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quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Pastéis de nata à Alain Ducasse

Como inscrito da sua “Académie du Goût”, tenho muitas receitas de Alain Ducasse, célebre chef francês, com três restaurantes cada um com três estrelas Michelin. Entre elas, encontrei a que publiquei ontem, bem na época, a do bolo-rei (“couronne des róis”). Encontrei também outra de que já não me lembrava. Imaginem! Pastéis de nata, na sua versão.
La gourmandise sucrée portugaise par excellence est bien entendue la Pasteis de nata. Ce mini flan pâtissier est sans aucun doute le nouveau dessert à faire découvrir à vos proches. On le retrouve dans toutes les pâtisseries et boulangeries portugaises et désormais chez vous grâce à ce pas à pas. 
INGRÉDIENTS (20 PIÈCES). Préparation de la pâte feuilletée: 500 g de pâte feuilletée Préparation du flan au citron: Les tartelettes, 1 citron non traité, 20 g de farine, 50 cl de lait ½ écrémé, 250 g de sucre semoule, 1 petit verre d’eau (5 cl), 4 jaunes d’œufs, 2 œufs 
PRÉPARATION. Étape 1: Préparation de la pâte feuilletée. Cliquer ici pour voir en vidéo la recette de la pâte feuilletée. Tailler le rouleau de pâte feuilletée en 20 tranches de 1,5 cm d’épaisseur environ et les étaler légèrement avec un rouleau à pâtisserie. Foncer au fur et à mesure 20 petits moules à tartelettes. Couper l’excédent de pâte. Les réserver au frais pendant 20 minutes.Étape 2: Préparation du flan au citron. Préchauffer le four à 250°C. Avec un couteau économe, prélever un zeste de citron de 1 cm de largeur environ. Déposer la farine dans une casserole, verser le lait au fur et à mesure dessus en fouettant puis ajouter le zeste de citron et porter le lait à ébullition en fouettant souvent. Retirer la casserole du feu dès la première ébullition. Verser le sucre et l’eau dans une autre casserole et le cuire jusqu’à 110°C, quand il forme de grosses bulles. Le verser peu à peu, en fouettant, dans la casserole du lait. Ajouter ensuite les jaunes d’œufs et les œufs, toujours en fouettant.Remplir chaque tartelette aux trois quarts de flan au citron. Les déposer sur la plaque du four et les cuire pendant 8 minutes. Sortir la plaque. Débarrasser les moules sur une grille et les laisser refroidir pendant 2 minutes. Démouler les pasteis de narta quand ils sont tièdes et les laisser refroidir complètement. Les dresser sur le plat de service.
Comparam-se com os portugueses? Vou fazer e depois digo. De qualquer forma, a receita dos pastéis de Belém é secreta, se bem que eu prefira outros pastéis, por exemplo da Aloma. Mas alguém se não um picuinhas experimentalista se dá ao trabalho de fazer os seus pastéis, em vez de os comprar numa boa pastelaria? Para esses, há receitas, como a publicada por Maria de Lourdes Modesto na sua Cozinha Tradicional Portuguesa”:
Para a massa folhada: 500 g de farinha, 500 g de manteiga ou de margarina para folhados, 2-3 dl de água, sal. Em alternativa, massa já preparada, à venda nos hipermercados. Para o creme: 5 dl de natas, 8 gemas, 2 c. chá de farinha, 200 g de açúcar, casca de limão. 
Massa. Dividir a gordura em três partes iguais. Derreter o sal na água morna. Espalhar a farinha, fazer uma cova e aí juntar a água. Amassar bem e deixar descansar cerca de 20 minutos. Estender em quadrado. barrar com uma parte de gordura amolecida, exceto uma barra de 1 cm a todo o perímetro do quadrado. Dobrar a massa de baixo para cima e da esquerda para a direita, ajustando bem os bordos. Estender bem a massa, em quadrado. Repetir duas vezes este procedimento. Estender bem fina, formar rolo, cortar rodelas e preencher as formas. 
Creme. Misturar todos os ingredientes. Levantar fervura, retirar do lume e, quando morno, encher as formas. 
Assar em forno muito quente, 250-300º. Polvilhar com açúcar confeiteiro e canela.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Torresmos de molho de fígado

Na última entrada, a propósito do uso corrente de limões galegos nos Açores, falei de um prato típico micaelense que não os dispensa, os torresmos de molho de fígado ou, popularmente e em abreviado, molho de fígado. Há outro tipo de torresmos, os simples ou “de pauzinho” (por causa das costelas), de que não vou falar agora. 

Em qualquer dos casos, são confitados, conservados na banha solidificada. Por isto, era menos vulgar, na cidade, fazê-los em casa do que comprá-los nas barracas (o nome açoriano dos lugares de frutas e hortaliças). Quantas vezes os fui comprar ao Sr. Lopes, da Casa Verde. Retirados dos característicos potes grandes de louça da Vila, lá iam para casa já com a envolvente de banha para a fritura. Quem os apreciava removia boa parte dessa banha, como removemos a gordura de pato de um confit. Por isto me faz impressão ver hoje as pessoas nos supermercados de Ponta Delgada comprarem molho de fígado a nadar numa gordura enjoativa.

Note-se que também eram comida vulgar de taberna. Não era vergonha nenhuma no meu tempo ir de panela à taberna comprar alguns petiscos, mesmo que também alternassem com os feitos em casa – o polvo guisado em vinho de cheiro e as favas secas, assim como, no Balão da Ribeira Grande os célebres canarinhos.

Pela sua tipicidade e diferença em relação a tudo o que se faz no continente como rojões e semelhante (os torresmos nos Açores não são as tiras fritas de pele e toucinho), os torresmos de molho de fígado serão uma boa surpresa para os vossos amigos, com a vantagem de praticamente tudo se poder obter no continente. Excepção para a insubstituível malagueta micaelense e para a açaflor, (não é a curcuma ou açafrão indiano ou amarelo!) mas que já se vendem nas duas lojas açorianas de Lisboa (R. S. Julião, 58 e Av. Elias Garcia, 57). A caiena pode ser um longínquo substituto da malagueta, mas nunca o piripiri.

A carne de porco e o fígado, tudo em cubos grandes, são marinados em vinha de alhos com bastante limão galego e temperos. Vai a fritar na própria gordura ou com um pouco mais de banha primeiro a carne e mais tarde o fígado, molhando de vez em quando com um pouco da marinada. O molho deve ficar bem apurado, para o que contribui um bom pedaço de fígado bem desfeito. Como é vulgar na cozinha açoriana, pode-se comer sem acompanhamento. Quando há, é geralmente o inhame ou o minhoto, uma variante maios pequena e mais saborosa do inhame. Inhame decente é que também só se encontra cá nas tais lojas, porque o que se vende nos hipermercados é, para mim, incomestível. A alternativa é simplesmente batata cozida ou batata doce cozida.

Ao fim de muito revirar os torresmos e a banha dentro do pote, vai-se formando uma massa desfeita que se chama pé de torresmo. É uma deliciosa pasta para sandes. Hoje já se faz industrialmente, moendo os torresmos com um pouco do seu molho e, ao que me dizem, um pouco de vinho. Em casa, prefiro os que faço à moda antiga.

