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terça-feira, 18 de setembro de 2012

Cozinha macaronésica - menor múltiplo comum

Macaronésia é, como se sabe, o conjunto dos quatro arquipélagos atlânticos, Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde. A ideia vem de uma antiga lenda grega, das ilhas afortunadas, eventualmente os restos da mítica Atlântida (gostava de voltar a ler o álbum de BD da minha infância, do Prof. Mortimer, sobre a Atlândida, aonde ele chega partindo de uma gruta de S. Miguel). De facto, fora isto, pode-se duvidar do fundamento científico de agrupar os quatro arquipélagos, principalmente da inclusão dos Açores.

Têm os quatro em comum a sua origem vulcânica, mas em eras muitos diferentes. Ela é evidente, na orografia, nos Açores e nas Canárias, mas menos nos mais antigos, Madeira e Cabo Verde (exceto no Fogo). Só os Açores se situam na crista dorsal. Os outros arquipélagos emergem da placa africana.

(Já agora, abro parênteses para uma curiosidade. São os Açores terra europeia? Claro que historicamente, etnicamente, politicamente, são Europa e costuma dizer-se que as Flores são o extremo ocidental da Europa. Geologicamente, não é verdade, porque o grupo ocidental dos Açores emergiu no lado ocidental do “rift”, ao contrário das outras sete ilhas. O Corvo é o ponto mais oriental da América).

Também a flora e a fauna têm relações, embora com variantes decorrentes de tão grande dispersão em latitude. Laurissilva, dragoeiro, muitas espécies endémicas, os milhafres ainda hoje comuns que foram vistos erradamente como açores e deram nome às ilhas, são regra geral, mesmo em Cabo Verde hoje semi-desértico, onde registos antigos dizem que havia toda uma grande mancha verde de "mato", plantas baixas (equivalente à laurissilva?), antes do desbastamento e das cabras.

E não têm os macaronésios uma cultura comum? Claro que sim, descontando as rivalidades com raízes históricas antigas entre açorianos e madeirenses e o relativo desconhecimento mútuo entre os ilhéus falantes de português e de espanhol. Claro que sim, na trasbordante simpatia das gentes, naquela coisa indefinível com que a minha mulher sorri ao me dizer "ilhéu tosco".

Por isto, em qualquer encontro (como eu há poucos meses com um grupo de universitários canarinos) vem logo ao de cima a insularidade. E com efeitos práticos. Quem quiser compreender, em termos pragmaticamente políticos, a alarvice de Jardim, em contraponto com uma forma especial, também minha, de elaboração intelectual, anteriana, de João Bosco (meu antípoda político mas intelectualmente próximo, desde a juventude), tem de perceber o que é a insularidade. Eles são as duas faces da mesma moedas, mas uma moeda só de circulação local.

Comum mesmo, para o que aqui conta de nota gastronómica, é o facto de, com exceção das Canárias e dos seus guanches, todos os arquipélagos terem sido povoados de novo, por gentes que trouxeram das metrópoles (Portugal e Espanha não muito diferentes gastronomicamente) os seus usos culinários ou que os misturaram com cozinhas mais pobres, como a dos escravos negros idos para Cabo Verde.

Depois, sendo todas as ilhas porta-aviões ancorados no fundo do mar, o enorme trânsito de produtos alimentares entre América e África. Nos quatro macaronésicos, com exceção da mandioca em Cabo Verde, vinda de África, e sem pensar nas frutas, predomina a importação de produtos americanos, comuns a todos os arquipélagos, com destaque para batata doce, inhame, milho. Também, africanas, as malaguetas, mas curiosamente com muita diferença entre as ilhas.

O atum é elo de união de todos os arquipélagos. Cozinha de atum, para um ilhéu como eu, dá um tratado. Fica para depois.

No meu regresso de férias cabo-verdianas, fiz um estudo comparativo, tão exaustivo quanto possível a um amador, sobre os ingredientes e as cozinhas macaronésias. Encontrei diferenças enriquecedoras, mas ressaltou do quadro uma enorme matriz comum. A partir dela, fiz o exercício que se segue.

