que aqui se vende, do Atlântico Norte (onde?), provavelmente com dias de refrigeração, fica longe da abrótea açoriana, a lascar, excelente para cozer e para filetes. Não há turista que venha dos Açores e que não fale dos filetes. Não têm nada demais, só a abrótea bem fresca.
Peixe cozido? Em tempo de grande predileção pelos grelhados? Claro que gosto de peixe grelhado, mas tem de ser um peixe não espesso (não vou no peixe escalado). Todavia, isto não devia fazer esquecer tudo o excelente resto: peixe cozido, frito, assado. Mesmo a caldeirada, se bem que de peixes menores. Por exemplo, sou, também pelas raízes, grande apreciador de garoupa, mas fico estarrecido quando só a fazem como postas grelhadas. Já fritaram uma posta de garoupinha?
Peixe assado ainda há dias fizemos. Ou melhor, fez a morena, que é especialista, com uma receita mais rica do que a tradicional portuguesa que faço. Digo faço, hoje, porque a minha tradição é a do peixe assado em receita de família, invulgar, que vai no fim.
Coisa elementar que muita gente desconhece é que nunca! se coze peixe (incluindo bacalhau) em água a ferver. Deixa-se ferver a água, introduz-se o peixe e deixa-se voltar a fervilhar. Apaga-se o lume, tapa-se a panela e deixa-se cozer, escaldando, durante 5-7 minutos conforme o tipo e quantidade de peixe. No caso do bacalhau, escorre-se e imcuba-se meia hora em leite acabado de ferver.
Gosto muito de peixe ao vapor, com um caldo de legumes (neste caso sou pouco exigente e uso a geleia da Nestlé, mas não o cubo), vinho branco, um pouco de azeite, chalotas ou alho, louro, ervas da minha horta de varanda (salsa, tomilho, estragão, cerefólio), pimenta da Jamaica, sumo de limão. No fim, muitas vezes engrosso o caldo, coado, com gema de ovo, como se faz com o “court bouillon” da truta “au bleu” (outra das minhas coisas "simple things, how good!").
Fazia o peixe ao vapor no lume, na peixeira. Atualmente, meu novo vicio, faço na Bimby. Os ingredientes do caldo no copo. Na varoma, batatas e feijão verde. 15m/varoma/vel. 1. Se brócolos, primeiro só as batatas, 10 minutos e depois os legumes, 5 minutos. A seguir, em qualquer dos casos, colocar o tabuleiro, com o peixe e mais 15m/varoma/vel 1.
Finalmente o tempero. Ou o caldo engrossado ou o simples azeite e vinagre, com flor de sal e pimenta preta e branca misturadas e moídas no momento. Há muitos gostos para azeite e vinagre. O meu vai para o virgem extra da cooperativa de Vila Velha de Ródão, habitual oferta de um bom compadre, e o vinagre de tinto Moura Alves, que se vende na loja gourmet do Corte Inglês.
E cá vai a receita prometida, invulgar e subtil de elegância de sabores, coisa de família que não é de tradição regional açoriana. A cozinha era uma religião na família da minha avó materna, Adélia. Um dia destes, publico o seu livro de receitas, herdades ou criadas por ela, manuscrito pela minha mãe. Com a minha avó aprendi que a cozinha é arte e criatividade, compromisso equilibrado entre respeito pelo tradicional clássico e o moderno.
Em princípio, o peixe usado era a bicuda, que não há cá, uma variante de mares frios da barracuda, e mais pequena. Mas pode ir com os nossos peixes para assar, pargo, imperador, goraz, cântaro, garoupa, corvina.
Para 4 pessoas. 1 bicuda grande, 4 c. sopa de azeite, 4 c. sopa de vinagre, 4 c. sopa de banha, 1,5 c. sopa de farinha, 2,5 dl de caldo de peixe, 18 nozes, 125 g de azeitonas pretas, sal e pimenta. 
Untar uma assadeira com azeite e colocar o peixe, com uns cortes no lombo e temperado com sal e pimenta. Cobrir com o molho, feito com o azeite, o vinagre, a banha, a farinha diluída no caldo de peixe, tudo bem misturado, mais o miolo das nozes esmagado grosso e as azeitonas. Assar a 180º, regando com frequência o peixe com o molho misturado à colher. Servir coberto com o molho apurado, com uma guarnição a gosto (tradicionalmente, na família, batatas salteadas ou puré de batata com azeitonas pretas). 
Minha variante: Juntar ao molho uma redução forte, muito concentrada e coada, de 2 dl vinho branco com chalotas, salsa, cerefólio, cebolinho, estragão e pimenta da Jamaica, com uma pequena casca de limão. A minha avó gostaria de ver as minhas variantes. Ela estava sempre a experimentar.
(Há na minha família quem me rogue pragas quando divulgo “segredos”. Mas que maior homenagem posso prestar a essa herança senão divulga-la? E, no meu livro, há um capítulo dessas excelentes e bizarras – porque invulgares e de tom parisiense – receitas de família).

domingo, 27 de março de 2016

O meu cabrito assado

Há bastantes anos que cumprimos a tradição do cabrito no domingo de Páscoa, mas, sendo a minha morena angolana, comemos normalmente uma ótima caldeirada de cabrito. Gosto muito, mas creio que ainda prefiro o cabrito assado. Coube-me este ano a escolha e a sua preparação.
Gosto muito de fazer cozinha tradicional, em geral com um toque pessoal não descaracterizador, e principalmente as cozinhas açorianas, com destaque, sendo eu híbrido, para a micaelense e terceirense.
Em nenhuma das ilhas é vulgar comer-se cabrito ou borrego. Gado caprino é só para queijo fresco, excelente o das Furnas, hoje impossível por causa da brucelose. Na imensa recolha de receitas de Augusto Gomes (“Cozinha Tradicional da Ilha de S. Miguel”, ed. Secretaria Regional da Educação e Cultura dos Açores, 1988), apenas se incluem duas receitas de cabrito assado, que se distinguem da generalidade das receitas continentais pela marinada prévia da carne. É, aliás, um uso vulgar na maioria dos cozinhados de carne açorianos, assados, estufados ou guisados (com a notável exceção da irónica alcatra terceirense).
Foi com base nisto que preparei o cabrito assado no forno, com base na minha versão de vinha de alhos, como publicada no meu livro “Gosto de Bem Comer” (que disponibilizei como e-book). Foi a primeira vez que o fiz, coisa arriscada em dia de festa com convidados, mas foi unanimemente elogiado. Não é para me gabar…, mas concordo.
Ingredientes, 4 pessoas:
1,6-1,8 kg de cabrito aos pedaços grandes, 100 g de banha, 100 g de manteiga (ou, para efeitos de saúde, margarina dietética de cozinha), 16 batatas pequenas para assar (Agria, Ágata, Monalisa, pequenas), 4 dentes de alho, 1 folha de louro, sal, 1/2 c. chá de massa de malagueta. Vinha de alhos: 2 cebolas, 4 dentes de alho, 3 limões galegos (ou 1 tangerina, 1/2 limão e 2 limas), 1 folha de louro, 2,5 dl de vinho branco, 1 dl de vinagre, água q. b., 1 c. sobremesa de massa de malagueta, sal, 12 grãos de pimenta preta, 6 grãos de pimenta da Jamaica, 1 c. sopa de colorau, 1 raminho de salsa, 1 haste de tomilho, 1 raminho de alecrim/rosmaninho.
Preparação:
Preparar de véspera a vinha de alhos, com a cebola aos gomos, os dentes de alho não pelados e esmagados, os citrinos cortados em gomos e só ligeiramente espremidos, e os restantes ingredientes. Misturar bem com a carne, acrescentando água até cerca de metade da altura. Deixar em lugar fresco, mexendo várias vezes.
Escorrer os pedaços de carne, sem os secar, colocá-los em assadeira, cobrir com banha e manteiga e regar com a marinada. Assar a 200º durante 1 hora e depois a 160º, até bem crestado, cerca de mais 1,5 horas. Regar com o molho, de vez em quando e, se necessário, acrescentar um pouco de água.
Uma hora antes de pronto o assado, juntar as batatas, previamente escaldadas durante 5 minutos em água com o alho, o louro e a malagueta. Regar com o molho.
Resultado: um cabrito com sabores marcados mas não demasiadamente intensos a abafar a delicadeza da carne; pele bem tostada e carne macia e tenra, não seca (siga as indicações de temperatura!); ótimo molho; batatas com um sabor subtil e invulgar. Recomendo.

