domingo, 19 de maio de 2013

Entre o Praiense e o Real Madrid

Um dia destes falarei de uma grande experiência gastronómica recente, em Inglaterra, que hoje me serve de pretexto para outra conversa. Bray é uma pequena aldeia a umas dezenas de quilómetros de Londres que tem a particularidade de aí se localizarem dois dos quatro restaurantes ingleses com três estrelas, o Waterside Inn e o Fat Duck. O que mais conta para esta nota é que são conhecidos por representarem extremos de conceção e estilo de alta cozinha. A família Roux, do Waterside Inn, cultiva uma cozinha claramente influenciada pela alta cozinha tradicional francesa. Heston Blumenthal, o chefe do Fat Duck, é um criador original, que gosta de surpreender, quase que provocar, mais próximo em conceção da cozinha moderna de Adriá e da cozinha molecular e de desconstrução.

Isto passa-se com outros restaurantes de topo que, muitas vezes, seguindo, por exemplo, a orientação do já falecido Santi Santamaria, de Arzak, ou dos irmãos Roca, agora com o “melhor restaurante do mundo”, ou, em Itália, a Osteria Francescana de Massimo Bottura. Claro que, não conhecendo nenhum destes restaurantes, falo com base no que leio e, principalmente, da consulta das suas ementas. Parece-me visível que praticam uma cozinha pessoal, inovadora e criativa, mas sem rotura radical com “a cozinha da família” e também uma cozinha articulada com o mercado local e os seus melhores produtos.

É claro que não há uma divisão bem definida entre estas situações. No que respeita à maior ou menor proximidade entre a cozinha tradicional e a cozinha elaborada, há muitas distâncias, em boa parte dependentes da capacidade esperável do cozinheiro. Um cozinheiro amador mas com criatividade, bom gosto, experiência e técnica, embora não vá jogar na primeira divisão de campeonatos de cozinha, pode ganhar o aplauso real de amigos para quem cozinha, pode ter a gratificação de ensinar a outros, pode acariciar o ego por ter conseguido um bom resultado. As mais das vezes, não é preciso muito: um aperfeiçoamento técnico, melhor jogo de condimentos, um toque pessoal percetível. Verão depois porquê, vou exemplificar com o vulgaríssimo fricassé.

Toda a gente sabe o que é um fricassé: um guisado cujo molho é engrossado com gemas de ovos. Em Portugal, é mais vulgarmente de galinha ou frango, mas também de pescada. Mais raramente, como era hábito açoriano da minha família, também de língua ou de almôndegas de carne ou peixe. Na cozinha tradicional francesa, para além da galinha, a vitela, mais raramente pombo ou borrego. Tradicionalmente, e no essencial, a galinha cortada aos pedaços é alourada em refogado e guisada, por vezes com vinho branco, temperada com sal, pimenta branca, louro, eventualmente salsa. O molho, amornado, é engrossado com gemas de ovo e sumo de limão, habitualmente adicionados diretamente ao molho, sendo servido com salsa picada. 

A minha versão pessoal respeita o essencial da tradição e é influenciada por uma preparação francesa semelhante e também tradicional, a “cuisson à blanc” ou a “poulette”. Deixo as quantidades à vossa experimentação. A galinha ou frango do campo é marinada em vinho branco, alho, louro, sal, pimenta preta e pimenta da Jamaica, com um raminho de salsa e uma haste de tomilho, atados. Num tacho largo, com tampa, a lume brando, salteio em manteiga (ou, por razões de saúde, em margarina dietética de cozinha) chalotas cortadas ao meio ao longo do comprimento e retiro-as antes de alourarem demasiado. Uso essa gordura para alourar os pedaços de galinha durante um ou dois minutos, a temperatura mais alta, junto a marinada coada, tapo e deixo cozer, a lume baixo. Eventualmente, se necessário, removo gordura a mais, para garantir boa mistura final do caldo com a base de fricassé. Um pouco antes de pronta, volto a juntar as chalotas e removo as ervas. 

Entretanto, já está preparado o fricassé, aquecendo em banho-maria fundo de galinha e ligando-o com vara, até espessar bem, a gemas misturadas com nata, sumo de limão e noz moscada. Fazê-lo à parte permite controlar a proporção entre o fricassé e o molho. Antes de servir, passo a galinha para a travessa, desligo o lume, deixo arrefecer o molho durante poucos minutos, junto o fricassé e levo a fervilhar, mexendo bem com a vara para misturar bem, a lume muito baixo. Derramo na travessa e polvilho com salsa picada.

Note-se que, ao que julgo, a minha variante não desvirtua o prato e as diferenças são criteriosas e valorizam. As chalotas, reintroduzidas no fim, dão elegância e contraste, a nata suaviza o fricassé, o tomilho liga bem com a salsa tradicional, sem a demasiada variedade do ramo de cheiros, a pimenta da Jamaica é imagem de marca da minha cozinha e a noz moscada liga bem com o fricassé. Às vezes uso só, como erva, o estragão, aquela que, para meu gosto, melhor vai com preparados de gemas.

Há dias, encontrei na “net” receitas de fricassé de dois chefes portugueses conceituados, conhecidamente com estilos bem diferentes, à semelhança, como disse acima, de Alain Roux e de Heston Blumenthal. Vítor Sobral prepara um fricassé de frango muito clássico, quase minimalista em condimentos, sem refogado. A ligação de gemas é feita à parte, como indiquei, mas aqui é que aparece a mestria e a invenção (presumo). 

O líquido a que, em banho-maria, Sobral junta as gemas para ligar como base do fricassé não é um tradicional fundo, como eu e quase toda a gente usa mas, nessa receita, é uma mistura de sumo de laranja e polpa de maracujá. Uma pequena diferença que faz toda a diferença e da parte de um cozinheiro que não se destaca muito pela faceta de invenção ou provocação na sua cozinha. Assim, vejo bem este prato numa ementa de restaurante de Sobral.

Mais estranha é uma receita de José Avillez de pescada de fricassé com espargos e finas fatias de presunto. Fora a combinação de ingredientes, menos usual, a técnica é absolutamente a tradicional, na versão de ligação de gemas feita à parte. A pescada é cozida com vinho branco e ervas aromáticas. Retirada a pescada quando quase cozida, parte do caldo, coado, é usado para preparar à parte o fricassé, ligando com as gemas e sumo de limão, voltando-se a juntar ao resto do caldo e à pescada arranjada. 

Nada, portanto, que faça lembrar a cozinha muito original e inventiva de Avillez. Ao contrário do que disse de Sobral, não vejo esta pescada de fricassé numa ementa de Avillez (ou melhor, talvez sim, lembrando-me do seu bacalhau à Brás do Belcanto e, antes, do Tavares). Quando voltar ao Belcanto (isto é, quando Gaspar deixar) talvez haja um fricassé verdadeiramente inovador e surpreendente.

Os bons chefes também sabem cozinhar simples e de forma tradicional. É claro que estas duas receitas não retratam exatamente a sua cozinha. São para o grande público, que não se interessa por alta cozinha que não consegue reproduzir. Além de que as receitas mais exemplares da criatividade do chefe são segredo de negócio do restaurante e não se partilham na “net”. Essa partilha, anunciada como contributo para o gosto alheio de bem comer (ou como manifestação de alguma vaidade…), é para amadores com pretensões. Não é desculpável? Sempre é melhor do que se divulgarem como maravilhas receitas de “socialites”, masculinas ou femininas. Saia um fricassé à Lili Caneças!

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