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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Jantar de S. Valentim

O jantar do dia de S. Valentim – essa introdução recente na cultura urbana portuguesa – é bom pretexto para reanimar este blogue, que tem estado em hibernação. Não é nosso hábito ir nesse dia a restaurantes, muito cheios. Jantamos em casa, esmeradamente, eu a cozinhar, a morena a dispor a mesa como em cerimónias as mais especiais, não esquecendo, claro, as velas e as flores.
Ontem fiz lagosta à americana. Esclareça-se, não se vá pensar que não sinto a crise, usei umas lagostinhas pequenas de Moçambique, congeladas, a 30 euros. Como são imprestáveis para comer como gosto mais, simplesmente cozidas, com molho de salsa verde da minha terra (cebola, salsa, sal, pimenta, malagueta e açaflor), usei a preparação à americana, como também uso frequentemente outra muito boa, à Thermidor.
Este prato célebre tem a sua história, embora controversa. Deve-se a Pierre Fraysse, cozinheiro francês que, depois de vários anos de trabalho na América, abriu em Paris o seu restaurante Peter’s, em 1854. Diz-se que uma noite, por volta dessa data, recebeu ao fim da noite um grupo de comensais importante, quando já só tinha alguns lavagantes (homard; lagosta é langouste em francês). Improvisando, com vinho, legumes, caldo de peixe (“fumet”) e algumas bases, serviu-lhes o que ficou célebre como lavagante à americana.
Isto seria homenagem ao país em que trabalhou muitos anos, com muito sucesso. No entanto, há quem diga que o nome é uma corruptela de “à la armoricaine”, zona da Bretanha famosa pelo seu marisco, mas esta receita não tem nada a ver com a cozinha bretã. também há quem radique esta receita no lavagante Bonnefoy, do restaurante do mesmo nome (e a quem se deve o molho Bonnefoy, uma variante do bordelês), antes conhecido como “langouste niçoise”.
Procurei em vão a receita original de Fraysse. Na net há dezenas de receitas, com muitas variantes, sobretudo da gama de legumes e de alguns processos de preparação. Acabei por fazer a receita do grande Escoffier (“Le Guide Culinaire”), com pequenas modificações minhas, que indicarei depois.
Ingredientes. Lavagante, 800-900 g, 2 chalotas, 1 dente de alho, 4 c. sopa de óleo, 130 g de manteiga, 1,5 cálice (7,5 cl) de aguardente, 2 dl de vinho branco, 1,5 dl de “fumet” (caldo de peixe com legumes, em água e vinho branco), 1 c. sopa de geleia de carne, 3 c. sopa de “demi-glace” (tenho sempre em casa, preparados com frequência e guardados no frigorífico ou no congelador, o caldo, a geleia e o molho “demi-glace”), 2 c. sopa de polpa de tomate, salsa, pimenta da Caiena.
Preparação. Separar as cabeças, pinças e patas. Cortar os lombos e caudas em troços. Numa caçarola larga, aquecer a lume médio (nível 10-12 na minha placa de indução) o óleo e 30 g de manteiga. Alourar bem os pedaços de lavagante, com cuidado para não queimar. Rejeitar a gordura, juntar as chalotas picadas e o alho esmagado. Flamejar com a aguardente. Juntar o vinho, o caldo, a geleia, o “demi-glace”, a polpa de tomate e os temperos. Tapar e cozer no forno, 15-20 minutos. Reservar a carne e reduzir o caldo até relativamente espesso. Fora do lume, incorporar, batendo, 100 g de manteiga, adicionada à carne das pinças e patas, e ao coral (ovas). Reintroduzir os pedaços de lavagante, aquecer sem ferver mais e polvilhar com salsa picada. Servir imediatamente.
Modificações minhas. Para além de ter usado lagostinhas, alterei pouca coisa. Cozi as cabeças e patas (claro que, sendo lagosta, não tinha pinças), extraí os restos de carne e as ovas. Usei para o molho parte do caldo, para além do vinho e do “fumet”. Juntei também um grande talo de aipo, cortado às rodelas. Fiz tudo numa frigideira alta e cozi no fogão, não no forno. Para manter o volume de molho, não o reduzi mas usei a manteiga trabalhada com 2 c. chá de maizena. Em vez da salsa, juntei ao molho, quase a terminar a fervura, umas folhas de estragão, erva de que gosto muito com mariscos. Servi com arroz branco.
Permitam-me que me gabe: ficou uma delicia, um excelente prato.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Lagosta, em tempo de crise

Em tempo de crise, pode parecer snob, mesmo sádico, escrever uma nota sobre lagosta. Desculpar-me-ão se disser que é suscitada por ocasião especial, o passado dia de S. Valentim, e por o pretexto serem umas lagostinhas de Moçambique, congeladas, bastante saborosas - mas nada chega à lagosta norte-atlântica - e a 30 € o kilo. Não é preço de faneca mas também não é loucura. E permite fazer em casa, com igual qualidade, comparado com os preços loucos que nos cobram numa marisqueira.