Há coisas comuns a várias cozinhas ilhoas, mas não a todas. Por isto, não as incluo na lista do tudo comum. Por exemplo, a mandioca só em Cabo Verde.  A caiota (chuchu) só nos Açores. O mogango só nos Açores e na Madeira. O açafrão-açaflor só nos Açores e nas Canárias. A Jamaica, a canela, o cravinho, desconhecidos em Cabo Verde. Muitas outras são o menor múltiplo comum das cozinhas dos arquipélagos. 

É possível homenagear a Macaronésia com uma receita única, que todos podem fazer com os ingredientes locais de todos os arquipélagos. Podia escolher várias coisas, mas atendendo à importância atlântica da pesca, vou por uma sopa de peixe, facilmente adaptável a sopa de carne ou galinha ou a um estufado ou guisado (ver nota 1). Como disse, nenhum ingrediente nesta receita deixa de ser comum à cozinha tradicional de todos os arquipélagos. Fica aqui o meu desafio: que nenhum restaurante das ilhas deixe de fazer esta sopa, símbolo da Macaronésia (e não cobro direitos de autor!). Nenhum ilhéu deixará de se rever neste menor múltiplo comum das cozinhas macaronésicas.

Sopa macaronésica
800 g de peixe de carne firme, 200 g de atum fresco. 4 c. sopa de óleo (ver nota 2), 1 cebola grande, 3 dentes de alho, 1 pimentão, 2 tomates grandes maduros, 1 folha de louro. Sal marinho, pimenta branca. 3 batatas, 1 batata doce grande, 1 inhame, 200 g de abóbora, 2 bananas verdes com casca. 1 raminho de salsa, malagueta, cominhos (ver nota 3), farinha de milho.
Separar as cabeças do peixe e cortar o resto em postas estreitas. Cozer as cabeças em água com sal e pimenta. Reservar o caldo e aproveitar a carne do peixe. Refogar a cebola e o alho, com o louro, acrescentar a cebola e deixar apurar um pouco. Cobrir com as postas de peixe e o atum e alourá-las durante 3 minutos de cada lado. Retirar e desmanchar o peixe em pedaços grandes. Juntar ao refogado os legumes cortados em cubos pequenos, os temperos e o caldo. Cozer, 15 minutos. Acrescentar o peixe e ferver mais 10 minutos. Diluir farinha de milho num pouco da sopa e acrescentar, para engrossar um pouco.

Nota 1 - Há bastante tempo, na minha página de receitas e agora incluída na compilação “Livro de Receitas - I”, publiquei uma receita de Sopa macaronésica de tudo ou cachupa em versão açoriana”. É parente desta de hoje, como coisa impressionista antes deste estudo mais rigoroso de agora.

Nota 2 - Hoje, felizmente para quem cuida da sua nutrição, muita gente lá usa o azeite, mas não é tradicional. Azeite, ido dos reinos, era caro e só para fins especiais, não para gordura de cozinha. Tradicionais eram as gorduras animais, primeiro a banha, mais popular, depois a manteiga para quem tinha mais posses. Para fritos em maior quantidade, refogados, guisados, era o óleo de amendoim, da Guiné. 

Nota 3 - Ao fazer este estudo, vejo que uma das maiores diferenças nas cozinhas macaronésicas é o uso das especiarias. Riquíssimo e diversificado nos Açores, por negócio das naus da volta do largo, a pagar com tudo de valioso os frescos que lhes faltavam desde a Índia: pimenta branca, preta e da Jamaica, cravinho, noz moscada, canela. Com mais coisas ancestrais, como o colorau, a erva doce, as muitas ervas. Na Madeira (não esquecendo a segurelha) e nas Canárias, menos. Em Cabo Verde, quase nada, fora sal, pimenta branca, salsa e malagueta. Fica um tempero comum, ancestral, os cominhos, que mesmo em Cabo Verde se usam para uma receita tradicional de lulas guisadas.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Ainda Cabo Verde

Uma das coisas muito boas que comi no hotel na Boavista foi uma sopa de peixe. É emblemática  e disse-me quem sabe que estava bem feita, como fazia na sua casa de Sal Rei. Registei o que continha - era fácil de ver - e o que percebi como sabores e temperos. A técnica era básica. O resultado era excelente. Simplesmente, ao procurar receitas, encontrei muitas e diferentes, embora com matriz comum. Se googlarem, encontram-nas.

