terça-feira, 17 de setembro de 2013

A praga da petiscada

Lisboa está invadida pela petiscada, de alto e baixo nível (em fama, preço e marketing, não em qualidade, como direi). Antes de ir ao substantivo, algumas divagações. Muito do que se chama petiscos são, cá e na minha terra, os pratos de todos os dias de uma cozinha familiar burguesa, entre pratos “de tacho” ou completos e coisas que se podem fazer para comida acessível ao balcão – salgados, saladas, arrozes, feijoadas, etc., etc.

Fui de uma época em que restaurantes e tascas desleixaram isto. Guardo grata memória de algumas coisas, como a Tendinha do Rossio (com aquela sandes mista de presunto e queijo fresco, novidade da casa, que fazia perguntar ao freguês novato "quer com azeite e vinagre?", para gozo da malta useira). 

Sem desprimor para alguns exemplos que agora não recordo, eventualmente de bairros que não eram o meu, a renovação mais marcante foi a Carsédia. Coisa estranha, era uma sucursal do Tavares, quem diria. A estratégia de diversificação do Tavares, injustamente caído em desgraça no 25 de Abril como símbolo do antigamente, começou com o andar de cima, depois com o Tavares Pobre e a Carsédia. A seguir, o Sr. ?, cujo nome não recordo, embora me lembrando muito bem da cara, fez sucesso no self do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian e no “shopping” Gemini.

Depois de muitos anos de substituição dos petiscos tradicionais por banais bitoques, hambúrgueres e carnes de porco à portuguesa, mais uns filetes desenchabidos, e de serviço de salgados de má qualidade em tudo o que é café (e só tarde com recuperação dos pastéis de massa tenra, mas com betume de carne como recheio), a moda hoje é a dos petiscos. 

Não tenho nada contra, muito pelo contrário, se forem bem feitos e postos no devido lugar: o de exemplo de cozinha tradicional genuína, desde a cozinha caseira até à cozinha de tasca (como fico a salivar com os ovos com linguiça da Ilustre Casa de Ramires!). Mas, para mim, sem deixar de ter de ser cozinha aprimorada e rigorosa em respeito pela tradição – com aceitável margem de inovação – é uma cozinha barata e despretensiosa, em restaurantes que, como por toda essa Europa, toleram empregados de jeans e ténis, guardanapos de papel e coisas do mesmo nível. Mas também a conta.

Em que difere de um restaurante de cozinha tradicional? É difícil definir. Diria que no fornecimento de doses pequenas, cada um a pedir duas ou a partilhar, numa cozinha que é marcada pela maior simplicidade e rapidez de confecção e, principalmente, pela tradição da sua venda em feiras, tascas e romarias, e em coisas que se comiam facilmente ao balcão, em pé, com o copo na outra mão (como no “Pai Tirano”, então um copinho de branco”).

Esta petiscaria tem vindo a marcar a restauração madrilena (menos a de Barcelona). Sou velho comedor em Madrid, de restaurantes e de tabernas de tapas, estas despretensiosas, de se comer em pé, cascas de camarão e de tremoço no chão. Hoje viraram semi-restaurantes para turistas e uns menus estilo tlinta-e-tlês – é verdade, 21 para Joao – à espanhola passam por genuína cozinha hermana (e que boa que ela é).

Essencialmente, a meu ver, uma petiscaria de qualidade se quiser inovação deve respeitar a lógica do serviço de petiscos, como disse, e dar ao estrangeiro a ideia do fundamental da nossa cozinha, ao mesmo tempo que oferece ao português alguma variação. Mas nunca a ponto de tentar apresentar esta “cozinha menor” com pequenas modificações e sugerir que isso é cozinha de autor, coisa bem diferente. Não se pode ter o bolo e comê-lo. Os chefes estão a ir para a petiscada porque não têm mercado para a sua cozinha de autor. Apresentar como tal cozinha barata é vigarice. 