Antes de ir adiante, uma nota sobre a lagosta atlântica. Refiro-me à do oceano do norte, porque as tropicais, que bastante usei em Angola, ao preço da chuva, e a que agora vem muito de Cabo Verde, são para meu gosto inferiores à da costa europeia e, principalmente, à lagosta açoriana. E esta para mim ainda ultrapassada pelo cavaco açoriano, a lagosta da pedra. Mas já indo para a costa americana de nordeste, que conheço bem, sempre me serviram como preciosidade as lagostas do Maine, de Long Island, etc. Para mim, ficam em terceiro lugar, ainda depois das tropicais.
Lagosta de primeira, a começar pela açoriana, não daria para nota. Apenas dizer o banal, porque a sua qualidade dispensa preparações complicadas: cozê-la em água do mar, comê-la o mais simples possível, para mim apenas com o tradicional "molho verde" açoriano de vinagreta de cebola, salsa, malagueta e açaflor.
Já as lagostas “de segunda” permitem usos culinários mais complexos, porque não é tão imperioso salvaguardar o seu gosto sem mais nada. Vou por três preparações que fazem as minhas delícias. Ressalve-se que duas das receitas são, originariamente, para lavagante, mas vão igualmente bem com lagosta, principalmente, como fiz há dias, com lagostinhas pequenas, de cerca de 200 g cada, que a congelação não estraga muito. São a lagosta suada à moda de Peniche, a lagosta à americana e a lagosta Thermidor.
De Peniche passou para o indispensável livro de M. Lourdes Modesto, “Cozinha Tradicional Portuguesa” (pág. 201). A lagosta é “sangrada”, cortada em anéis, viva (barbaridade!...), e estufada com cebola, alho, salsa, louro, tomate, azeite, vinho branco, aguardente, Porto, e temperada com sal, pimenta branca, colorau, malagueta e noz moscada. É muito boa mas não a minha predileta. Sendo rústica e com sabores fortes, prefiro comer coisa tão preciosa de forma mais elegante, como as duas confeções francesas.
A lagosta/lavagante à americana tem história bem conhecida. Pierre Fraysse dirigia um famoso restaurante parisiense, “Chez Peter’s”, um nome que evoca a sua experiência anterior como cozinheiro nos EUA. Diz-se que certa noite, já a fechar a porta, lhe apareceu um grupo de clientes especiais a quem não podia falhar e que pediram lavagante. Fraysse foi à despensa e teve de inventar qualquer coisa nova com o que havia, o marisco cortado vivo em pedaços, salteados em azeite, estufados numa base reduzida de chalotas, alho, cenoura, tomate, aguardente e vinho branco. Parece que começou por preparar a base enquanto se perguntava como resolver a falta de tempo para o tradicional, cozer os bichos em caldo. Daí a inovação para a época, cortá-los crus e estufá-los na base.
Porquê “à americana”? Aqui entra a fantasia de cada um. Mais prosaicamente, os convidados terão perguntado o nome daquela novidade e saiu-lhe a sua referência americana, possivelmente com sentido de “marketing” de associar o prato à marca do restaurante. Há quem diga que os convivas eram americanos e que ele os quis homenagear. Também que o que hoje denominamos é corruptela de “à l’armoricaine”, embora a cozinha armoricana não tenha nada a ver com esta receita.
Recorde-se que a base criada por Fraysse, com variantes, ainda hoje é usada para múltiplos pratos, de marisco ou de peixe, até uma receita de cogumelos que li em qualquer parte. E, como nada verdadeiramente se inventa, há quem diga que a base de Pierre Fraysse lhe veio da memória aprendida de velhas preparações do mesmo tipo, nomeadamente os camarões à bordalesa e os mariscos bonnefoy das tabernas de Paris.
Em todo o caso, a lagosta à americana está relativamente codificada e as variações entre as receitas publicadas são menores. Diferente é o da lagosta Thermidor, outro clássico da cozinha francesa de restaurantes do fim do séc. XIX. Parece-me que ainda no tempo de Escoffier não merecia muito empenho. Descreve-a em simples linhas, como lagosta ou lavagante cortada em metades, grelhada, cortada em fatias e gratinada com molho de nata à inglesa com mostarda. Livros mais recentes, como o Larousse Gastronomique, não trazem a receita.
Vi muitas na net e fiquei surpreendido com a diversidade e diferenças essenciais de dezenas de receitas, cada uma a pretender-se genuína. Como é vulgar, cada uma inova juntando qualquer coisa, de forma a que, no fim, há receitas que usam tudo o que há no frigorífico e na prateleira dos temperos.
Assim, tive de fazer a minha própria receita, mas com o rigor que me é possível. Nestas situações, vou pelo meu gosto, pelo meu estilo mas muito também pela interpretação do que fica omisso nos mestres. O que queria dizer Escoffier por molho de nata à inglesa com mostarda? O que me saiu soube-me muito bem e pareceu-me de fino recorte parisiense tradicional, bem como à minha convidada/parceira/etc. exigente. A receita vem no sítio do costume.