Isto é vulgar na cozinha tradicional. Quanto mais popular é o prato, quanto mais frequentemente feito, mais as famílias lhe introduzem os seus toques distintivos. Como cá, em que cada um tem o "seu" cozido, a "sua" feijoada, ou em que a "sopa de pedra" da morena é a melhor que há, diz ela e eu confirmo, como acho insuperáveis o meu polvo guisado com vinho de cheiro ou as minhas favas de taberna. Assim se enriquece o património gastronómico. 

Ora Cabo Verde é muito mais de peixe do que de carne (apesar de as pessoas pensarem logo é na cachupa, que até, para quem não tem posses, é só de legumes), o que dá grande margem a variação da norma. Ainda por cima, sendo ilhas (continua a falar-se em 10, tantas quantas as estrelas da bandeira, embora S. Luzia esteja deserta desde há muito) mais variam as receitas.

Nestas situações, o meu método parece-me rigoroso. Vejo o que é comum em todas as receitas e adoto religiosamente. No que variam, vejo se as coisas são coerentes com a base comum, com a história, com a produção local de produtos alimentares (por exemplo, não vou facilmente por curgete ou alho francês numa receita cabo-verdiana, assim como também não iria numa receita açoriana genuinamente tradicional). Finalmente, vendo os casos em que a variação é legítima e depende apenas do gosto pessoal, faço-me local e vou pelo meu gosto pessoal.

Como exceção à regra de só publicar receitas no meu sítio - agora em página renovada depois de a anterior ter dado livro - vai a seguir a minha versão, que julgo que nenhum cabo-verdiano desprezará. Fica antes a questão da escolha de peixes, que merece crónica.

Em regra, para sopas de peixe, misturo, à açoriana, peixe que se desfaz (chicharro/carapau) ou acrescentado á última hora com peixes nobres de carne firme, como garoupa, mero, cherne, corvina, a aparecer no fim na sopa como pequenos pedaços visíveis e bem consistentes. Ontem, no Pingo Doce, estranhei ter de esperar por 10 senhas antes da minha. Só depois vi que era mais uma daquelas promoções de 50%. Como nenhum desses peixes estava em promoção, também não estavam à venda. Acabei por usar cantaril e pargo, e não ficou mal. Simplesmente, a empregada estranhou: “só quer coisas que não estão em promoção?”

Ainda a promoção, antes da receita. Perca do Nilo era o que mais sobrava. Comi uma só vez, fazendo-a em lombo, em fritura assimétrica e detestei. A morena diz-me que, nos tempos de vida só, antes desta alegre casinha, fez uma vez e deu por positiva a relação preço-qualidade. Que o que fiz mal foi valorizar demais o peixe, na confeção. Tem de ser disfarçado, ou num arroz ou num estufado com legumes e sabores fortes, para não saber a lodo. Afinal, como o tamboril, peixe ordinário e barato do meu tempo de estudante de bolsa magra, hoje requintado. Alguém lhe tira bom proveito sem ser no agora icónico arroz? Vale-lhe o fígado, embora insípido e encortiçado, já que os magníficos fígados de salmonete - como é que faço salmonete à setubalense? - ou de rocaz (rascasso) vão para o lixo antes que compre o peixe.