domingo, 15 de junho de 2014

Almoço de hoje, com evocações açorianas

Entre tantas coisas que me perdem, não há forma de concluir o meu segundo livro de gastronomia/culinária, agora vincadamente açoriana, conjugando a minha experiência culinária com muitos anos de pesquisa e recolha da gastronomia açoriana. É só juntar uma coisa à outra e fazer uma síntese de cozinha açoriana elaborada. Está prometido, será para o Natal. Creio que já aqui disse qual é a ideia.
“Este livro tem a ambição de representar uma “cozinha elaborada”. O que é isto? Talvez coisa a fugir a “cozinha de autor”, que cheira a chefe profissional, com diploma de escola, o que não é o meu caso. “Nova cozinha”? Não se trata disto, no sentido em que se fala de “nouvelle cuisine”, que já passou e de que não gostei por aí além. Esta “cozinha elaborada” é uma cozinha de e para amadores de bom gosto e com boa técnica, a tornar elegante e dieteticamente correto o excelente manancial de sabores, ingredientes, técnicas de confecção da cozinha das ilhas açorianas (melhor, das cozinhas, diferentes de ilha para ilha). Para amadores, mas também com sugestões aproveitáveis por restaurantes açorianos que, para proveito do turismo e também do dia a dia dos locais, se desejam de cada vez melhor nível.Gosto de lhe chamar cozinha de reconstrução, o que não se opõe inteiramente a outra que gosto de criar e comer, a de desconstrução.O desafio foi pensar num restaurante internacional, de cozinha de qualidade, mas com todos os bons sabores da cozinha açoriana tradicional, em confecções mais leves, adequadas ao estilo de hoje. Já há nas ilhas uns poucos restaurantes de boa qualidade, com ementas imaginativas e bem concebidas como evocação de sabores tradicionais. Não vão aprender comigo. Mas faltam outros e estou a pensar em todos esses que faltam. Ao mesmo tempo, receitas com boa técnica e imaginativas, acessíveis a cozinheiros competentes mas não estrelados e sem formação de muito alto nível. Outra coisa seria pretensão ridícula do autor, ele também não profissional, muito menos de alta escola. (…) E em casa? Claro que, na maioria dos casos, as receitas que proponho não são para o dia a dia, mas acho que poderão ir muito bem à mesa de um jantar de festa ou de experiência de deslumbrar (desafiar) amigos. Também, com um pouco de imaginação, a possibilidade de as adaptar a confecções mais simples mas com um toque de qualidade. Em alguns casos sugerirei a simplificação da receita para maior adequação à técnica, hábitos e até utensílios dos não experimentados.”
Afinal, esses casos serão muitos. O mesmo prato em duas versões, a de restaurantes de nível e a caseira, para cozinheiros amadores com bom gosto.
O desafio é muito interessante porque a regra imposta de só usar ingredientes açorianos é muito ambígua, quando hoje, em todas as grandes superfícies nos Açores se vê o mesmo do que cá. Vou usar vários critérios: o que eu vejo as pessoas comprarem lá, preferencialmente e pelo seu gosto ancestral; o que era a base das nossas despensas, quando eu era miúdo; e, principalmente, a evocação da memória dos sabores.
O meu almoço de hoje foi um bom exemplo: magret de pato com especiarias açorianas, legumes com toque exótico e arroz branco. O pato não é muito usual na cozinha tradicional açoriana, mas muita gente o encontra nos supermercados e se pergunta como o fazer. É como um grande e querido próximo meu que de vez em quando me escreve, “encontrei esta coisa nova, como sugeres que a faça?”. No meu tempo, creio que nunca lá vi à venda pato, no mercado. Lembro-me de o meu avô os ter na capoeira, mas não deviam ser coisa vulgar. Mas que mal tem? Hoje deve haver e quem está farto de frango que coma pato, não deixa de ser meu patrício ilhéu (não obrigatoriamente ilhéu tosco, como parece que eu sou…)
As especiarias são aqui uma variação dos clássicos “todos os temperos” de S. Miguel mas, depois de vários ensaios, pareceu-me que esta variação era a melhor para o pato (afinar uma receita dá muito trabalho!). Só elas já bastam para justificar a invocação açoriana do prato, bem como os legumes com Chico Maria. Usei alface, como coisa suave e delicada, mas também podia ter usado endívias. Mais açoriano ainda seria o excelente agrião da terra, mas teria de controlar bem o sabor amargo deste vegetal.
Aqui vai a receita.
Magret de pato com especiarias açorianas e legumes com tom exótico
Pato: 4 peitos, 1 c. sopa de mistura de especiarias (erva doce, canela, cominhos, cravinho, pimenta preta), sal.
Vegetais: azeite, 4 dentes de alho, grandes, pelados, cortados ao meio e retirados os gérmens, 1/2 alface, 1 cebola, 400 g de cogumelos Portobello ou pleurotos, 2 c. de sopa de molho de soja japonês, 1/2 copo de Biscoitos Chico Maria meio seco, 1 c. chá de massa de malagueta, 1 c. sobremesa de gengibre fresco ralado, 1 raminho de cebolo. 1 chávena de arroz agulha ou basmati.
Fazer cortes cruzados na pele dos peitos, com a ponta de uma faca afiada. Temperar de ambos os lados com bastante porção de sal e especiarias, esfregando bem. Aquecer uma frigideira siliconada, sem gordura, até estar bem quente mas a lume baixo. Fritar os peitos em 3 ciclos sucessivos, 3 minutos com a pele para baixo e 1 minuto com a carne para baixo. Remover e deixar descansar durante 5 minutos, até deixar de destilar suco.
Deitar 2-3 c. sopa de azeite numa frigideira alta e alourar bem primeiro a cebola em rodelas finas, depois as folhas de alface (nos Açores, eu tentaria o agrião da terra) e no fim os cogumelos em pedaços grandes. Regar com o vinho e deixar cozer, acrescentando um pouco de água se necessário. No fim, flor de sal quanto baste. Entretanto, preparar uma mistura dos alhos branqueados em leite e picados, do molho de soja, do gengibre ralado e da malagueta. Antes de ir para a mesa, juntar aos legumes, sem ferver.
Acompanhar também com arroz branco.