“Petiscaria de autor” é o que se tem passado com as “novas petisqueiras”, de chefes consagrados. Se não me engano, foi Vítor Sobral que começou a moda, em Campo de Ourique. Limito a minha crítica, porque nunca lá fui, só conhecendo a ementa, banal. Também por algum preconceito porque, tendo em certa fase profissional viajado muito em classe executiva, sempre achei detestável o “catering” de Sobral para a TAP.

Há o novo caso do Chefe Cordeiro, sobre o qual já escrevi aqui. Há também o caso especial de Avillez, sobre que tenho “mixed feelings”. Acho a sua empadaria coisa deslustrante da sua imagem. À pizaria ainda não fui. O Cantinho é agradável mas não vai mais longe. Do Café Lisboa só falarei quando experimentar. Tudo isto me desabonaria o projecto Avillez, se não soubesse que é o preço a pagar para termos, ele e nós, o Belcanto.

Com isto, o que hoje ouço é jovens executivos, com cartão de crédito para restaurantes, não discutirem os bons restaurantes mas as petisqueiras à moda, de tias ou não, o ambiente giro de cadeiras que não condizem com a mesa, ou da patroa que nos trata por tu. Ter meios não é obrigatoriamente ter bom gosto.

E vem tudo isto a propósito de uma nota de Duarte Calvão, no Mesa Marcada sobre o provável fim do Pedro e o Lobo, agora com a saída de Diogo Noronha. Antes, tinha sido ou o sócio, Nuno Bergonse, para outra petiscaria, Ministerium, que até elogiei. A propósito, diz Duarte Galvão:
“(…) só espero que não enverede pela petiscaria, hamburgueres e pizzas para as quais já não há pachorra”.
Totalmente de acordo, como se vê pelo que escrevi nesta nota.

NOTA – Estava esta nota pronta a publicar e recebi notícia, muito a propósito, da Lisbon Week, com um programa gastronómico de Estação dos Petiscos

Esta Lisbon Week é coisa fora de estação turística e, por isto, temos de pensar nela como principalmente dirigida aos indígenas. Adianta alguma coisa? Até receio é que a banalização leve a enjoo, como temos pela comida de cantina. Não há fome que não dê em fartura. 

Aqui fica a lista. A concepção é de José Bento dos Santos, por quem tenho muita consideração mas que critico por frequentemente resvalar para coisas menos pensadas, quase de bandeira desfraldada, como a cataplana e o melhor peixe do mundo. Valha que estes pecadilhos ficam perdoados pelo Monte d’Ouro. José Bento dos Santos tem uma imagem importante, até internacional, que não pode deslustrar.
Esta Lisbon Week é coisa fora de estação turística e, por isto, temos de pensar nela como principalmente dirigida aos indígenas. Adianta alguma coisa? Até receio é que a banalização leve a enjoo, como temos pela comida de cantina. Não há fome que não dê em fartura. Aqui fica a lista. 
Caldo verde. Canja de galinha. Joaquinzinhos. Rissóis de camarão. Pasteis de bacalhau. Pataniscas de bacalhau. Carapaus de escabeche. Salada de polvo. Moelinhas. Pica-pau. Prato de mini-enchidos regionais. Meia-desfeita (bacalhau). Alheira de caça. Ovos verdes. Peixinhos da horta. Gambas ao alhinho (português?). Ovos mexidos c/farinheira ou espargos. Lista tão pobrezinha que nem me apetece comentar.

Para acompanhar, arroz malandrinho de feijão, arroz solto de alho e coentros, salada de tomate com oregãos (bem originalmente portuguesa, não de todo o Mediterrâneo?), ovo estrelado (espantoso!), batata frita.
Como doces, representando (?) a nossa riquíssima doçaria (ao menos mais o leite creme), apenas arroz doce, pastel de nata e mousse de chocolate.

1 comentário:

  1. gostámos muito de ler esta entrada, em particular o momento afiado sobre os "semi-restaurantes"! haja alternativas ao caminho do petisco. e, no entanto, quando se escreve sobre restaurantes em lisboa (como aconteceu recentemente no guardian http://www.theguardian.com/travel/2013/aug/02/lisbon-food-tour-portugal-break) a palavra "tapas" continua a ser inevitável. www.miudezas.com

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