E vamos à “minha” sopa de peixe de Cabo Verde.
6 pessoas. 1 kg de peixe, 4 c. sopa de óleo (todas as receitas hoje referem azeite, mas tal como nas minhas ilhas, a gordura para refogado era óleo ou em casos banha), 1 cebola grande, 4 dentes de alho, 4 tomates maduros sem pevides ou 200 ml de polpa de tomate, 1 raminho de salsa, ½ mandioca, 2 batatas, 1 batata doce grande, 1 inhame, 1 banana verde, 300 g de abóbora, 1 pimentão verde pequeno. 2 c. sopa de vinagre. 100 g de cuscus (genuinamente, cuscus de milho). Sal, pimenta branca, louro. 
Arranjar o peixe em postas não muito grossas. Separar as cabeças e fazer caldo, simples, só com 2,5 l de água, sal e pimenta branca. Refogar a cebola picada e o alho laminado, com a folha de louro e o pimentão cortado em tiras finas. Misturar com o tomate, dar mais umas voltas e colocar as postas de peixe sobre este refogado, durante 3 minutos, virando e mantendo por igual tempo. Remover e reservar. Juntar todos os legumes (a banana com casca!) em pedaços pequenos, o vinagre, o caldo e cozer durante 20 minutos. Voltar a juntar o peixe, aos pedaços, limpos de pele e espinhas, mais o peixe das cabeças. Acrescentar o cuscus e temperar. Ferver mais 15 minutos. Fica uma sopa muito espessa. Quem a quiser mais leve pode dilui-la em caldo de peixe ou usar só 50 g de cuscus.
NOTA - Fico com dúvidas sobre o picante. A sopa que comi era um pouco picante e mostrava restos de "pimento". Há receitas que indicam piripiri que, ao que por lá apurei, não é tradicional de Cabo Verde. Tradicionalmente, como me disseram cozinheiras do hotel, só se tempera com pimenta branca, mas vejo receitas com “malagueta” ou “pimento”. Quanto a malagueta, creio que em Cabo Verde se usa a malagueta verde, estreita. Chamam também pimento a um pimento cónico com polpa mole, tipo pimento padrão, mas pouco picante. Nesta experiência, reservei um pouco da sopa para temperar ou com a tal malagueta verde, que comprei no supermercado, ou com pimentos padrão escaldados para perderem excesso de picante. Ambas as sopas ficaram saborosas, especialmente aquela que levou as malaguetas verdes, mas não creio que adiante muito à receita simples que descrevi.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Mais sobre cozinha de Cabo Verde

Com as lides de regresso de viagem, ainda não tinha tido tempo de ir à net. Encontrei agora a referência a dois livros de receitas cabo-verdianas e a um sítio com uma extensa coleção de receitas.

Um dos livros é o “Cozinha tradicional de Cabo Verde”, de Maria Teresa Lyon de Castro, publicado pela Europa-América (tinha de ser...). Não tem indicação de ano ou de ISBN. Noto que a autora tem outros livros, de cozinha tailandesa e de cozinha russa. Tal enciclopedismo não me palpita bem.

Muito recomendado por diversos blogues das ilhas, da autoria de Maria de Lourdes Chantre, é o “Cozinha de Cabo Verde” (Editorial Presença, 1993, ISBN 9789722310468) que já confirmei que figura no catálogo da FNAC). 

Também um livro bilingue, no catálogo da Amazon: “Cozinha de Cabo Verde: A Cape Verdean - American Cookbook”, de Thomas D. Lopes.

Receitas avulsas há em vários blogues. A coleção mais extensa, de que não posso garantir a genuinidade, vem no Kumida di Téra. Vejo que algumas são praticamente iguais ao que me ensinou a minha “mestra” cozinheira anónima, na Boavista.

P. S. (4.9.2012) - E mais um sítio que só agora descobri, "CVNAPONTU".

domingo, 2 de setembro de 2012

Em Cabo Verde, o que comemos

Não posso dizer que tenhamos ficado com vasta experiência da cozinha tradicional de Cabo Verde, tal como a que já conhecíamos ou a que tínhamos investigado antes de lá ir. A primeira experiência, na Praia, ficou-se por pouco. Ao almoço, no hotel, comemos uma excelente posta de atum assado no forno, julgo que previamente marinado em sumo de limão, coberto com uma brunesa de legumes regada com leite de coco, tudo acompanhado com um bolo de arroz branco como raramente tenho visto tão bem feito. Mas lá nos disseram, honestamente, que aquilo era de "inspiração cabo-verdiana" mas não genuinamente tradicional.