domingo, 11 de maio de 2014

Cozinha tradicional única?

Já discuti várias vezes neste blogue a legitimidade de alterações a receitas que são parte do património cultural (gastronomia também é cultura) de um povo ou de uma região. Não considerando que a questão deva ser posta em termos absolutos, de total respeito ou de total liberdade, fica mais difícil estabelecer uma linha de bom-senso e mesmo de adequação a condições práticas e técnicas. Não se pode manter obrigatoriamente nos dias de hoje coisas antigas limitadas – ou mesmo prejudicadas – por falta de ingredientes, por dificuldades de conservação, por má técnica de fabrico e ausência de análise de qualidade. Manter hoje coisas negativas, quando algumas inovações só melhoram o sabor daquilo que se quer respeitar, e desde que não se altere o essencial desse sabor, é a maior homenagem que se pode fazer ao património culinário tradicional. Por exemplo, só com mudança de técnica, o bacalhau à Brás de José Avillez é excelente e em nada ofende o prato habitual, muito pelo contrário.
Da mesma forma, pode ser difícil estabelecer critérios para avaliar da legitimidade de variações a um cânone. Em primeiro lugar, muitas vezes ele nem existe, permitindo-se variações de acordo com gostos particulares. Por exemplo, pouco pode haver de mais consensual do que o cozido (descontadas algumas variações regionais) mas o que eu faço é temperado com um pouco de pimenta preta e da Jamaica, dispensa coisa de que não gosto, a farinheira e inclui obrigatoriamente batata doce ou até inhame, a recordar-me da minha ilha. Deixa por isto de ser um cozido à portuguesa? Posso acrescentar é “à minha maneira”.
Novamente, como disse acima, acho que o essencial é saber manter as características essenciais de um prato, se se invocar uma designação tradicional. Não me parece acertado fazer uma caldeirada à fragateiro que leve óleo de palma e leite de coco ou migas alentejanas com pão de especiarias e estragão.
Vem isto a propósito de transgressões muito frequentes, de brasileiros, principalmente em relação a receitas de cozinhas estrangeiras. Também da sua cozinha, como vi num jantar recente, com bobó de camarão. Estava óptimo, mas pareceu-me estranho, em relação ao que faço, e vim verificar em casa. Normalmente, em relação à cozinha baiana, sigo o que me dIzem ser um excelente livro, o editado pela escola de hotelaria do SENAC (o instituto brasileiro de formação profissional) e que comprei no seu restaurante do Largo do Pelourinho.
Mas já me aconteceu, como neste caso, consultar uma amiga baiana e grande cozinheira que, mantendo essa norma, acaba sempre por me dizer que conhece boas cozinheiras que também fazem variantes. É assim a cozinha regional.
Já aqui uma vez discuti um exemplo de diversidade que tem a ver com factores históricos e económicos: a alcatra terceirense. No essencial é um assado de carne, em forno quente, demorado, num típico alguidar de barro não vidrado. A carne, em pedaços grandes, alterna com uma gordura, cebola cortada em rodelas, toucinho fumado, um osso com tutano, alho, louro, vinho, sal, pimenta preta e pimenta da Jamaica. No entanto, só com isto, comem-se muitas alcatras diferentes, para já não falar de variantes mais radicais, como alcatra de peixe e alcatra de coelho.
Augusto Gomes, um infatigável colector de receitas açorianas, publicou nada menos do que dez variantes de alcatra de vaca. Como fonte dessa variedade, principalmente três diferenças – classe de carne, gordura, vinho. Isto, como disse, por razões principalmente económicas, o que faz haver uma alcatra popular e uma alcatra burguesa. Esta, a que sempre comi e continuo a fazer, é de grande qualidade culinária. A carne é de folha de alcatra, mais um pouco de cachaço ou de aba grossa para gelatinar um pouco o molho. Já nas alcatras populares ou nas que se comem em festas do Espírito Santo ou em restaurantes típicos, a carne é habitualmente de qualidade inferior, predominando o chambão.
A mesma distinção quanto à gordura. Nos Açores, predominam na cozinha tradicional as gorduras animais, manteiga e banha. Para fritos imersos, o óleo mas nunca o azeite, só usado para temperar saladas. Novamente, o critério económico e o uso enraizado fazem distinguir as alcatras, a burguesa só com manteiga, a popular com banha. Como imaginam, a diferença é de tal ordem que não consigo comer a alcatra com banha, rústica, pesada e enjoativa. Lá vai que alguns restaurantes vão começando a usar mistura de ambas as gorduras.
Diferença também radical é a do vinho. O vinho tradicional dos Açores é o branco de casta verdelho (como na Madeira), de origem obscura mas presente nas ilhas desde tempos antigos do povoamento. No século XIX, foi quase extinta por uma epidemia de filoxera, mantendo-se apenas, com baixa produção e alto preço, no Pico, na Graciosa e na zona terceirense dos Biscoitos. No resto das ilhas, foi tristemente substituído pelo “vinho de cheiro” (cá chamado morangueiro), de uva americana ou Isabel, um vinho mais do que ordinário. As casas burguesas ou fidalgotas continuaram a fazer a alcatra com vinho dos Biscoitos ou, quando não o conseguiam, com vinho branco, forçosamente importado. O povo passou a usar vinho de cheiro, tinto. Outra diferença, do dia para a noite.
No entanto, vou eu dizer que a minha alcatra é que é a genuína, comparada com uma alcatra popular que evoluiu que pelas piores razões ou que usa ingredientes que lhe roubam qualidade, mas que é aquela que praticamente toda a gente faz? Seria pretender que a música popular portuguesa tivesse de ser toda composta por Lopes Graça.