O molho de fígado da minha avó paterna era considerado uma especialidade e fazia as delícias dos 14 filhos (!). Nos jantares de família inteira, era prato habitual e não me lembro de quem o rejeitasse. Não deixou a receita e as minhas tias não eram muito viradas para a cozinha. Vale que herdei do meu pai uma excelente memória gustativa e, em experiências sucessivas com ele na prova final, que a princípio me deixavam muito frustrado (“está bom, mas ainda não é o da tua avó”), cheguei a uma receita que os sobreviventes da família garantem ser a da minha avó. Mais adiante, passarei essa receita.

Esse molho de fígado não diferia das variantes que descrevi nas carnes, no vinho nem no limão galego, mas sim nos condimentos. Propositadamente, não os referi acima, porque, na melhor recolha de cozinha micaelense, do já falecido Augusto Gomes, e em recolhas minhas, a variedade de temperos é muito grande: um ou mais de entre colorau, erva-doce, canela, pimenta preta ou pimenta branca, para além, claro de malagueta (pimenta da terra). As proporções também variam muito, de receita para receita.

Todos estes condimentos são marcantes na cozinha micaelense. As morcelas que maravilham os turistas levam o sangue coagulado, mais cebola e alho, temperado com malagueta, bastante canela e erva-doce. O debulho – sangue cozido esmagado num refogado – também é temperado com esses condimentos. Mais caracteristicamente, as “favas de taberna” (fava rica, de fava seca) levavam obrigatoriamente “temperos”. Julgo que é difícil encontrar lá este prato, do melhor da cozinha micaelense. Felizmente, posso dá-lo a conhecer aos meus amigos, porque me gabo de o fazer muito bem, aprendido na juventude com uma excelente cozinheira popular.

O que são esses temperos, popularmente chamados, com bom sotaque, “todolos tamparos”? Luís Aguiar, conterrâneo e velho amigo, conta nas suas histórias do Pico da Pedra (“Raiz Comovida”) que ia à mercearia a recado da mãe e que frequentemente o troco era dado em temperos. De facto, faziam-se na mercearia ou nos armazéns de secos e molhados. Faz recordar tempos muito antigos de passagem pelos Açores das naus da Índia e em que as especiarias também eram moeda, não tanto para compra de mercearia mas para mais avultado negócio de frescos.

Durante muitos anos não soube qual era a sua composição mais ou menos secreta – cada armazém diria hoje que tinha os melhores temperos do mundo, mesmo que o mundo se ficasse por S. Miguel. Foi por um amigo do meu pai já reformado de encarregado de um armazém que obtive a receita. Não é fácil de a fazer em pequena quantidade, pela desproporção entre os ingredientes, a pedir balanças de sensibilidade diferente. Aqui vai.
100 g de colorau (pimentão doce),100 g de erva doce, 20 g de canela, 5 g de pimenta preta, 5 g de cravinho, 5 g de cominhos. Se se quiser preparar uma dose pequena, 2,5 c. sopa de colorau, 2,5 c. sopa de erva doce, 1/2 c. sopa de canela, 1 c. chá de pimenta preta, 1 c. chá de cravinho, 1 c. chá de cominhos.
Vai então aqui a receita da minha avó que, com muito esforço, julgo ter recuperado e que a tal minha memória gustativa aprova.
500 g de lombo de porco, 750 g de entrecosto (da parte com mais carne), 250 g de toucinho, 500 g de fígado de porco em peça, 125 g de banha, vinha de alhos com 4 limões galegos (substituir por meia laranja, três limas e um limão grande). 
Cortar todas as carnes em pedaços de bom tamanho e deixar pelo menos um dia em vinha de alhos: um copo de vinho branco, 4 c. sopa de vinagre, 5-6 dentes de alho pisados com 1 c. sopa de sal grosso, 1 c. sopa de malagueta, uma folha de louro, 8-10 grãos de pimenta preta, 4 cravinhos, meia c. sopa de açaflor, 3 c. sopa de “temperos”, 4 limões galegos aos quartos, espremidos, água q. b. A minha avó juntava também uma isca de baço de porco, esfarelada.Numa panela sem gordura, derreter a banha do toucinho. Em alternativa, derreter banha. Juntar todas as carnes, bem escorridas e fritar bem a lume forte durante bastante tempo, mexendo, até secar o líquido, ficando só a gordura e as carnes estarem bem fritas. Entretanto, cozer à parte o fígado. Juntar às carnes a vinha de alhos coada, por partes e ferver, a apurar bem. A meio, juntar o fígado, tirando alguns pedaços que se esmagam bem num pouco do caldo e que se misturam com o molho, a engrossá-lo. Também há quem frite o fígado cru na fritada das carnes, mas fica muito seco e duro. Prefiro cozê-lo à parte e juntar só quase no fim.

domingo, 11 de novembro de 2012

Outra vez o bife à café

Muito tenho escrito aqui sobre o bife à café (não é bife com café!). Hoje, é coisa que se come ainda em algumas cervejarias tradicionais ou cafés-restaurantes como o Nicola ou o Império. Na grande generalidade dos restaurantes de bairro, come-se o “bife da casa” – seja lá o que isto signifique – ou o habitualmente execrável bitoque.

No meu tempo de jovem estudante, o bife era essencial, era o luxo que nos permitíamos depois de uma reunião associativa bem frutuosa. Como muitas dessas reuniões eram na minha casa, na então Av. 28 de Maio, no prédio depois famoso pelo caso Casa Pia, de que nunca suspeitei, lá íamos ao José Ricardo, na Av. da República. Não era grande coisa, mas era notável em relação qualidade preço: um bom bife por 12$50 (hoje 6 cêntimos!). Perto também havia o 1º de Maio. De resto, mais uns icónicos, a sobressair a Portugália, então só na cervejaria original na Almirante Reis. Com o terraço com cinema, coisa magnífica.

O bife à café tem muitas variantes porque a sua origem tem pouco mais de 100 anos. Antes, o que se comia nas tascas anexas aos talhos era um simples bife frito em banha, muitas vezes com alho e louro, "à cortador". Temperos e presunto vieram depois. Também era assim na minha terra, e até hoje, mas, lá, juntando malagueta e desglaciando com vinho branco.

A grande inovação veio com o bife do Marrare do polimento, na R. dos Sapateiros, afrancesado, com pimenta preta e nata. Caiu no gosto dos seus frequentadores de ceia depois do S. Carlos, sabia-lhes ao que Fradique escrevia nas suas cartas, só não entrou no jantar oferecido por João da Ega ao cornudo do Cohen porque bife não era coisa requintada para jantar de gente bem educada e no Hotel Central.

Mas bife com natas era coisa amaricada e carota para o cliente de taberna. Daí vem a sua adaptação a bife à café. Bifes à café há muitos, mas podemos definir o essencial: à manteiga de fritar o bife junta-se farinha ou fécula de batata diluída em leite; tempera-se com mostarda e sumo de limão. Claro que sem café, “à café” e “com café” são coisas bem diferentes. Como receita básica, é tudo. O resto é aquilo em que se vê o artista.