Já ao jantar, porque a lista não oferecia nada de especial, fomos a um simples prego, muito bem feito - boa carne batida como se deve para prego, bem temperada com alho e pimenta preta - num excelente bar-esplanada do hotel, sobre a Prainha, refastelados à romana em divãs de aconchego de namoro. Isto porque no Plateau não conseguimos encontrar nenhum restaurante de cozinha cabo-verdiana. O Plateau alberga hoje, em todas as ruas, dezenas lojas de chineses intervaladas de quando em quando por restaurantes, mas uns bares de pizzas e hambúrgueres.

No Mindelo, por desventuras causadas pelos TACV, ou tínhamos tempo para ver a magnífica cidade de herança colonial, arquitetura rigorosamente preservada - muito mais do que na Praia - ou tempo para procurar um restaurante. 

Acabamos por ter uma experiência encantadora, um jantar de marisco na varanda (1 metro de largura!) do Chave de Ouro. É uma pensão à velha maneira portuguesa, decoração de antigas pensões lisboetas de africanistas em graciosa, um criado muito simpático, mas velhote a arrastar os pés. Para beber, pedi uma cerveja local, Strela, mas ele veio perguntar, mostrando uma Superbock, “não prefere esta?”. Simpatia caboverdiana é inexcedível.

O hotel da Boavista (Iberostar Club Boavista), onde fomos descansar depois do encontro com Cabo Verde real, com aquele que me ficou nha cretcheu (por eu ser ilhéu?), tinha boa oferta de restauração. Nos bares da piscina e da praia, boa variedade de componentes de saladas para combinar a gosto, com vários molhos bem feitos, minipizas, panquecas e seus melaços e xaropes, pequenos fritos de legumes cabo-verdianos, fruta, docinhos. Bebidas e cocktails, com e sem álcool, e sumos à discrição. As refeições principais eram num grande restaurante, em bufete. Mas antes, falarei do Gourmet, o melhor restaurante do hotel.

Espaço limitado, a exigir marcação, bem decorado, muito boa amesendação, bom serviço por empregadas ilhoas que não ficam a dever aos seus colegas lisboetas estrelados. Só dois menus, de cozinha elaborada, muito bons. Só dois, mais o suplemento extra de lagosta, mas dá para uma semana de férias. Todavia, sempre quase vazio! Por não se poder ir de calções e chanatas?… E era o único em que, por encomenda, se podia comer lagosta, um bicho mais do que suficiente para duas pessoas, por 23 euros! (os menus normais estavam incluídos no preço da diária). Único senão para mim, a lagosta vinha grelhada e um pouco seca. Pode ser esquisitice minha, mas marisco é por obrigação simplesmente cozido, de preferência em água do mar, como se fazia (faz-se ainda?) nas marisqueiras da minha ilha.

A acompanhar, vinho cabo-verdiano, “Chã”, coisa cuja existência desconhecia. Vinho da ilha do Fogo, de terras vulcânicas, como nas minhas ilhas. Com a lagosta, bebi o branco, muito agradável, elegante, meio-encorpado, de acidez e secura médias, um ligeiro toque doce e amariscado como o irmão ilhéu  verdelho dos Biscoitos. Mas casta diferente, a explicar isto: na versão crioula, “moacatel”. Não provei o tinto, também monovarietal, com a designação muito simples de “casta Tradicional”.

No fim, um grogue velho. Para mim, não há aguardente de cana (Brasil, Jamaica, Cuba, Madeira, etc.) que se compare ao grogue velho cabo-verdiano. Já não vou tanto é no “pontxe”, coisa adocicada com base em grogue, em que fervem melaço, grãos de café e limão. Curiosidade que talvez muito desconheçam: a macieza e o tom dourado do grogue velho não vêm de envelhecimento em madeira, mas sim em potes de barro. Lembrei-me do que vi em Tennessee, com os uisques caseiros de tipo Jack Daniel's.

O hotel anunciava que o seu bufete tinha sempre cozinha cabo-verdiana. Não é verdade, como me palpitou e depois confirmei junto de quem sabia. De cabo-verdiano foi cachupa uma vez (a ir só provar à pressa, depois do jantar de lagosta, e a não aprovar em relação à versão da Mena que faço ou à da Casa da Morna), uma vez canja, outra sopa de peixe, ainda lulas guisadas, outra vez cocada, como sobremesa. 