sábado, 26 de abril de 2014

Entre Açores e Angola

Já a Páscoa vai com quase uma semana e ainda não falei dela. Cá em casa, de açoriano e angolana, é coisa diferente do que por aí vai mais frequentemente, como padrão gastronómico. Quanto ao prato principal, empadas de peixe pelo lado terceirense e caldeirada de cabrito pelo lado angolano. Tudo ao almoço, também ao arrepio da tradição ilhoa, em que as festas familiares e de datas solenes são sempre de jantar (ou eram). Em Angola, imposição do clima, não se deixa para tarde as refeições pesadas.
A caldeirada de cabrito é coisa que só comi, em Angola, quando lá estive, em serviço militar na Marinha. Não é só da Páscoa, mas falo dela porque, sendo hábito o cabrito nesse dia entre os colonos, passou a devoção à caldeirada. No entanto, não creio que seja só prato de colonos, apesar de lhe faltarem ingredientes tipicamente angolanos, como o óleo de palma ou os quiabos. De facto, comi muitas caldeiradas, no Zaire, em “povos” africanos. E até sem ser de cabrito, magníficas caldeiradas de antílopes pequenos ou até, imaginem, de macaco (nada má, mas um pouco adocicada). Não estou a brincar; garanto que também comi filetes de crocodilo, mas destes não gostei nada…
A caldeirada varia muito, embora respeitando, em geral, os ingredientes e a forma básica de confecção. Creio que se passa isto mais com a cozinha angolana feita pelos colonos do que com a dos continentais ou ilhéus, habituados a normas mais consagradas desde há gerações. Os angolanos brancos aprendiam com parentes mestiços ou com a criadagem negra e nem sempre mantinham a genuinidade da cozinha. Ainda hoje noto isto, julgando que já aprendi cozinha angolana com quatro gerações de experiência.
Aqui fica então a receita tal como se faz cá em casa, herdada da família angolana e ainda muito bem feita pelas representantes das duas gerações sobreviventes.
Para 6 pessoas. 1 cabrito de 2 kg, 4 cebolas, 6 dentes de alho, 2 tomates grandes ou 3 médios, 2 kg de batata, 2 pimentos verdes, médios, 1 cálice de aguardente ou de uisque (conforme o gosto), 2 dl de moscatel, 2,5 dl de vinho branco, sal, pimenta preta e branca, moídas a fresco, em partes iguais, 1 folha de louro, 1 dl de azeite, jindungo moído (piripiri) a gosto. 
Cortar o cabrito em pedaços e temperar de véspera com o alho e o sal pisados em almofariz, o louro, o vinho branco e umm pouco de água. Cortar as cebolas e as batatas às rodelas, o pimento em tiras e o tomate, sem pevides, em cubos pequenos. Cortar os topos das batatas, que só dão rodelas pequenas, em aparas finas, para engrossar o molho. Num tacho largo, alternar em camadas o cabrito, os legumes e as batatas, devendo ser de batatas a primeira e a última camada. Temperar, levar à fervura e cozer tapado, a lume médio, agitando o tacho de vez em quando.
Já nos Açores não há tradição de se comer cabrito ou borrego e o prato tradicional de Páscoa, conforme as famílias, gostos e posses, varia entre as carnes mais festivas, vaca, porco ou galinha. Em miúdo, não me lembro de alguma vez ter comido cabrito ou borrego e, das recolhas que tenho feito, só apanhei uma ou duas referências a carneiro adulto, assado em peça. Carneiro e ovelha, nas ilhas, eram para lã e, uso bizarro, para puxar carroças. Vejam a foto. Quanto a cabrito, como me parece natural, só conheço cabrito assado, depois de temperado em vinha de alhos, nas freguesias orientais de S. Miguel, onde havia rebanhos que forneciam excelente queijo de cabra, até a brucelose se tornar endozoótica.
Velho hábito pascal açoriano, mas só na Terceira, é o das empadas de peixe. Nunca encontrei equivalente cá. Aliás, é um hábito estranho, porque depois da abstinência da quaresma e da semana santa o que se queria era comer carne, não continuar com peixe. Havia quem as fizesse em casa, como na minha família, mas o mais vulgar era encomendá-las nas pastelarias, juntamente com outra coisa típica, a massa sovada. Pontificavam como especialidade as da Pastelaria Athanázio,  de um tio avô meu, famosa também pela variedade e qualidade dos doces que a minha avô inventava para o cunhado vender. Há poucos anos ainda lá comi alguns, mas sem o segredo dos que a minha avó nos fazia. Ai, os torresmos doces ou os covilhetes de leite!
Há muitas receitas modernas de empadas de peixe, incluindo legumes e variados outros ingredientes, ou simples variação das habituais empadas de galinha. Esta receita é a tradicional, tal como se fazia na minha família materna, as tais que se vendiam na Pastelaria Athanázio.
Uma garoupa pequena e 2-3 postas de cherne, 250 g de nozes, uma cebola, 2 dentes de alho, um ramo de salsa, uma c. sopa de banha, 3 c. sopa de azeite, 2 c. sopa de vinagre, 100 g de azeitonas pretas, sal e pimenta branca. Para a massa, 0,5 kg de farinha, 125 g de manteiga, 125 g de banha, 2 ovos, 2 c. sopa de açúcar e sal. 
Amassar bem os ingredientes da massa e deixar descansar enquanto se prepara o recheio. Fritar ligeiramente os peixes, às postas e desfazê-lo às lascas. Ferver o molho, feito com as nozes muito bem pisadas, o azeite e a banha, a cebola e o alho picados. Juntar o peixe e, se necessário, um pouco de água e ferver mais uns 2 minutos. Separar o peixe suficiente para o recheio mais 2,5 c. chá de molho por empada. No fim, a salsa picada e as azeitonas descaroçadas, temperando com pimenta branca. Deixar algum tempo no frigorífico, a solidificar o molho. Fazer as empadas em formas próprias e rechear com o peixe, o molho e as azeitonas. Tapar com massa. Pincelar a tampa com gema batida e levar ao forno, a 220º. Serve-se acompanhado com o resto do molho e com uma salada simples.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Torresmos de molho de fígado

Na última entrada, a propósito do uso corrente de limões galegos nos Açores, falei de um prato típico micaelense que não os dispensa, os torresmos de molho de fígado ou, popularmente e em abreviado, molho de fígado. Há outro tipo de torresmos, os simples ou “de pauzinho” (por causa das costelas), de que não vou falar agora. 

Em qualquer dos casos, são confitados, conservados na banha solidificada. Por isto, era menos vulgar, na cidade, fazê-los em casa do que comprá-los nas barracas (o nome açoriano dos lugares de frutas e hortaliças). Quantas vezes os fui comprar ao Sr. Lopes, da Casa Verde. Retirados dos característicos potes grandes de louça da Vila, lá iam para casa já com a envolvente de banha para a fritura. Quem os apreciava removia boa parte dessa banha, como removemos a gordura de pato de um confit. Por isto me faz impressão ver hoje as pessoas nos supermercados de Ponta Delgada comprarem molho de fígado a nadar numa gordura enjoativa.