O meu artista de hoje estava mal inspirado. Fui ao Relento, em Algés, boa catedral de bifes da minha juventude. Tinha ido lá há um ano ou mais, mas a morena moderou-me, “está muita gente, talvez seja a razão da má qualidade”. Hoje não havia razão, almoço com o meu filho em sala vazia. Opinião unânime de dois: boa carne (creio que alcatra), grande quantidade (talvez 300 g), ovos de fritura impecável em equilíbrio de gema e clara, boas batatas fritas. Mas molho execrável, farinhento, a saber só a mostarda de má qualidade, nem Savora devia ser. Só água, nada de sabor de leite. Nada do fundo de fritar o bife.

Para não me acusarem de falar de poleiro, aqui fica a minha receita.

À MARGEM – Vai sair coisa brejeira. Há muitos anos, ainda eu andava pelos lados de Entrecamos, is muito a um restaurante banal, de "barra", ali na zona. era seu frequentador um pândego, miserável mas muito composto e de porte digno, que só jantava uma taça de arroz doce, não tinha dinheiro para mais mas também não pedia. O que fazia sempre era lastimar-se para os vizinhos do banco ao lado: "nesta altura é que me lembro daquele ordinário do meu capitão: saia lá esse cabrão de bife com as putas das batatas fritas!"

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Cozinha tradicional

Já aqui escrevi várias vezes sobre cozinha tradicional e o respeito que ela merece. Dessas notas devem ter ficado com a ideia de que considero haver uma boa margem de variação. Não sou fundamentalista e estou convencido de que a cozinha tradicional, como tudo na vida e na cultura, foi evoluindo por correção de erros e introdução de aperfeiçoamentos. 

Não se alterou com a introdução de novos produtos no fumeiro e na horta? Não se alterou pela mudança da trempe à lareira para o fogão? Não se alterou por informação dietética? Não se alterou por aculturações, como, por exemplo, o uso generalizado de piripiri depois de milhares de soldados o terem apreciado na guerra colonial?

Todavia, a balizar a outra margem da variação, exijo respeito pela matriz fundamental dos sabores ancestrais, do equilíbrio gastronómico que levou séculos a fazer-se. Recordando Manuel Pedrosa, “aka” Sttau Monteiro, jaquinzinhos com natas nunca serão cozinha tradicional portuguesa. E muitos mais exemplos da oferta restaurativa banal e pervertida que damos aos nossos visitantes.

Lembre-se também que, do mesmo prato, há variantes regionais significativas. Como exemplo, a dobrada. Com enchidos, galinha, feijão branco no Porto, mais arroz. Sem galinha, no sul. Com batata em vez de feijão nos Açores.

Falando de dobrada, aqui vai um exemplo pessoal da tal margem legítima de variação. Dirão que esta entrada é de baixo nível, mas olhem que não. Não vou dar receita simples, apenas ilustrar com a minha maneira de a fazer aquilo que entendo ser a diferença entre fundamentalismo e rigor sensato.

Coisa por que me alambazo, foi nosso almoço domingo. A dobrada é cozida em água com uma folha de louro, dentes de alho inteiros só um pouco esmagados e uma cebola picada com cravinho. Entretanto, o feijão posto a cozer não foi branco, mas manteiga. Na tradição açoriana (exceto nas sopas) e na angolana – as duas influências de infância cá em casa – feijão rajado (catarino) ou pelo menos manteiga. Refogado em banha (agora substituída por gordura dietética de cozinha) de cebola e alho. A dobrada muito bem volteada no refogado, com linguiça micaelense (cá chouriço um pouco picante) e bacon, em cubos. Depois polpa de tomate e mais umas voltas, meio minuto. Cobrir com o caldo coado, juntar sal, pimenta preta e pimenta da Jamaica, cominhos, um pouco de massa de malagueta e cozer mais 15 minutos. Mais o feijão e o “pé” da sua cozedura. Salsa picada e mais cozedura a lume baixo, até apurar o molho. “C’est tout!”

Não é nenhuma receita universal, é a minha receita pessoal. Não a imponho a ninguém, mas creio que cumpre o essencial: variação pessoal e com influências bem definidas de um cânone tradicional

Mas também posso fazer coisa muito diferente, nunca lhe chamando de cozinha tradicional. Por exemplo, depois do guisado e antes do feijão, cortar a dobrada em pedaços pequenos, juntar só alguns feijões, pedacinhos de bacon salteado e cubos muito pequenos de pimentão vermelho assado ou salteado, rechear uma forma de massa quebrada, polvilhar com tosta ralada e levar ao forno. Servir com puré de feijão manteiga e com verdes a enfeitar, molhando o prato com um aveludado feito com o caldo e com q. b. de moído do molho do guisado. 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Cozinha macaronésica - menor múltiplo comum

Macaronésia é, como se sabe, o conjunto dos quatro arquipélagos atlânticos, Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde. A ideia vem de uma antiga lenda grega, das ilhas afortunadas, eventualmente os restos da mítica Atlântida (gostava de voltar a ler o álbum de BD da minha infância, do Prof. Mortimer, sobre a Atlândida, aonde ele chega partindo de uma gruta de S. Miguel). De facto, fora isto, pode-se duvidar do fundamento científico de agrupar os quatro arquipélagos, principalmente da inclusão dos Açores.

Têm os quatro em comum a sua origem vulcânica, mas em eras muitos diferentes. Ela é evidente, na orografia, nos Açores e nas Canárias, mas menos nos mais antigos, Madeira e Cabo Verde (exceto no Fogo). Só os Açores se situam na crista dorsal. Os outros arquipélagos emergem da placa africana.

(Já agora, abro parênteses para uma curiosidade. São os Açores terra europeia? Claro que historicamente, etnicamente, politicamente, são Europa e costuma dizer-se que as Flores são o extremo ocidental da Europa. Geologicamente, não é verdade, porque o grupo ocidental dos Açores emergiu no lado ocidental do “rift”, ao contrário das outras sete ilhas. O Corvo é o ponto mais oriental da América).

Também a flora e a fauna têm relações, embora com variantes decorrentes de tão grande dispersão em latitude. Laurissilva, dragoeiro, muitas espécies endémicas, os milhafres ainda hoje comuns que foram vistos erradamente como açores e deram nome às ilhas, são regra geral, mesmo em Cabo Verde hoje semi-desértico, onde registos antigos dizem que havia toda uma grande mancha verde de "mato", plantas baixas (equivalente à laurissilva?), antes do desbastamento e das cabras.

E não têm os macaronésios uma cultura comum? Claro que sim, descontando as rivalidades com raízes históricas antigas entre açorianos e madeirenses e o relativo desconhecimento mútuo entre os ilhéus falantes de português e de espanhol. Claro que sim, na trasbordante simpatia das gentes, naquela coisa indefinível com que a minha mulher sorri ao me dizer "ilhéu tosco".

Por isto, em qualquer encontro (como eu há poucos meses com um grupo de universitários canarinos) vem logo ao de cima a insularidade. E com efeitos práticos. Quem quiser compreender, em termos pragmaticamente políticos, a alarvice de Jardim, em contraponto com uma forma especial, também minha, de elaboração intelectual, anteriana, de João Bosco (meu antípoda político mas intelectualmente próximo, desde a juventude), tem de perceber o que é a insularidade. Eles são as duas faces da mesma moedas, mas uma moeda só de circulação local.