Tudo o resto era uma coleção de estufados diversos - vitela, porco, frango, coelho, até codornizes - repetitivos, a evocar o estilo cabo-verdiano (?) mas sempre a saber ao mesmo: refogado em óleo, bastante tomate, pimenta branca e malagueta (mas o picante não é tipicamente cabo-verdiano - ver nota, no fim), batata doce e mandioca a evocar África (mas normalmente com falta da abóbora), mas mais cenouras, curgetes e ervilhas que não vêm ao caso, assim como pimentos diversos. Em geral, faltava o milho, o ingrediente mais característico da cozinha de Cabo Verde, a planta que se vê semeada em tudo o que é canto arável de terra, mesmo que uma nesga à beira da estrada.

No entanto, não critico esta opção por uma oferta de cozinha “à moda de Cabo Verde", desde que seja claramente identificada como tal. Até é um projeto que estou a finalizar para ementas turísticas da hotelaria micaelense. O que me suscita dúvidas é que, ao que apurei, toda essa cozinha foi concebida desleixadamente por um chefe espanhol (nacionalidade da empresa do hotel), lista de uma única receita de base com muda isto ou aquilo. Ao ver um prato, eu no fim já sabia a que me saberia.

Para além do que comi, e de coisas que já conheço e que me faltaram, como o moje, o peixe assado ou o xerém, ouvi gabar pelo pessoal de mesa a variedade de doces da cozinha cabo-verdiana - gufongo, variados fritos de batata doce, banana ou abóbora, cuscus com mel de cana, etc., que não encontrei no hotel. Era tudo gente gulosa, de sorriso escancarado (ai, sorriso ilhéu, também da minha gente) a falar nos seus doces!... e eu com muita conversa a atrapalhar-lhes o trabalho - mas no fim já vinham meter conversa de comidas e de como era em "tu téra". Comigo a tentar desembrulhar-me em crioulo, coisa divertida. Senhores, há turismo e turismo!

Fiquei a conhecer algumas receitas. Das receitas que aqui deixo como exemplo, uma, a emblemática cachupa, já publiquei, oferta de excelente cozinheira, para além de outras qualidades, a Mena Pepetela. A sopa de atum e a cocada, a comporem refeição, aprendi-as agora e fiz hoje enquanto estava próxima a memória dos sabores. Ajustei por mim as quantidades (fazendo equivalência com a “chávena e copo” que me deram como receita) e a técnica. Creio que, não sendo especialista, não me saiu mal. Ontem já tinha feito, agora aprendida, uma canja de galinha, com idêntico apreço.