Note-se que também eram comida vulgar de taberna. Não era vergonha nenhuma no meu tempo ir de panela à taberna comprar alguns petiscos, mesmo que também alternassem com os feitos em casa – o polvo guisado em vinho de cheiro e as favas secas, assim como, no Balão da Ribeira Grande os célebres canarinhos.

Pela sua tipicidade e diferença em relação a tudo o que se faz no continente como rojões e semelhante (os torresmos nos Açores não são as tiras fritas de pele e toucinho), os torresmos de molho de fígado serão uma boa surpresa para os vossos amigos, com a vantagem de praticamente tudo se poder obter no continente. Excepção para a insubstituível malagueta micaelense e para a açaflor, (não é a curcuma ou açafrão indiano ou amarelo!) mas que já se vendem nas duas lojas açorianas de Lisboa (R. S. Julião, 58 e Av. Elias Garcia, 57). A caiena pode ser um longínquo substituto da malagueta, mas nunca o piripiri.

A carne de porco e o fígado, tudo em cubos grandes, são marinados em vinha de alhos com bastante limão galego e temperos. Vai a fritar na própria gordura ou com um pouco mais de banha primeiro a carne e mais tarde o fígado, molhando de vez em quando com um pouco da marinada. O molho deve ficar bem apurado, para o que contribui um bom pedaço de fígado bem desfeito. Como é vulgar na cozinha açoriana, pode-se comer sem acompanhamento. Quando há, é geralmente o inhame ou o minhoto, uma variante maios pequena e mais saborosa do inhame. Inhame decente é que também só se encontra cá nas tais lojas, porque o que se vende nos hipermercados é, para mim, incomestível. A alternativa é simplesmente batata cozida ou batata doce cozida.

Ao fim de muito revirar os torresmos e a banha dentro do pote, vai-se formando uma massa desfeita que se chama pé de torresmo. É uma deliciosa pasta para sandes. Hoje já se faz industrialmente, moendo os torresmos com um pouco do seu molho e, ao que me dizem, um pouco de vinho. Em casa, prefiro os que faço à moda antiga.

O molho de fígado da minha avó paterna era considerado uma especialidade e fazia as delícias dos 14 filhos (!). Nos jantares de família inteira, era prato habitual e não me lembro de quem o rejeitasse. Não deixou a receita e as minhas tias não eram muito viradas para a cozinha. Vale que herdei do meu pai uma excelente memória gustativa e, em experiências sucessivas com ele na prova final, que a princípio me deixavam muito frustrado (“está bom, mas ainda não é o da tua avó”), cheguei a uma receita que os sobreviventes da família garantem ser a da minha avó. Mais adiante, passarei essa receita.

Esse molho de fígado não diferia das variantes que descrevi nas carnes, no vinho nem no limão galego, mas sim nos condimentos. Propositadamente, não os referi acima, porque, na melhor recolha de cozinha micaelense, do já falecido Augusto Gomes, e em recolhas minhas, a variedade de temperos é muito grande: um ou mais de entre colorau, erva-doce, canela, pimenta preta ou pimenta branca, para além, claro de malagueta (pimenta da terra). As proporções também variam muito, de receita para receita.

Todos estes condimentos são marcantes na cozinha micaelense. As morcelas que maravilham os turistas levam o sangue coagulado, mais cebola e alho, temperado com malagueta, bastante canela e erva-doce. O debulho – sangue cozido esmagado num refogado – também é temperado com esses condimentos. Mais caracteristicamente, as “favas de taberna” (fava rica, de fava seca) levavam obrigatoriamente “temperos”. Julgo que é difícil encontrar lá este prato, do melhor da cozinha micaelense. Felizmente, posso dá-lo a conhecer aos meus amigos, porque me gabo de o fazer muito bem, aprendido na juventude com uma excelente cozinheira popular.

O que são esses temperos, popularmente chamados, com bom sotaque, “todolos tamparos”? Luís Aguiar, conterrâneo e velho amigo, conta nas suas histórias do Pico da Pedra (“Raiz Comovida”) que ia à mercearia a recado da mãe e que frequentemente o troco era dado em temperos. De facto, faziam-se na mercearia ou nos armazéns de secos e molhados. Faz recordar tempos muito antigos de passagem pelos Açores das naus da Índia e em que as especiarias também eram moeda, não tanto para compra de mercearia mas para mais avultado negócio de frescos.

Durante muitos anos não soube qual era a sua composição mais ou menos secreta – cada armazém diria hoje que tinha os melhores temperos do mundo, mesmo que o mundo se ficasse por S. Miguel. Foi por um amigo do meu pai já reformado de encarregado de um armazém que obtive a receita. Não é fácil de a fazer em pequena quantidade, pela desproporção entre os ingredientes, a pedir balanças de sensibilidade diferente. Aqui vai.
100 g de colorau (pimentão doce),100 g de erva doce, 20 g de canela, 5 g de pimenta preta, 5 g de cravinho, 5 g de cominhos. Se se quiser preparar uma dose pequena, 2,5 c. sopa de colorau, 2,5 c. sopa de erva doce, 1/2 c. sopa de canela, 1 c. chá de pimenta preta, 1 c. chá de cravinho, 1 c. chá de cominhos.
Vai então aqui a receita da minha avó que, com muito esforço, julgo ter recuperado e que a tal minha memória gustativa aprova.
500 g de lombo de porco, 750 g de entrecosto (da parte com mais carne), 250 g de toucinho, 500 g de fígado de porco em peça, 125 g de banha, vinha de alhos com 4 limões galegos (substituir por meia laranja, três limas e um limão grande). 
Cortar todas as carnes em pedaços de bom tamanho e deixar pelo menos um dia em vinha de alhos: um copo de vinho branco, 4 c. sopa de vinagre, 5-6 dentes de alho pisados com 1 c. sopa de sal grosso, 1 c. sopa de malagueta, uma folha de louro, 8-10 grãos de pimenta preta, 4 cravinhos, meia c. sopa de açaflor, 3 c. sopa de “temperos”, 4 limões galegos aos quartos, espremidos, água q. b. A minha avó juntava também uma isca de baço de porco, esfarelada.Numa panela sem gordura, derreter a banha do toucinho. Em alternativa, derreter banha. Juntar todas as carnes, bem escorridas e fritar bem a lume forte durante bastante tempo, mexendo, até secar o líquido, ficando só a gordura e as carnes estarem bem fritas. Entretanto, cozer à parte o fígado. Juntar às carnes a vinha de alhos coada, por partes e ferver, a apurar bem. A meio, juntar o fígado, tirando alguns pedaços que se esmagam bem num pouco do caldo e que se misturam com o molho, a engrossá-lo. Também há quem frite o fígado cru na fritada das carnes, mas fica muito seco e duro. Prefiro cozê-lo à parte e juntar só quase no fim.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Éme, albacora dos Açores é qu’é bom

Isto hoje evoca-me amigos. Um deles passou por tempos em que, solitário, pouco mais lhe apetecia do que abrir uma lata de atum para o jantar. Uma merceeira amiga e com pena deu-lhe a conhecer o atum Santa Catarina, dos Açores. Do sacrifício da conserva, passou ao gosto de excelente acepipe.