Comum mesmo, para o que aqui conta de nota gastronómica, é o facto de, com exceção das Canárias e dos seus guanches, todos os arquipélagos terem sido povoados de novo, por gentes que trouxeram das metrópoles (Portugal e Espanha não muito diferentes gastronomicamente) os seus usos culinários ou que os misturaram com cozinhas mais pobres, como a dos escravos negros idos para Cabo Verde.

Depois, sendo todas as ilhas porta-aviões ancorados no fundo do mar, o enorme trânsito de produtos alimentares entre América e África. Nos quatro macaronésicos, com exceção da mandioca em Cabo Verde, vinda de África, e sem pensar nas frutas, predomina a importação de produtos americanos, comuns a todos os arquipélagos, com destaque para batata doce, inhame, milho. Também, africanas, as malaguetas, mas curiosamente com muita diferença entre as ilhas.

O atum é elo de união de todos os arquipélagos. Cozinha de atum, para um ilhéu como eu, dá um tratado. Fica para depois.

No meu regresso de férias cabo-verdianas, fiz um estudo comparativo, tão exaustivo quanto possível a um amador, sobre os ingredientes e as cozinhas macaronésias. Encontrei diferenças enriquecedoras, mas ressaltou do quadro uma enorme matriz comum. A partir dela, fiz o exercício que se segue.

Há coisas comuns a várias cozinhas ilhoas, mas não a todas. Por isto, não as incluo na lista do tudo comum. Por exemplo, a mandioca só em Cabo Verde.  A caiota (chuchu) só nos Açores. O mogango só nos Açores e na Madeira. O açafrão-açaflor só nos Açores e nas Canárias. A Jamaica, a canela, o cravinho, desconhecidos em Cabo Verde. Muitas outras são o menor múltiplo comum das cozinhas dos arquipélagos. 

É possível homenagear a Macaronésia com uma receita única, que todos podem fazer com os ingredientes locais de todos os arquipélagos. Podia escolher várias coisas, mas atendendo à importância atlântica da pesca, vou por uma sopa de peixe, facilmente adaptável a sopa de carne ou galinha ou a um estufado ou guisado (ver nota 1). Como disse, nenhum ingrediente nesta receita deixa de ser comum à cozinha tradicional de todos os arquipélagos. Fica aqui o meu desafio: que nenhum restaurante das ilhas deixe de fazer esta sopa, símbolo da Macaronésia (e não cobro direitos de autor!). Nenhum ilhéu deixará de se rever neste menor múltiplo comum das cozinhas macaronésicas.

Sopa macaronésica
800 g de peixe de carne firme, 200 g de atum fresco. 4 c. sopa de óleo (ver nota 2), 1 cebola grande, 3 dentes de alho, 1 pimentão, 2 tomates grandes maduros, 1 folha de louro. Sal marinho, pimenta branca. 3 batatas, 1 batata doce grande, 1 inhame, 200 g de abóbora, 2 bananas verdes com casca. 1 raminho de salsa, malagueta, cominhos (ver nota 3), farinha de milho.
Separar as cabeças do peixe e cortar o resto em postas estreitas. Cozer as cabeças em água com sal e pimenta. Reservar o caldo e aproveitar a carne do peixe. Refogar a cebola e o alho, com o louro, acrescentar a cebola e deixar apurar um pouco. Cobrir com as postas de peixe e o atum e alourá-las durante 3 minutos de cada lado. Retirar e desmanchar o peixe em pedaços grandes. Juntar ao refogado os legumes cortados em cubos pequenos, os temperos e o caldo. Cozer, 15 minutos. Acrescentar o peixe e ferver mais 10 minutos. Diluir farinha de milho num pouco da sopa e acrescentar, para engrossar um pouco.

Nota 1 - Há bastante tempo, na minha página de receitas e agora incluída na compilação “Livro de Receitas - I”, publiquei uma receita de Sopa macaronésica de tudo ou cachupa em versão açoriana”. É parente desta de hoje, como coisa impressionista antes deste estudo mais rigoroso de agora.

Nota 2 - Hoje, felizmente para quem cuida da sua nutrição, muita gente lá usa o azeite, mas não é tradicional. Azeite, ido dos reinos, era caro e só para fins especiais, não para gordura de cozinha. Tradicionais eram as gorduras animais, primeiro a banha, mais popular, depois a manteiga para quem tinha mais posses. Para fritos em maior quantidade, refogados, guisados, era o óleo de amendoim, da Guiné. 

Nota 3 - Ao fazer este estudo, vejo que uma das maiores diferenças nas cozinhas macaronésicas é o uso das especiarias. Riquíssimo e diversificado nos Açores, por negócio das naus da volta do largo, a pagar com tudo de valioso os frescos que lhes faltavam desde a Índia: pimenta branca, preta e da Jamaica, cravinho, noz moscada, canela. Com mais coisas ancestrais, como o colorau, a erva doce, as muitas ervas. Na Madeira (não esquecendo a segurelha) e nas Canárias, menos. Em Cabo Verde, quase nada, fora sal, pimenta branca, salsa e malagueta. Fica um tempero comum, ancestral, os cominhos, que mesmo em Cabo Verde se usam para uma receita tradicional de lulas guisadas.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Mais sobre cozinha de Cabo Verde

Com as lides de regresso de viagem, ainda não tinha tido tempo de ir à net. Encontrei agora a referência a dois livros de receitas cabo-verdianas e a um sítio com uma extensa coleção de receitas.

Um dos livros é o “Cozinha tradicional de Cabo Verde”, de Maria Teresa Lyon de Castro, publicado pela Europa-América (tinha de ser...). Não tem indicação de ano ou de ISBN. Noto que a autora tem outros livros, de cozinha tailandesa e de cozinha russa. Tal enciclopedismo não me palpita bem.

Muito recomendado por diversos blogues das ilhas, da autoria de Maria de Lourdes Chantre, é o “Cozinha de Cabo Verde” (Editorial Presença, 1993, ISBN 9789722310468) que já confirmei que figura no catálogo da FNAC). 

Também um livro bilingue, no catálogo da Amazon: “Cozinha de Cabo Verde: A Cape Verdean - American Cookbook”, de Thomas D. Lopes.

Receitas avulsas há em vários blogues. A coleção mais extensa, de que não posso garantir a genuinidade, vem no Kumida di Téra. Vejo que algumas são praticamente iguais ao que me ensinou a minha “mestra” cozinheira anónima, na Boavista.