Canja de galinha
½ galinha, 120 g de arroz*, 1 c. de sopa de óleo, 2 dentes de alho, 1-2 tomates maduros, ½ mandioca, uma batata doce, 1 inhame, 1 folha de louro, hortelã, sal a gosto, pimenta, malagueta se se quiser.
Cortar a galinha em pedaços pequenos, esfregar com sal e pimenta e com o alho pisado em sal, mais o louro. Deixar temperar algum tempo. Picar grado a cebola e refogar. Juntar a galinha e seu tempero. Quando alourada, juntar o tomate picado e voltear. Adicionar água q. b. e, ao ferver, o arroz. A seguir os legumes, em brunesa. Deixar apurar. No fim, pimenta e hortelã.
* Disse-me uma jovem animadora que na sua casa faziam com massa. Variação de arroz e massa, como em Portugal?
Sopa de atum
500 g de atum fresco*, 2 c. sopa de óleo, 2 cebolas, 3 dentes de alho, 2 tomates, 1 c. Sopa de massa de pimentão (opcional), pimenta, sal (e malagueta), farinha de milho (rolon) q. b. para fazer a sopa um pouco cremosa, água, coentros.
Colocar o atum a refogar, com azeite, cebola, tomate, alho, pimentão, pimenta, sal e malagueta, mexendo a desfazer o atum. Adicionar a água. Quando ferver, juntar cerca de meia chávena de farinha de milho, e deixe ferver até ficar apurado. No fim, juntar um molho de coentros picados. 
* Na falta, creio que não sairá mal a sopa com atum de conserva. Também me disseram que, em vez da farinha de milho se pode usar cuscus de milho.
Cachupa rica
500 g de milho branco pisado grosso, 250 g de feijoca, 250 g de feijão vermelho, 250 g de entrecosto, 250 g de carne de porco, 150 g de cachaço de vaca, 1/2 chouriço, 1/2 morcela, 100 g de toucinho, ½ frango, 1 repolho pequeno, 2 batatas doces, 1 mandioca, 1 cebola grande, 4 dentes de alho, sal, pimenta, louro, eventualmente piripiri.
Cozer separadamente, sem sal, milho branco pelado, feijoca e feijão de pedra (vermelho). Cozer as carnes e os enchidos. No caldo da carne, sem as carnes, cozer, em bocados grandes, repolho, batata doce e mandioca, bem como a cebola e o alho picados. Misturar  as carnes, o milho, o feijão e os legumes cortados em pedaços pequenos. Temperar com sal, pimenta e louro, molhar com os caldos e deixar apurar.
Cocada
10 ovos, 250 g de açúcar, 300 g de coco ralado, casca ralada de 1 limão, 125 g de manteiga derretida, sumo de ½ limão.
 Bater muito bem o açúcar com a manteiga derretida, os ovos (sem separar gema e clara), a casca ralada do limão e o sumo do meio limão. Adicionar o coco envolvendo bem sem bater. Verter a mistura numa forma bem untada com manteiga e levar a cozer em banho-maria cerca de 50 minutos em forno médio (180º). Depois de cozido deixar arrefecer um pouco e desenformar. Servir frio, cortado em cubos. 
NOTA - Tempero é coisa importante na cozinha cabo-verdiana, mas pela quase ausência. O sabor é só dos ingredientes. Como repetidamente me disseram, "tempero não é preciso, vem das coisas. Só pimenta, mas só desta" - e apontavam para a pimenta branca que estava na mesa. No entanto, diziam que havia quem gostasse de picante. De picante, ao que apurei, umas malaguetas do tipo das malaguetas compridas e estreitas que se vendem cá (diferentes da malagueta larga achatada dos Açores), mas um pouco mais pequenas e verdes. Também o muito bom "pimento", verde, cónico, com cerca de 10 cm de comprimento, de polpa pouco espessa e mole, muito saboroso e quase nada picante.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Férias em Cabo Verde

Cabo Verde, nha cretcheu!

Passamos férias em Cabo Verde, país lusófono que não conhecíamos. País de interseção para  estes dois nós, tão díspares em origem, tão próximos no que a origem traça de linha de rumo de encontro. Ilhéu atlântico e branco, mas ilhas são sempre igualmente ilhas, na formação do espírito. Angolana dos grandes espaços continentais, a respirar savana, mas que descobriu agora em ilhas tão bizarras a alma de toda a gente africana, metade da sua gente, com outra metade que fez na vida com gentes do mundo (e que mais não seja, o irresistível abanar de corpo na dança que vem lá dos dentros, seja merengue ou kizomba lá na terra da morena, seja coladera ou funaná em Cabo Verde).

Não podemos deixar de escrever sobre isso, mas onde e como? Para quem tem dois blogues, um de notas políticas, sociais, culturais, e outro de gastronomia (onde também cabe o lazer), é um desafio: em qual escrever isto ou aquilo? Claro que também "o gosto de bem comer" é o comer onde, como, quando. É comer saboreando a história. É cultura nossa e, em terras alheias, é o diálogo entre a cultura nossa e a dos nossos anfitriões.

A primeira entrada é fácil, vai aparecer em ambos, com algum desconchavo, porque ainda venho dominado pelo gosto de férias de pensar ligeiro, solto, em notas esvoaçantes. Como gosto muito de conversar com M. de la Palisse (ou com o antigo e venerando cabeça de abóbora), começo por dizer que Cabo Verde são ilhas. Mas não é patetice de todo. Os quatro pilares da Macaronésia fizeram-se de povoamento duro, nuns casos por europeus brancos, rudes e verticais, coisa ainda hoje marcante, Açores e Madeira; mistura grande nas Canárias; escravos negros em Cabo Verde, desde tempos em que, segundo livro do séc. XVII que lá comprei, havia 30 brancos.