Outro amigo meu viu em qualquer sítio que o LIDL vendia com a marca NiXe atum anunciado como açoriano e ofereceu-me uma lata (de peso invulgar, 1 Kg de peso líquido). Lembro-me também de um “post” de blogue que dizia o mesmo, mas agora não o consigo localizar. É possível que tenha sido assim no passado, mas o atum que me veio do LIDL é de origem catalã.

Já houve tempos em que isto seria importante, pela dificuldade de obter no continente atum açoriano. E vale a pena? Estou certo de que sim. É que nem é a tal coisa subjectiva (ou publicitária) do “melhor do mundo”, é questão de diferença consensual. Por exemplo, é objectivo que o atum açoriano é vendido logo nos seus mares aos navios-fábrica japoneses, país onde vivem os considerados maiores e mais conhecedores apreciadores de atum.

Com a mesma classificação de género, há espécies diferentes de peixe. Deixemos por um minuto o atum. Já referi porque é que qualquer pessoa de gosto nem sequer obrigatoriamente muito apurado distingue o excelente chicharrinho açoriano do seu irmão carapau continental. São espécies diferentes. No continente, o carapau vulgar é o Trachurus trachurus, branco. O carapau das ilhas é o azulado, Trachurus picturatus, com sabor claramente diferente. Os pescadores continentais conhecem-no como carapau negrão ou carapau do alto, mas não era vulgar vendê-lo. Ultimamente, vê-se esta espécie à venda como “carapau azul”. É pena que muito grande, comparado com os “charrinhos” açorianos.

Da mesma forma, o atum, com muitas variantes todas pertencentes ao género Thunnus, com diversas espécies, mas principalmente com diferenças de qualidade relacionadas com o habitat físico e biológico. O atum mais pescado, nomeadamente no Atlântico e no Mediterrâneo, é o rabilo (assim dito nos Açores), rabilho (no Algarve) ou “bluefin” (T. thynnus), também pescado nos Açores O atum açoriano reparte-se também entre outras espécies, nomeadamente o muito apreciado patudo (T. obesus), considerado o melhor para “sashimi” e o atum voador (T. alalunga).

É principalmente este último, o atum branco, que se pesca nos Açores e a que se chama lá o atum albacora (que não é a mesma espécie que o T. albacares, tropical, "albacore" em inglês ou “yellowfin”, que não existe nos Açores). É o atum açoriano mais conhecido e de melhor qualidade, aquele que os navios japoneses compram no mar alto às traineiras açorianas. É a sua característica de voador que permite a pesca tradicional de “salto e vara”, com isco vivo de peixes pequenos (daí a falta de uso vulgar da sardinha, desviada para isco para o atum). Ao contrário, por exemplo, do Algarve, nunca se pescou atum nos Açores por cerco. Diferença importante é que a pesca de salto e vara é totalmente sustentável biologicamente, ao contrário da pesca de rede, lesiva até para golfinhos.

Passando às conservas, discuta-se os seus tipos. A forma tradicional de enlatar o atum é em flocos, comprimidos na lata. A maior relação entre peso e volume torna esta produção mais atraente para um consumo familiar. Sucedeu-lhe o atum em posta, mas ainda facilmente lascável e, mais modernamente, os filetes de atum, que mantêm a textura original da carne.

Quanto ao líquido, pode ser, como tradicionalmente na maior parte das nossas conservas, um qualquer óleo alimentar, mais recentemente, e por moda do dito, o azeite e, último método, a simples água. Neste caso, como um tipo de conservas da fábrica de S. Catarina (e também da Cofaco – ver adiante), até pode ser conserva em água, embalada em frasco de vidro. A todos títulos excelente!

Até há poucas décadas, era difícil encontrar atum dos Açores no continente. De vez em quando, mas com irregularidade, via à venda conservas Corretora, a empresa de conservas mais importante dos meus tempos de criança – até com uma gama muito diversificada e inovadora, que passava por legumes, almôndegas e pequenos hambúrgueres, muito bem temperados com pimenta e noz moscada, que faziam as minhas delícias.

Uma conserva característica da Corretora, que se vende cá nos hipermercados, é a de atum temperado, muito bom como base de pasta para aperitivos ou para barrar sandes. Se quiserem fazer a vossa própria base, partam de atum, cebola, tomate, pimento, malagueta e açaflor (comprem numa das lojas açorianas; não substituam por curcuma, o açafrão amarelo, indiano) e vão adiante segundo o vosso gosto e imaginação.

Por volta do 25 de Abril, formou-se nos Açores uma grande empresa conserveira, a Cofaco. A partir daí, ou pelo menos na última dúzia de anos, deixou de ser difícil encontrar atum dos Açores (embora, para mim, seja o menos bom dos que conheço): com marca Bom Petisco, está em todos os supermercados. A Cofaco também outra marca, Pitéu, mas de conservas de outros peixes ou de atum não açoriano.

Finalmente, a minha preferida, Santa Catarina, antes uma pequena fábrica em S. Jorge, agora com cada vez maior sucesso. Para mim, as melhores conservas açorianas, mas admito que é questão de gosto pessoal. Muito menos vou dizer que são as melhores do mundo. Começaram por se vender nas lojas dos Açores em Lisboa mas hoje já as vejo com presença permanente em todas as grandes superfícies.

Da gama variada da Santa Catarina destaco a conserva de ventresca. Com o senão de não ser nada barata (cerca de 3,7 € por 120 g líquidos), é a maior delícia de entre os atuns, nomeadamente os atuns açorianos. A ventresca é o nome da barriga do atum, a parte mais nobre e rica, que se desfaz em lascas firmes. Tem cor rosa pálido e sabor muito suave. Com o nome de “toro”, é a parte do atum mais apreciada no Japão e, forçosamente, a mais cara. Os peritos japoneses dividem-na em “kama toro”, uma pequena peça muito gorda e com aspecto marmoreado e em "toro" propriamente dito, dividido em três níveis,  medium (chutoro), regular (toro), e supremo (otoro). O meu conhecimento de atum não vai tão longe que me permita dizer o que é, para um especialista japonês, a ventresca de Santa Catarina.