P. S. (4.9.2012) - E mais um sítio que só agora descobri, "CVNAPONTU".

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Gato por lebre

Vários amigos têm polemizado comigo, aqui neste sítio, sobre o que acham ser meu demasiado rigor quanto à clareza de identificação de receitas da nossa cozinha tradicional. Acho estranho, numa época em que é vulgar a exigência quanto à importância do rótulo. Também em crise, em que tudo o que for valorização da qualidade turística é essencial, mesmo nos pequenos pormenores, como seja um turista passar palavra a outro de que se come em Portugal um excelente prato chamado …, e esse outro, aldrabado num restaurante sem qualidade, ficar “à nora”.
Em alguns casos, até são chefes conceituados que prevaricam. Não adianta nada chamar “Brás de …” a um preparado com essa simples base, do excelente bacalhau à Brás, mas que confunde o cliente. Ao menos, no meu tempo de Escola Naval de miliciano, o Vaga Morta chamava “carne à Brás”, e era bem boa. Em casa, os meus miúdos deliravam, gostavam mais do que do bacalhau.
Ainda no bacalhau, porque é que se chama “bacalhau à Gomes de Sá” a porcarias inconcebíveis, quando a receita genuína, nem muito antiga, está mais do que disponível, é fácil e barata? Só porque nunca somos sérios, em nada. É diferente de eu pretender “normalizar” um bacalhau com natas, coisa nas ementas diárias, como se tivesse de ser o bacalhau à Conde da Guarda de mestre João Ribeiro (então chamavam-se mestre, não chefe!). É caso para dizer "bacalhau com natas há muitos, seu parvalhão!". E é verdade, há muitos e não faz mal, porque não é prato codificado no nosso património tradicional de cozinha (até ver).
Mas não posso exigir, em defesa do nosso património gastronómico, que não façam o que se está a ver por aí, à espanhola, croquetes que afinal são uns fritos de puré de batata com algum condimento a dar nome, carne ou presunto? Ou que não ofendam Bulhão Pato juntando às amêijoas mostarda ou piripiri (façam se gostam, mas inventem outro nome)? Ou que chamem alheira a uma coisa de que talvez muita gente goste - eu não - misturando em enchido pão e bacalhau, mais um refogado?
Já aqui referi que há alguns casos especiais. Primeiro, o de antigas variantes que usam a mesma designação, de acordo com enraizada tradição local, como as bens distintas açordas estremenhas e as sopas (açordas) alentejanas, ou como as variedades ribatejana e alentejana de tiborna. Também a ambiguidade de pratos recentes, ainda pouco codificados, que o uso fará sedimentar, como é o caso da sopa de pedra, afinal um achado turístico a aproveitar o essencial das sopas rústicas de meio país.
Deixei para o fim o que me conduziu a esta crónica, a designação abusiva e generalizada de “à lagareiro”, antes só para bacalhau, hoje para tudo o que se grelhe - quando, afinal, lagareiro não tem nada a ver com grelha -, também polvo, choco, um dia destes frango ou secretos, estes a última maravilha da gastronomia portuguesa, 50% de gordura. Ainda não consegui perceber o que é a norma geral do lagareiro. Fora ser um grelhado regado com azeite, já vi cobertura só com alho, só com cebola, com ambos, com pimentão, com ou sem salsa, batata assada ou cozida. Só faltam os picles, coisa essencial (!) da cozinha portuguesa e que, há tempos, definiam toda a carne de porco frita, com ou sem amêijoas!
O que é afinal o bacalhau à lagareiro (o termo evoca o lagar de azeite)? Vou por autoridade reconhecida, Maria de Lourdes Modesto (já que Bento da Maia e Olleboma o não referem, o que me faz sempre suspeitar da fraca “tradicionalidade” de uma receita). Tudo menos o que por aí se vê. 

Não é grelhado, não leva cebolada nem suas primas. O bacalhau é incubado em leite e temperado com alho, sal, pimenta e sumo de limão. Depois, é embrulhado em ovo e pão ralado, frito, regado com azeite e levado ao forno a assar, comendo-se com batata cozida. É o bacalhau à lagareiro que se faz em todo o restaurante de esquina?

Isto tem a ver com coisas bem enraizadas e que nos distinguem da restauração popular francesa, italiana ou espanhola, por exemplo. Somos pouco exigentes como consumidores. Nunca houve um grande gosto solidificado em escrita, debate, elaboração, sobre a cozinha tradicional. Se acham que estou a exagerar, basta googlar, coisa determinante para informação nos dias de hoje. A crítica gastronómica em Portugal está de rastos, ninguém se atreve a afrontar bonzos. A pontificar na cozinha, as velhas avós fizeram escola por toda a parte, mas hoje cada vez mais vejo entre nós até estrangeiros. A nossa maneira tradicional, na expressão que sempre ouvi à minha avó, é “à matroca”. Tudo vale, não há rigor, temos afinal a sabedoria máxima do mercado, “o cliente gosta, a gente faz assim”.

sábado, 7 de abril de 2012

Truques e dicas, novamente


Volto aos comentários sobranceiros que alguns leitores-críticos me enviaram sobre as minhas dicas e truques, a seu ver elementares, isto apesar de ter recebido comentários favoráveis de outros leitores menos experientes. Morto por ter cão e morto por não o ter. Hoje, sai brincadeira para os meus leitores exigentes. Uma espécie de jogo de adivinhas, esperando que me respondam.
Vai-se tratar de coisa muito simples, empadas. Vou fazer hoje, para a festa pascoal de amanhã, à maneira antiga da minha ilha materna, a Terceira, as tradicionais empadas de peixe ("O Gosto de Bem Comer", pág. 309). Que até não se faziam em casa, compravam-se nas pastelarias, como a famosa do Athanázio, meu tio avô. Aqui ficam algumas perguntas.
1. Vou assá-las a 220-230º. Outras empadas asso a 180-200º. Porquê esta diferença?
2. Porque é que não unto antes as formas?
3. Porque é que deixo  o recheio algumas horas no frigorífico?
Não estou a brincar, tudo isto é importante e não é preciso ter-se tirado curso em escola de hotelaria. Basta ser-se amador com auto-exigência e com muito bem comer por este mundo fora, alguma leitura, experiência, gosto e humildade de se confrontar com as críticas de amigos sabedores.
Tudo isto resulta de muita experiência, de muito testar. Não há nenhum grande músico que não treine solfejo, nenhum pintor que não treine desenho, também nenhum cozinheiro que não treine sempre a técnica. Ontem que comi cabrito (em sexta santa, que horror!), pior do que noutro lado onde costumo comê-lo, pergunto: a diferença era no bicho? Não. Nos temperos? Não. Era na técnica! Aquilo que faz a diferença na cozinha tradicional, a “mão da cozinheira”, ou a “cozinha das avós”.
A net está cheia de blogues, que costumo chamar de tias cozinheiras, que são veneno para o bom gosto culinário. Uma começa por recolher uma receita e tem de a adaptar, para não ser só plágio. As leitoras não percebem que a açúcarzinha ou a dona do bistrot não domina minimamente a técnica e que a tal sua adaptação só piora uma receita já de origem banal. No fim, depois de vários ciclos destes, a coisa é intragável. Mas como é que blogues de gente com critério publicitam essas tias?

