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quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Malagueta

Já muito escrevi sobre a malagueta, em particular sobre a malagueta açoriana (mais marcadamente micaelense). Era hábito pouco vulgar no continente, o tempero com malaguetas (ou, em pó, com pimenta da Caiena), até à grande aculturação dos soldados da guerra colonial e ao regresso dos “retornados”, habituados ao piripiri, que veio para durar. 

Já aqui muitas vezes me manifestei como nada apaixonado pelo simples picante com pouco sabor do piripiri, nada que se compare com a minha malagueta, uma malagueta grande (cerca de 12 cm) e "gorda" que veem na imagem. Ou mesmo a diversidade de malaguetas grandes - não o piripiri - que hoje vemos à venda, africanas, brasileiras, mexicanas, caribenhas. Mas é uma questão de gosto.

Na prática, este tipo de malaguetas grandes só difere no balanço entre sabor e picante (escala de Scoville). Isto controla-se, como digo já a seguir. Habitualmente, preparo a malagueta como já fazia o meu pai, muito simplesmente, na tradição micaelense. Para quem, como nós, privilegia o sabor em relação ao picante, o essencial é remover completamente os septos, a polpa junto ao pedúnculo e as sementes. Depois, curtir em muito sal, mais nada, duas semanas no frigorífico. Lavar, escorrer e moer, ou deixar em peça, em água com muito sal. Lavar bem antes de usar e dar desconto no sal de tempero do cozinhado.

Normalmente, moia-a, mas hoje, por compra local ou na lojas açorianas de Lisboa, aqui e aqui, consigo tanta massa de malagueta que prefiro manter em peça os meus preparados caseiros. É mais difícil de encontrar, mesmo a malagueta crua, no mercado de Ponta Delgada, toda abarbatada pelas indústrias de “massa de pimenta”.

No entanto, há pratos que muitas vezes fazia com massa de malagueta mas que beneficiam da malagueta em peça, picada não muito fino. É o caso do bife e dos chicharros de molho de vilão (no meu livro "Gosto de Bem Comer").

Recebi há dias a oferta de malaguetas frescas. Oferta a um irmão meu, que a partilhou comigo. Veio à conversa com quem lhas enviou, o meu primo HS, que a avó da minha prima, senhora terceirense do círculo da minha avó, também as fazia de outra forma, de curtume. O curtume, nos Açores, está circunscrito quase que só à Terceira, como “picles caseiros”.
Muito simplesmente, pôr sal grosso no fundo de um frasco com tampa, encher com legumes em pedaços, cobrir com vinagre. Tipicamente, não se dispensa como legumes as cebolinhas, a cenoura, o feijão verde e as uvas verdes, para dar “agraço”. Também pimentão mas, nas ilhas de baixo, menos a malagueta, mais característica de S. Miguel. Opcionalmente, em cozinhas mais elaboradas, temperar com pimenta preta e pimenta da Jamaica, louro.
Ora, como a minha avó, extremamente inventiva na cozinha, se adaptou a ir viver e comer em S. Miguel, o mesmo aconteceu, por casamento, à avó da minha prima. Não sabia ou não queria preparar malagueta à micaelense, mas quem não tem cão… Passou a fazê-la como o curtume da sua ilha.

E foi o que fiz, metade por metade, com estas malaguetas que o meu irmão recebeu e que partilhou. Ambas as preparações ficaram excelentes. Experimentem com as malaguetas que aqui compram. Não são a mesma coisa, mas enfim…

E ainda há mais duas coisas que fiz, agora com malaguetas "de cá" (?). Primeiro uma espécie de salmoura agridoce, com vinagre, muito sal, açúcar e ervas e temperos adivinhem o quê. Truque, um rápido "escaldanço", choque de temperatura, arrefecimento em gelo logo a seguir. Também uma excelente compota, criação de um meu irmão que não divulgo.

Apanham-me pelo pé,
Levam-me para o fabrico,
Metem-me depois em moura
— E assim para ali fico —
Mas aquele que me furar
— é a esse mesmo que pico.

(Urbano Mendonça Dias)

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Falar sem saber



A gastronomia hoje é um mundo, tão grande como o mundo. Quem a pode dominar? Depende do rigor dos autores. Há quem o limite ao que sabe, por conhecimento de infância, estudo ou prática. Escreve Miguel Esteves Cardoso no Fugas, do Público.
Nos Açores mas, sobretudo em São Miguel, existe o maravilhoso hábito de comer o queijinho fresco com pimenta da terra — uma massa de malaguetas suaves, que só eles têm e sabem preparar, que é o piri-piri mais delicioso e aromático do mundo. A melhor é a caseira porque as versões em frasco tendem a ser salgadas de mais.”
É difícil escrever tantos erros ou imprecisões em tão curto texto. Todo o texto anterior do artigo fala de queijo fresco de ovelha. Este parágrafo fará pensar que é também o queijo fresco nos Açores. Sempre foi de cabra (“quêje de cóbra”), embrulhado em folhas de conteira e excelentemente a ir com bolo lêvedo. A brucelose obrigou à mudança para queijo fresco de vaca, que não era tradicional, mas que, muito bom, é o que hoje mais se come nos Açores. E se formos à descrição de forma, até ela é desleixada no tal parágrafo. O queijo fresco de ovelha, no continente, é tradicionalmente um cilindro alto e estreito. Dificilmente se pode qualificar como queijinho um queijo fresco como o micaelense, achatado e com cerca de 10 cm de diâmetro.
Comido com massa de malagueta? Admito que MEC, ao falar do “maravilhoso hábito” - com que concordo - não esteja obrigatoriamente a considerá-lo tradicional. E não é. É invenção recente de restaurantes e pequeno almoço de hotéis. Nunca foi coisa da mesa da minha meninice e dos meus amigos, o que não quer dizer que não seja bom.
Abrindo parênteses, é como a "tradicionalíssima" (?!) morcela com ananás, coisa recente que alguém inventou quando os madeirenses inventaram juntar banana ao peixe espada. É bom, mas deixemos em paz respeitosa a tradição, que aqui não é tida nem achada.
A malagueta não é um piripiri. Quem sabe de pimentas de género capsicum não diz uma barbaridade destas. Há centenas de espécies e variantes, das quais o piripiri (gindungo em Angola) é apenas uma. A malagueta açoriana (essencialmente micaelense), provem da costa da Guiné (dizem as crónicas que do Benim) e é uma das malaguetas grandes, achatadas e com baixo índice na escala de picante de Scoville, como a da Caiena. O piripiri é uma pimenta/malagueta pequena, muito picante e com sabor pouco vincado, vulgar na África sub-equatoriana e na Índia.
Ao contrário do que escreve MEC, caseira e industrial não diferem em picante e em sal só por isso, mas pela forma como se faz (tirar ou não as pevides, mais ou menos tempo a curtir, lavar mais ou menos depois da salmoura). Há industriais muito suaves, há caseiras de quem gosta delas rústicas e muito fortes.

(Editado, 1.5.2012)