Terminemos com a culinária, a começar pelo atum fresco. Note-se a diferença terminológica. Vulgarmente, atum é o de conserva. Pelo menos em S. Miguel, o atum fresco é mais frequentemente chamado apenas de albacora. Apesar da importância da pesca do atum e da indústria conserveira (ou por causa disso), a culinária da albacora fresca não é muito variada. Quase que se limita a variantes do bife frito (não grelhado), com molhos diversos, de vilão, cebolada, tomatada, ou de vinha-d’alhos e assado no forno.

Já o atum de conserva tem largo uso na cozinha burguesa. Desde logo “à la minuta”, aberta a lata, passado o atum para o prato com batata cozida e ovo cozido, tudo regado com azeite e vinagre ou qualquer molho mais imaginativo, a gosto. Mas, de longe, a utilização mais vulgar é com salada russa e maionese, o que, no meu tempo e como cá, se chamava só maionese de atum (tal como se fazia também com peixe cozido, galinha e, em dia especial, com salmão de lata (caríssimo) e, mais especialmente ainda, com lagosta. 

Na minha casa de criança havia ainda outras receitas de confecção frequente: bolo de atum, arroz frio com atum, moldado e revestido a maionese, salada de atum de cebolada, com batatas, etc. Também eu tenho muitas. Há dias, fiz uma salada simples e rápida, para a época, que, ao contrário das minhas regras, publico por irresistível necessidade de homenagear os pescadores de albacora da minha terra. Aqui vai a salada verde-rubra de atum.
Para duas pessoas em dieta. 1 lata de filetes de atum Santa Catarina em azeite, 1 curgete, 1 tomate grande, 1 maçã, 50 g de miolo de noz. Molho: 1 c. sopa de vinagre balsâmico, 1 c. sopa de mel, 1 pouco de massa de malagueta. Azeite, flor de sal, pimenta preta. Cortar a curgete em rodelas finas, sem descascar. Cortar o tomate em metades, esvaziar das pevides e cortar cada metade em rodelas finas. Alourar as rodelas de curgete em azeite, sem queimar, virando-as a meio. Temperar e reservar. Levar ao forno o tomate, regado com um pouco de azeite e temperado, até assar ligeiramente, sem amolecer demais. Deixar arrefecer e empratar ambas as coisas, lado a lado, em dois semi-círculos. Cobrir com a maçã aos cubos pequenos e as nozes partidas grosso. Por cima os filetes de atum, escorridos. Regar com o molho, preparado a cru.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Adivinha

A cozinha de desconstrução, como sabem muitos dos leitores, define-se pela conceção de um prato como evocando relações com algum prato tradicional mas, graças às técnicas inovadoras “à Adrià”, com aspeto, textura, aroma e sabor específico, separando os sabores de forma a que o resultado final valorize por igual todos os ingredientes. Citando Anthony Bourdain, a desconstrução resulta em que “intermittent flavors of the constituent elements mingle with the remembered taste of unified chowder”.

É uma cozinha extremamente exigente em imaginação, sentido do gosto, cultura culinária (e até literária, domínio mais estabelecido da desconstrução) e técnica, tudo a nível de profissional de alta escola. Com notáveis exceções, não está ao alcance do amador, mesmo que muito dotado e experiente.

Diferente, ou aproximando-se tendencialmente, é uma desconstrução parcial, com bases de cozinha elegante e elaborada, a que, para marcar a diferença, chamo de cozinha de reconstrução. Mesmo os chefes mais adeptos da cozinha molecular e fãs de Adrià a fazem, como Avillez que não se coíbe de fazer bacalhau à Brás no Belcanto. A propósito, tendo há dias apanhado a receita e vendo um clip, resolvi fazer o bacalhau. Quase nada tem de diferente do que sempre fiz, e gabo-me de o fazer bem. Mas esse quase é essencial: a técnica. Por isso, foi o melhor bacalhau à Brás que já fiz ou já comi (ainda não provei o do Belcanto).

Esta cozinha de reconstrução atrai-me e desafia-me. Desde logo, porque me permite uma margem de alteração muito grande, tendo de manter sempre a qualidade. Ao nível mais elementar, trata-se só de alterar ao gosto pessoal um prato convencional, geralmente de cozinha tradicional. Questão só de técnica (por exemplo, entalar primeiro a carne e só depois fazer o refogado nessa gordura, retirada a carne), ou de adição ou remoção de um ingrediente (uso sempre batata doce e inhame no cozido) ou de uso de um tempero novo (por exemplo, a minha muito empregue pimenta da Jamaica). O que interessa é que no fim o gosto geral do prato não fique desvirtuado.

Outro nível é o de invenções de pratos ainda com semelhança com o original, mas com modificações mais radicais. Por exemplo, seguindo um dos princípios da desconstrução, cozinhando separadamente os ingredientes e até temperando-os diferentemente, mas tudo dentro do convencional, sem técnicas moleculares que não estejam ao meu alcance (algumas estão e uso-as). Ou tornando o prato mais moderno e leve, doseando a gordura ou mesmo substituindo o molho tradicional por um molho mais elegante. Quem leu o meu livro “O Gosto de Bem Comer” ou vai vendo as receitas que vou inventando saberá que é um exercício que faço frequentemente, mesmo na cozinha a dois, no dia-a-dia.

Finalmente, novos pratos que, à primeira vista, não evocam nada mas em que se notam depois aromas e sabores característicos de uma cozinha tradicional, no caso a que domino, a açoriana. Que puxam pela memória dos sabores, muito mais se de infância. Há dias, experimentei dois, cujas receitas vão no sítio do costume: lombo de garoupa assado, com molho de funcho, puré de feijão branco e repolho, batata doce alourada. E estufado de cachaço de porco com puré de feijão rajado e abóbora glaceada. Alguém adivinha quais os dois pratos açorianos cujos sabores estou a evocar? Vêm no meu livro, no capítulo da cozinha açoriana.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Açafrão e açaflor

Já que escrevi sobre a malagueta, não pode ficar esquecida outra coisa essencial da cozinha açoriana, a açaflor, com a corruptela popular de açafroa. Salvo algumas referências que conheço ao seu uso, raro, no Alto Alentejo, é caracteristicamente açoriana. Mais generalizadamente açoriana, em todas as ilhas, do que a malagueta que reina mais é em S. Miguel.

O açafrão de luxo é o que se cultiva em Espanha e é essencial para uma boa paella. É de luxo como se vê pelo preço, por exemplo no Corte Inglês. É oferta muito significativa que me trazem amigos espanhóis em visita à minha casa. A planta é o Crocus sativus, provavelmente originária da Ásia central e hoje cultivada em toda a orla mediterrânica, no “maquis”. Só se aproveitam os estames.