segunda-feira, 19 de março de 2012

Cozinha rústica

Tenho sido criticado por mostrar uma cozinha de “autor-amador” reveladora de pessoa que tem tempo e dinheiro disponível para alguns requintes técnicos e de qualidade de produtos. Admito a crítica, mas não se ela significar alguma suspeita de enfado meu ou desinteresse pela cozinha tradicional. Gosto imenso de a comer e de a fazer. Também de descobrir por este país fora restaurantes desse género de que já tenho dado aqui larga notícia.
O que pode talvez iludir os meus leitores é que não dou habitualmente receitas de cozinha rústica (meu termo, nada pejorativo, para uma coisa que mistura cozinha popular ou pequeno-burguesa, cozinha tradicional, cozinha da avó, cozinha comercial de outros tempos até hoje, da casa de pasto e da tasca ao restaurante de bairro). Não se justifica dar receitas porque, quando a faço, sou o mais conservador possível, não inovo (às vezes só tecnicamente). Tenho respeito reverencial pelas avós cozinheiras, a começar pelas minhas e pelas que agora herdei de memórias e de proveito de boas receitas que não conhecia, de paragens distantes mas tão próximas e que me encheram dois anos longínquos de vida.
Diferente é inspirar-me na cozinha tradicional, relembrar os meus sabores de infância, para “reconstruir”. Mesmo isto não é linear, há reconstrução e há “falsificação honesta”. Geralmente, faço uma reconstrução que deixa bem patente que o tradicional é só a base de sustentação e de legitimação, como os esboços classicistas que Picasso desenhou antes de pintar o Guernica. É assim que já posso anunciar - já não dá tempo para ser ultrapassado - um novo livro de cozinha pessoal, de reinvenção da cozinha tradicional açoriana (será gratuito, “e-book”). Não tem um único ingrediente ou condimento que não seja genuinamente tradicional nas minhas ilhas. Foi a minha regra de ouro.
Não estava para anunciar ainda isto, mas fui provocado por um “post” da Alexandra Prado Coelho, a quem dou razão, dizendo que os visitantes aos Açores regressam maravilhados com as paisagens e desencantados com a comida nos restaurantes. Eu até vou dar aos restaurantes locais a total liberdade de usarem essas receitas que publicarei em breve.
Outra coisa que me diverte, como foi neste fim de semana, é a tal "falsificação honesta". Mantem-se ao nível e estilo da cozinha rústica, mas inventando coisas que já podiam ter sido inventadas há muito por cozinheiros populares anónimos mas não calhou. Nada de elaborado, de reconstrução ou inspiração erudita, é mesmo o gosto de um falsificador. Desta vez foi uma sopa rústica de carne e legumes (tricolores!).

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Aldrabices e coisas boas


É muito arriscado julgar-se que se conhece uma cozinha estranha quando não se a provou no sítio, repetidamente, em restaurantes aconselhados ou, melhor, em casa de amigos bons conhecedores e com boa memória dos sabores de criança. Quem fica por mostras, feiras, eventos, cá no sítio, arrisca-se a que lhe aconteça o que vai acontecer aos clientes de um restaurante americano que vai organizar uma semana de cozinha açoriana
Aconselho vivamente, vale a viagem! (espero que não levem a serio esta ironia). A ementa alista coisas tipicamente açorianas!..., como polvo à lagareiro, pastéis de bacalhau, arroz cremoso de peixe, carne de porco com amêijoas e gelado de figo. Palavras para quê?
Entretanto, quem me alertou para esta pérola também me deu a conhecer uma iniciativa que não conhecia, patrocinada pela companhia aérea açoriana, a SATA. É um sítio da net que merece visita, TasteAzores. O texto de apresentação está correto e as receitas, embora compreensivelmente em número quase simbólico (só 3), são genuínas. Ou a responsabilidade do sítio não fosse de uma minha estimadíssima cozinheira de mão cheia, com um grande património de cozinha familiar açoriana.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

As sete maravilhas

Tenho grande apreço por um bom gastrónomo, Virgílio Nogueiro Gomes, que me honra notificando-me sempre das suas crónicas. Hoje, soube por essa via que ele foi uma das “personalidades representativas da vida social portuguesa” que selecionaram os 21 candidatos finais a maravilhas gastronómicas. Claro que não tem culpa da parvoice do concurso e as escolhas que explica no seu texto são respeitáveis e criteriosas. 

Já agora, vou também eu fazer a minha escolha, como ele, e respeitando as categorias em causa. Não me vou condicionar pelas coisas postas a concurso, tão aldrabadas que até incluem queijo da Serra e alheira como entradas, um inventado coelho à Porto Santo, a receita secreta de pastéis de Belém.

O resultado final foi o do nível mais primário dos hábitos de comer do português "piplar". Tristes hábitos, de quem só se recorda da cozinha de infância de umas coisas banais que hoje lhe enfeitam o "fast food". O caldo verde, batata e couve, é um exemplo de boa cozinha de sopas, comparado com o perfume de uma açorda alentejana ou de uma açorda de hortelã açoriana ou de uma canja de conquilhas? Arroz por arroz, um arroz de mariscos (com arroz agulha, modernice de requinte!) é culinariamente superior a um requintado/popular arroz de cabidela, ou um arroz de sarrabulho, ou um arroz de carqueja, ou um arroz de substância? 

