quinta-feira, 28 de abril de 2016

Desvirtuações

Ainda há dias, numa das suas ótimas crónicas, Virgílio Nogueiro Gomes protestava contra desvirtuações abusivas de designações tradicionais. É também minha velha luta. É claro que isto nada tem a ver com inovação e aperfeiçoamento, até por questões técnicas, de novos ingredientes, ou de normas dietéticas. Também eu corto nos ovos e no açúcar em receitas de família, hoje venenosas. E também acrescento com frequência notas pessoais a essas receitas ou a receitas populares. Também o fazia sempre a minha avó materna, apesar – ou por isso – de guardiã do rico património culinária familiar, até com muitas receitas de segredo, como era costume na época.
Outra coisa é atentar contra o núcleo essencial que caracteriza uma receita tradicional consagrada. Em muitos casos, pensando em turismo gastronomicamente interessado, até é uma fraude. Imaginem que um turista quer conhecer amêijoas à Bulhão Pato e lhe servem (não estou a inventar) amêijoas com cebolada e um molho com mostarda e piripiri, apenas com os coentros a dar o nome. 
As páginas da net brasileiras são especialistas. Por exemplo, já vi um Stroganov com cenoura e levado a forno, com queijo ralado, a gratinar. Ou mesmo em relação à sua própria cozinha, quando se comparam receitas baianas genuínas, do SENAC, com o que as madamas “cozinheiras” publicam nos seus blogues. Também podia falar nos nossos blogues do “deve ser delicioso” e nas nossas tias prendadas, mas não quero bater mais no ceguinho.
O Corte Inglês tem agora uma secção de produtos açorianos, criteriosa e variada. Lá encontrei uma coisa que nunca tinha provado, as queijadas terceirenses do Conde da Praia da Vitória. Como diz o fabricante, são em tamanho de queijada um pudim de que tenho a receita, com o mesmo nome. 
Quando ouvi falar dele, há poucos anos, estranhei não fazer parte do receituário da minha avó materna, terceirense e uma das mais afamadas doceiras da ilha, com muitas receitas inventadas por ela. Para mais, no pequeno mundo “bem” da orgulhosa mas minúscula Praia da Vitória, a de Vitorino Nemésio, a família da minha avó era chegada à família Paim de Bruges, viscondes de Bruges e depois condes da Praia da Vitória, ou simplesmente da Praia, como lá se dizia, confundindo-se com o título micaelense com o mesmo nome.
Verifiquei depois que o pudim estava esquecido e tinha sido recuperado há algumas décadas (1962, quase a data da morte da minha avó que o desconhecia) por duas senhoras da família Paim, cá em Lisboa. Se virem a receita, e como as pós-autoras acentuam, o pudim tem uma característica quase única: o principal ingrediente é batata! Ora de batata, nas tais queijadas, nem raspa. Um dia destes, tenho de me preparar para ver as excelentes e invulgares morcelas da minha ilha feitas sem sangue, com corante a dar o tom preto.
Também se vendem no tal espaço os icónicos bolos D. Amélia. São bolinhos tradicionais, com especiarias, como é tão vulgar nos Açores – terra de aportagem das naus da Índia na volta do largo – mas que, na visita régia de 1901, tendo a rainha apreciado muito esses bolinhos, foram rebatizados pelas pastelarias locais com o nome da rainha.
Os que comprei agora, de fabrico de uma pastelaria que não conheço, são bons mas não excepcionais, como eram os da minha avó. Para além de casa, ela fazia-os também para a mais famosa pastelaria de Angra, Athanázio, de um seu cunhado. Ainda hoje existe, não sei a cargo de quem, e vale a pena lá ir. Aqui fica a receita.
150 g de farinha de milho peneirada, 2 c. sopa de farinha de trigo, 2 c. sopa bem cheias de mel de cana, 500 g de açúcar, 4 ovos inteiros e 4 gemas, 50 g de passas, 1/2 noz moscada, 10 g de canela, 1 chávena de manteiga derretida 
Bater muito bem o açúcar com os ovos. Ao engrossar,  juntar aos poucos a manteiga derretida, batendo sempre. Juntar as passas. Acrescentar as farinhas, o mel, a canela e a raspa de noz moscada. Bater bem e levar ao forno em forminhas lisas, untadas.
NOTA. A imagem que ilustra esta entrada tem uma história que me caiu para sempre. Há muitos anos, vejo agora no caderno que em 1979, já a minha avó desaparecida há muito, quis a minha mãe recordar as receitas de família e escreveu-as em cadernos para os três filhos. De tão manipulado, e apesar da minha intenção sempre adiada (estou agora a fazê-lo) de o digitalizar, foi-se o caderno transformando-se quase em farrapo. Em dezembro de há dois anos quis consultá-lo e foi um ver se o encontrava. A minha mulher e até a nossa empregada, cúmplice, afirmavam solenemente que se lembravam de eu o ter ido buscar à estante e que ainda o tinha. Na noite de Natal, a melhor e mais querida oferta que tive foi o livro encadernado, em excelente trabalho de um encadernador que teve de aplicar soluções técnicas especiais. 
Prenda de Natal é isto, com grande valor afetivo, coisa que a minha morena põe em tudo que me diz respeito. Valha que também retribuí, não sei bem se nesse ano, vasculhando alfarrabistas por toda a Lisboa para uma boa coleção de livros velhos sobre a sua Angola. São prendas que valem muito mais do que coisas materiais ricas.

Sem comentários:

Enviar um comentário