Passando o para o outro extremo, há o açafrão indiano, açafrão amarelo, curcuma, turmérico ou gengibre amarelo. É o moído do rizoma seco de uma planta completamente diferente, Curcuma longa. É da família do gengibre e é um ingrediente essencial do chamado “pó de caril”. Dá muita cor mas em sabor é rústico, grosseiro. Barato, invadiu toda a nossa cozinha de paellas aldrabadas, sopas de peixe, açordas, arroz de marisco. 

A meio caminho, mas para mim muito mais próxima em qualidade do açafrão valenciano, a açaflor açoriana. Como o grande açafrão, é produzido de flores, não de sementes, mas, ao contrário do açafrão "rico", é de toda a flor, pétalas secas incluídas. A flor é de cártamo, ou açafrão bastardo (Carthamus tinctorius). Começou por ser uma planta de tinturaria, impôs-se depois na cozinha açoriana. Depois de secas ao sol e trituradas as flores, resultam uns pequenos fios, avermelhados. Têm sabor forte mas elegante, incomparável com a rusticidade do açafrão indiano.

Vende-se nas lojas açorianas em Lisboa e, com fartura (e a preços cada vez maiores), nos supermercados açorianos. Tem diversos usos nas cozinhas das ilhas. É essencial para todo o tempero de peixes, em sopa ou nos molhos, como o de salsa verde, que vão também com marisco cozido simples. Na Terceira, entra no molho de unha com que se comem as favas, nas tabernas. Também na fava rica micaelense, muito diferente. E, principalmente, nos “todolos tamperos” micaelenses, que entram em quase tudo da cozinha da ilha, açafroa mais colorau, cominhos, erva doce, pimenta preta, cravinho. 

Uma preciosidade, como uma vez escreveu um amigo meu, em memórias de infância de pé descalço. Com a féria, ia-se à mercearia e, feitas as contas, sobravam uns tostões. “O que é que queres de troco?”. “Tamperos!”. Era quase moeda. Ai, as minhas ilhas!

NOTA - Mais uma vez, aqui vem à baila a relação Açores e Alto Alentejo, mesmo alto, zona de Portalegre, Nisa, Castelo de Vide. As relações são manifestas, na onomástica e mais nos nomes de família, nos costumes, na música, na cozinha, na arquitetura de poder, na pronúncia. No entanto, nada nas velhas crónicas insulares, desde logo na principal, as "Saudades da Terra", de Gaspar Frutuoso indica uma origem privilegiadamente alto-tejana do povoamento dos Açores, em particular de S. Miguel. Quando Frutuoso cita a origem dos povoadores mais notáveis, é do Minho ao Algarve. Muito provavelmente, as ilhas foram povoadas por gente aventureira de todos os cantos do país, numa mescla que hoje faz delas um miniálbum de todo o Portugal medieval. A relação com a tal zona da região de Portalegre é mais provavelmente inversa, do seu repovoamento por milhares de micaelenses, em tempos de Pina Manique.

Malagueta

Já muito escrevi sobre a malagueta, em particular sobre a malagueta açoriana (mais marcadamente micaelense). Era hábito pouco vulgar no continente, o tempero com malaguetas (ou, em pó, com pimenta da Caiena), até à grande aculturação dos soldados da guerra colonial e ao regresso dos “retornados”, habituados ao piripiri, que veio para durar. 

Já aqui muitas vezes me manifestei como nada apaixonado pelo simples picante com pouco sabor do piripiri, nada que se compare com a minha malagueta, uma malagueta grande (cerca de 12 cm) e "gorda" que veem na imagem. Ou mesmo a diversidade de malaguetas grandes - não o piripiri - que hoje vemos à venda, africanas, brasileiras, mexicanas, caribenhas. Mas é uma questão de gosto.

Na prática, este tipo de malaguetas grandes só difere no balanço entre sabor e picante (escala de Scoville). Isto controla-se, como digo já a seguir. Habitualmente, preparo a malagueta como já fazia o meu pai, muito simplesmente, na tradição micaelense. Para quem, como nós, privilegia o sabor em relação ao picante, o essencial é remover completamente os septos, a polpa junto ao pedúnculo e as sementes. Depois, curtir em muito sal, mais nada, duas semanas no frigorífico. Lavar, escorrer e moer, ou deixar em peça, em água com muito sal. Lavar bem antes de usar e dar desconto no sal de tempero do cozinhado.

Normalmente, moia-a, mas hoje, por compra local ou na lojas açorianas de Lisboa, aqui e aqui, consigo tanta massa de malagueta que prefiro manter em peça os meus preparados caseiros. É mais difícil de encontrar, mesmo a malagueta crua, no mercado de Ponta Delgada, toda abarbatada pelas indústrias de “massa de pimenta”.

No entanto, há pratos que muitas vezes fazia com massa de malagueta mas que beneficiam da malagueta em peça, picada não muito fino. É o caso do bife e dos chicharros de molho de vilão (no meu livro "Gosto de Bem Comer").

Recebi há dias a oferta de malaguetas frescas. Oferta a um irmão meu, que a partilhou comigo. Veio à conversa com quem lhas enviou, o meu primo HS, que a avó da minha prima, senhora terceirense do círculo da minha avó, também as fazia de outra forma, de curtume. O curtume, nos Açores, está circunscrito quase que só à Terceira, como “picles caseiros”.
Muito simplesmente, pôr sal grosso no fundo de um frasco com tampa, encher com legumes em pedaços, cobrir com vinagre. Tipicamente, não se dispensa como legumes as cebolinhas, a cenoura, o feijão verde e as uvas verdes, para dar “agraço”. Também pimentão mas, nas ilhas de baixo, menos a malagueta, mais característica de S. Miguel. Opcionalmente, em cozinhas mais elaboradas, temperar com pimenta preta e pimenta da Jamaica, louro.
Ora, como a minha avó, extremamente inventiva na cozinha, se adaptou a ir viver e comer em S. Miguel, o mesmo aconteceu, por casamento, à avó da minha prima. Não sabia ou não queria preparar malagueta à micaelense, mas quem não tem cão… Passou a fazê-la como o curtume da sua ilha.

E foi o que fiz, metade por metade, com estas malaguetas que o meu irmão recebeu e que partilhou. Ambas as preparações ficaram excelentes. Experimentem com as malaguetas que aqui compram. Não são a mesma coisa, mas enfim…

E ainda há mais duas coisas que fiz, agora com malaguetas "de cá" (?). Primeiro uma espécie de salmoura agridoce, com vinagre, muito sal, açúcar e ervas e temperos adivinhem o quê. Truque, um rápido "escaldanço", choque de temperatura, arrefecimento em gelo logo a seguir. Também uma excelente compota, criação de um meu irmão que não divulgo.

Apanham-me pelo pé,
Levam-me para o fabrico,
Metem-me depois em moura
— E assim para ali fico —
Mas aquele que me furar
— é a esse mesmo que pico.

(Urbano Mendonça Dias)