O que ganhou o concurso foi, simplesmente, o que, em ciclo vicioso, as pessoas comem hoje nos restaurantes baratos porque os restaurantes baratos lhes servem o que pensam que as pessoas querem. E assim se normalizam os gostos, se estreita a cultura gastronómica, mesmo ou principalmente a do homem comum.
Vou fazer duas grelhas. Uma organizada por tipo de pratos, como funcionou o concurso. Outra por regiões, com três pratos por cada. Embora eu pudesse recorrer a muito maior lista de pratos, vou adotar como regra, por facilitação e para comodidade dos leitores, só incluir receitas referidas por Maria de Lourdes Modesto no seu “Cozinha Tradicional Portuguesa”. Isto só me limita em relação às cozinhas dos Açores, aquelas em que mais me posso "espraiar". Veja-se que, em cada uma delas, nem sempre, ou até raramente, concordo com a escolha final deste concurso de má qualidade gastronómica.
Entradas: Fava rica com “todolos tamperos” de S. Miguel/Açores; pastéis de bacalhau ou pataniscas; pezinhos de coentrada. Só podem ser três, mas, a seguir, estopeta de atum, pipis, pastéis de massa tenra, peixinhos da horta, caracóis da Esperança, bolo lêvedo de S. Miguel com massa de malagueta, bolo do caco da Madeira.
Sopas: Açorda alentejana, sopa de Espírito Santo dos Açores, laburdo. Só podem ser três, mas, a seguir, gaspacho alentejano ou arjamolho algarvio, sopa alentejana de cação, sopa de beldroegas, sopa de funcho dos Açores, sopa de peixe rica da costa estremenha, sopa de pedra de Almeirim (descontando que não é cozinha tradicional ou que, melhor, é “sopa de fartura” de caráter nacional), caldo verde (que não é só minhoto), caldo de camarão da Praça da Ribeira.
Mariscos e moluscos: Lapas de molho Afonso (Açores), amêijoas à Bulhão Pato, arroz de marisco (mas com arroz carolino!). Só podem ser três, mas, a seguir, um marisco único, mesmo que cozinhado e muito bem apenas ao natural, as cracas. Também a lagosta suada à Peniche, que não fica atrás da requintada lagosta “à americana” de Pierre Fraise. Até a incluiria no trio vencedor, não fosse o sentido prático de que o consumo faz a regra e de que muita mais gente gosta de arroz de marisco e desconhece a lagosta suada. Incluo mais, embora de tradição recente, as feijoadas de mariscos. Quanto ao polvo, claro que o polvo guisado em vinho de cheiro dos Açores e o arroz de polvo continental. Mas não essa brincadeira de patuscos, um polvo assado açoriano.
Peixe: Bacalhau à Gomes de Sá, caldeirada (de peixes ou só de enguias), peixe assado. Só podem ser três, mas, a seguir, as sardinhas que chegaram à fase final deste concurso. A meu ver, embora me delicie com elas, não são nenhuma maravilha gastronómica, são coisa primária. Depois, muitos outros pratos de peixe, impossíveis de enumerar aqui. Destaque, obviamente, para a lampreia.
Caça: Perdiz de escabeche, escolhida pelo júri, muito bem, porque duvido de poder classificar como  gastronomia tradicional portuguesa as perdizes à Alcântara. No trio vencedor eu incluiria mais arroz ou feijão de lebre e alheira de caça. Claro que excluo liminarmente aquilo que o júri engoliu, um inexistente coelho à Porto Santo, inventado por um cozinheiro brincalhão para gozar com este concurso.
Carne: foram escolhidas a chanfana, o leitão da Bairrada e as tripas à moda do Porto. Não vou contra, são pratos excelentes, mas que mostram a injustiça do que fica de fora: o cabrito e o borrego assados, a alcatra terceirense, os rojões com sarrabulho, o ensopado de borrego, o lombo frito com migas, etc., etc.
Sobremesas: ficou o trio de pastéis de Tentúgal, pastéis de Belém e pudim do abade de Priscos. Descontando o fato de os pastéis de Belém não fazerem parte do património popular tradicional, por a sua receita ser secreta, concordo com esta escolha, mas como concordaria com muitas outras escolhas. A nossa doçaria é tão rica que não cabe em nenhum concurso.
Repare-se que, com isto, eliminei o queijo da Serra. Coisa imperdoável, como seria também o esquecimento do S. Jorge, do Serpa, do Azeitão. Não é culpa minha, é de quem o candidatou como entrada, presumo que a confraria. Muito mal andam as nossas confrarias! Um queijo, e logo o da Serra, é entrada? Queijo é sobremesa e, no caso de um Serra, a comer acompanhado por um bom Porto.
Passo para a outra grelha, a das regiões. Respeitando a regra dos 3x7, vou considerar como regiões Entre-Douro-e-Minho; Trás-os-Montes; Beiras; Ribatejo, Lisboa e Estremadura; Alentejo; Algarve; Ilhas.
Entre-Douro-e-Minho: bacalhau à Gomes de Sá, tripas à moda do Porto, rojões. Porque só podem ser três. A seguir, lampreia à bordalesa, cabrito assado, papas de sarrabulho, toucinho do céu, pudim do abade de Priscos. O caldo verde, eleito no fim, é uma banalidade culinária.
Trás-os-Montes: cabrito assado, folar ou bola, alheira de caça. Porque só podem ser três. A seguir,  feijoada à transmontana, posta de carne, rabanadas, cabidela, chícharos, cogumelos selvagens. 
Beiras: morcela da Guarda, chanfana, leitão. Porque só podem ser três. A seguir, trutas do Zêzere em escabeche, perdiz de escabeche, maranhos, tijelada, barriga de freira, ovos moles, pastéis de S. Clara, pastéis de Tentúgal.
Ribatejo, Lisboa e Estremadura: sopa rica de peixe, amêijoas à Bulhão Pato, frango na púcara (há quanto tempo não vejo esta coisa excelente, minha confeção frequente, nas ementas dos restaurantes?). Porque só podem ser três. A seguir, lagosta suada, bacalhau à Brás, sardinha assada (bem boa, mas coisa primária a ser maravilha gastronómica?), sopa de pedra, açorda de sável, “açorda” de marisco, torricados, caldeirada, pão de ló, queijadas de Sintra, creme de camarão. 

Sendo a grande zona metropolitana, é vulgar encaixar nela pratos nacionais, generalizados e de origem desconhecida. Por exemplo, os variados salgados, as iscas, o bife à café, o bife de cebolada, as ervilhas com ovos, as favas guisadas, os caracóis, os ovos verdes, os peixinhos da horta, os pipis, as farófias, o arroz doce, o pudim flã, os pastéis de nata, o bolo-rei.
Alentejo: açorda, ensopado de borrego, carne de porco frita com migas. Porque só podem ser três. A seguir, borrego assado, sopa de cação, pezinhos de coentrada, sopa de beldroegas, gaspacho, ovos com espargos, lebre com feijão, empadas de galinha, doces muitos.
Algarve: amêijoas na cataplana, bife de atum, D. Rodrigo e outros docinhos! Porque só podem ser três. A seguir, estopeta de atum, choquinhos com tinta, canja de conquilhas, xerém, cozido de grão. 
Ilhas: polvo guisado em vinho tinto, alcatra, sopa de funcho. Porque só podem ser três. A seguir, milho frito à madeirense, bolo do caco da Madeira, bolo de mel da Madeira, sopa de peixe com uvas de agraço, morcela de S. Miguel, peixe recheado, torresmos de molho de fígado, fava rica de taberna, função do Espírito Santo, lapas, carne “assada” na panela, massa sovada, doce de vinagre e muitos outros doces de colher.
Como é que eu escolheria as sete maravilhas? Esta limitação numérica é um insulto à riqueza e diversidade da nosso riquíssimo e variado património gastronómico.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Confusões de terminologia

Como falei nos últimos textos em confusão de terminologia de carnes, lembrei-me de outras questões de nomenclatura. Não vou falar de coisas recentes, a meu ver reveladoras de pouco rigor de cultura gastronómica, como seja, por exemplo, o uso abusivo que alguns chefes respeitáveis fazem de termos consagrados, como confitado, a confundir o consumidor. Noutros casos, a confusão é antiga e difícil de resolver.
Lembrei-me de coisa que sempre me despertou dúvidas, o nome consagrado (e escrito) de um típico doce-frito da minha ilha, a malassada. Nos Açores, os fritos não são de Natal, mas sim de carnaval. Sonhos, rabanadas, filhoses, coscorões, rosas do Egito e, em S. Miguel, as malassadas. Fazem-se com bastante farinha com fermento, açúcar (30 vezes menos), ovos, manteiga e/ou banha e leite. Depois de amassadas e levedadas, são fritas completamente imersas em óleo muito quente.
Também se fazem na Madeira, sinal da sua antiguidade na tradição culinária portuguesa, neste caso aparentemente perdida no continente. Em compensação, os ilhéus emigrantes popularizaram-nas nos EUA, até no Hawai. Para americanos, é coisa que cai bem, parece donuts.
Na pronúncia típica micaelense, são “malassadas”. Ortograficamente, sempre vi assim e é assim que Maria de Lourdes Modesto escreve, embora Augusto Gomes, notável recoletor de receitas açorianas, escreva “mal-assadas”. E é termo que figura nos nossos bons dicionários, mas com significado totalmente diferente. Veja-se no Cândido de Figueiredo: “malassada: ovos, que se batem e se fritam ao mesmo tempo”. Para mim, isto parece obviamente a descrição dos ovos mexidos.
Augusto Gomes defende a origem “malassada” com a referência mais antiga que também conheço, uma passagem do “Itinerário” de António Tenreiro (1529-…) em que se diz que “as iguarias que se deram geralmente foram carneiro e arroz guisado, tortas e mal-assadas de ovos com açúcar por cima”. Parece-me que se está a referir é aos ovos mexidos mal-assados dos dicionaristas, neste caso polvilhados com açúcar (que horror!…).
Esta questão, que já abordei antes, já não sei onde nem quando (googlem…) saltou-me agora à memória por causa de uma das muito boas notas de Virgílio Gomes, de que respigo:  
“Um dos elementos diferenciadores da doçaria conventual para a doçaria popular é que esta utiliza sempre, na receita, mais farinha do que açúcar. O açúcar era um produto de elevado preço o que levou vários reis a legislar para reduzir o seu consumo. (…) A doçaria popular era confecionada com melaço.”
Por isto, palpita-me que a designação das célebres malassadas micaelenses vem de corruptela de melaçadas. Teria quase a certeza se não fosse um óbice das regras da linguística, embora eu seja leigo nisso. Mas creio que é vulgar, e naquilo em que tenho estudado como amador a fonética micaelense, o “a” átono passar a “e” mudo mas não o inverso, como seria nessa passagem de “melaçada” para “malassada”. Há por aí algum linguista que dê a sua opinião?