No entanto, a miscigenação foi forte, passou por lá marinhagem diversa europeia - principalmente no ciclo económico do carvão para o Porto Grande - mestiço feito regado com grogue e, hoje, quase que se fica com a noção de haver uma tipologia física cabo-verdiana, embora diversa. Altos e magros, pele pigmentada de claro a muito escuro, mas frequentemente cabelos pouco encarapinhados, até olhos claros, anatomia da laringe com pouca guturalidade e falar doce (ao contrário da Guiné e Angola), corpos femininos de grande esbelteza, muitas vezes feições tão caucasianas que só a cor de pele trai. Da gente africana mais bonita que conheço.

Disse que são ilhas, também a lembrar-me de coisa minha de açoriano, a pluridimensionalidade, sobreposta, dos afetos. Primeiro Cabo Verde, mas depois a ilha materna. “Vieste de Portugal para Boavista para praia?” “Não, quisemos conhecer a tua terra, andamos antes uns dias em Santiago e em S. Vicente”. E aí, sorriso rasgado, ou "Santiago, minha ilha, é o máximo", ou "S. Vicente não é capital mas merecia, minha ilha”. Só um ilhéu tosco - como alguém insiste em pensar que este tratamento é o mais terno que há… - compreende outro ilhéu ainda mais tosco, de Santiago ou de S. Vicente. Já agora, ilhéu que tem quem lhe chame ilhéu tosco tem com isso quem tenha a intuição do que é a insularidade, tanto mar e tão pouca terra. Terra duramente conquistada, a exigir caráter. Lembram-se dos corvinos que foram a Angra falar com Mouzinho?

A paisagem mostra as diferenças de antiguidade vulcânica na Macaronésia (não falo das Canárias, que não conheço). Não é nada difícil ver-se logo que o magnífico Porto Grande do Mindelo é uma enorme cratera vulcânica semi-submarina. O Fogo obviamente não engana, como vulcão. Mais difícil é perceber-se que a Serra Malagueta em Santiago ou as suas montanhas já muito carcomidas pela erosão, deixando magníficos recortes de rocha, imaginação de escultor, são restos de vulcões. O que não engana é o omnipresente basalto e as magníficas hematites, em todos os tons de vermelho.

Aliás, é o mesmo na Madeira. Fora algumas formações do litoral (Câmara de Lobos, Machico), qual é o amador de geologia que apostará em que os grandes picos, Ruivo e do Areeiro, são vulcânicos? Nada comparável com as crateras jovens e suas lagoas das minhas ilhas açorianas.

Não posso continuar sem referir o que direi mais tarde e depois. Um país, “nôs tera”, é a sua gente. E, tanto quanto conheço razoavelmente África, Cabo Verde é um exemplo. A gente, muita, com quem falei, só podia andar de chanatas e vestir modestamente. Mas tinha um considerável nível de educação, de articulação de conversa, de observação e de reflexão crítica sobre a sua sociedade. E um evidente patriotismo e orgulho nacional, coisa que não fica mal a ninguém.

Desgostou-me só, mas compreendo, o esquecimento ou ignorância do passado, mesmo que recente. Até a memória de Amílcar Cabral me pareceu um pouco esfumada. A visita a Chão Bom é um episódio de passagem, quase uma curiosidade turística, numa volta pelo interior montanhoso de Santiago - muito bonita com a vegetação húmida a contrastar com a secura das zonas baixas. Embora visitantes como nós verguem por igual a cabeça à memória de presos portugueses e africanos, o campo evoca hoje muito mais a reabertura por Adriano Moreira para os presos dos anos 60, dos movimentos de libertação, do que a geração de três décadas antes, dos portugueses, em especial dos que lá morreram. Até, irmanados na morte lenta, os dois maiores adversários na política operária portuguesa, Bento Gonçalves, comunista e Mário Castelhano, anarquista.

NOTA - “nha cretcheu”: minha amada, minha muito querida.