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Sentidamente

A gastronomia portuguesa e, muito em particular, o estudo e a defesa da culinária tradicional, sofreram uma grande perda. E ressinto-me de uma ironia da vida, como vou contar. Não éramos propriamente amigos próximos, mas mantínhamos correspondência, com estima. Há ainda poucas semanas, depois de eu ter estranhado a sua ausência de escrita no Público, na coluna de sábado em que tantas vezes transcreveu receitas do meu livro, respondeu-me que ia surpreender com um projeto novo com que estava muito entusiasmado. Propositadamente, não adiantava pormenores, para manter "suspense". Não me passou pela cabeça que o seu manifesto entusiasmo era de alguém com tão curto tempo de vida à frente. Aqui fica a minha homenagem sincera a David Lopes Ramos.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Faisão estufado à antiga, em honra de Escoffier

Perco-me por caça, coisa de menino regalado com ofertas de “tio” caçador viciado, e com tia especialista em ensinar-nos a cozinhar o produto do domingo de tiro ao bicho. Até já comi morta de chumbo, excelente, uma que quase toda a gente só conhece de criação, a galinhola. E anoto que tenho experiência de açoriano, que caça lá é diferente. Há coisas que não conheci até aos meus 16 anos, lebre e perdiz, porque lá na ilha só coelho bravo e codorniz. Depois, em Angola, caça grossa, pacaça, sofro, melhor de todas a palanca (proibida, mas tropa não obedecia), outros variados antílopes, javali africano (não é o nosso!), que delícia de bifes, de assados ou de guisados! Também, em Angola, capota (a galinha pintada do mato), cabrito selvagem para a caldeirada e até macaco, não falando nos filetes de jacaré. Não estou a brincar...
Há uma exceção. Nunca comi faisão de caça genuína. Comi desde miúdo, nos Açores, mas de criação, numa quinta de amigos da minha avó ("Pinhal da Paz"). Mesmo assim, raridade, porque eram só poucas dezenas de bichos. Hoje compro-os cá, congelados, preferindo uns italianos importados. Foi o meu jantar de Páscoa, com um pormenor bastante “démodé”, já verão. Há coisas que me suscitam tanto a imagem de uma ceia no Maxime, depois de ver dançar La Goulue ou Jane Avril, com Valentin le désossé, que me dá para só desenhar academicamente correto, como no velho tempo do nosso “desenho de estátua”, sem um risco de carvão fora dos cânones - coitada da minha primeira namorada, que andou lá por S. Francisco ao Chiado. Toulouse que ficasse no Moulin a rabiscar coisas acompanhadas de absinto.
Nestas alturas, como neste caso do faisão, a minha criação fica estreitada pelas regras do classicismo. Há alturas para ver o elétrico desejo e há alturas para ver Hamlet. Não fica aqui a receita, reservada para quem se quiser dar ao trabalho de a ir procurar onde sabe que as tenho, e quem não sabe que se lixe!. É que não me quero sujeitar a que qualquer tia diga “que coisa pesporrenta, não há pachorra, ó meninas, o gajo baba-se com a técnica”. De fato, não há pachorra para uma hora de compras com sentido crítico, uma hora para fazer geleia de carne como se deve, uma hora para o estufado, ensaios sucessivos - uma colher disto agora outra depois - para o molho sair equilibrado. 
Isto tem a ver com o que disse no último “post”. Caldo Knorr e produtos industriais, porque não, desde que bem trabalhados - o que não é coisa elementar? Mas em dia de festa, em jantar especial para quem tudo merece, umas horas de trabalho valem muito mais do que o dinheiro de comprar excelentes chocolates. Mais uma mesa bem posta, com as pobres pratas da família, bem vestidos mesmo só para olhar um para o outro, velas acesas, Murganheira super-reserva bruto 2004, a quadragésima muito em surdina, charme q. b.
Nota 1 - Claro que o jantar também meteu sopa. Deixo aqui umas dicas, mas só entendíveis por quem foi ler a receita do faisão. A sopa era um creme banal de alho francês com leite (nata está-me proibida) e fécula de batata. A mais, subiu o nível juntar umas boas colheres do puré de legumes estufados e miúdos, e de geleia de carne. “It’s the difference, stupid!”.
Nota 2 - Claro que as mãos de novilho, com parte da geleia, deram o excelente guisado/gratinado que era, até eu escrever, “segredo” da minha família. Tudo se aproveita!
Nota 3 - A minha querida jovem amiga M (que não foi quem jantou comigo!…) disse-me que tinha ouvido num programa do Jamie Oliver uma jovem inglesa dizer que não sabia como acender o seu fogão porque, em casa, só usava o micro-ondas!

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Cozinha açoriana

Ontem houve cá no "ninho da águia" grande patuscada do grupo de amigos da cervejada, não muito frequente porque o indispensável Marcelo só lá de vez em quando se digna vir à terra dos mouros. Indispensável não tanto por ele, mas pelos chocolates para alimentar a metafísica da morena e pelo velho Porto do Alcino. Creio que para todos, também para o anfitrião que gosta de exibir o gosto de bem comer, é coisa bem mais agradável do que os encontros habituais de cervejaria, talvez a estimular ainda melhor conversa, pelo menos mais esbracejante, do que a habitual nesses tais nossos encontros.

Desta vez, havia o aliciante de ouvir em direto a narração da tarefa do V, recém-regressado do Bahrein, depois da Líbia, a mando da Al Qaeda, mas aproveitando, à Oliveira de Figueira, para umas especulações de petróleo, que subscrevemos ontem, com lucro de 15% que ele nos prometeu.

Fora um introito de cozinha angolana, feijão de óleo de palma, a marcar copropriedade morena do terreno (desculpem a quase-rima), o resto foi de açorianices que me gabo de ter recolhido com muito critério e certeza de genuinidade, tudo sob o tema de "cozinha de taberna": fava rica, polvo guisado em vinho tinto, torresmos de molho de fígado. Vinho é que não, que pena, porque vinhos hoje de boa qualidade nos Açores não são de mesa, só os ótimos Chico Maria, generosos, da Casa Brum (à venda na Loja Açores, em Lisboa).

Do que mais gostei foi do comentário do meu amigo JMCP. "Fiquei a acreditar na geração espontânea. Quando como por este país fora, estabeleço sempre as relações. Neste caso não, estes temperos são únicos, como é que vocês os inventaram lá no meio do mar?" Lá lhe expliquei coisas que têm a ver com o comércio ilegal das especiarias na volta do largo.