terça-feira, 7 de junho de 2016

Morcelas açorianas

A par dos queijos, de que falei há dias, os enchidos e a doçaria fazem parte do trio icónico da gastronomia açoriana, sem esquecer, obviamente, os peixes, ou únicos lá ou, a meu ver, muito melhores do que cá. Nos enchidos, sobressaem as morcelas e a linguiça. Como vou falar principalmente das morcelas, só uma nota sobre a linguiça.
À primeira vista, parece um chouriço, com o diâmetro a que estamos habituados. Não se fazem lá as linguiças estreitas continentais. Há muitas variantes, mas, em geral, fazem-se só com carne limpa, de preferência de lombo, posta de vinha de alhos com vinho branco, vinagre, limão galego, malagueta, laranja, colorau, alho e sal. Muito diferentes das muito mais simples linguiças continentais.
Morcelas, à primeira vista, parecem basicamente o mesmo, cá e lá: sangue de porco, vinagre, gordura de porco (véu ou rissol), farinha ou arroz, cebola, salsa, cominhos. A grande diferença está nas especiarias, tão típicas das cozinhas açorianas, de ilhas de aguada e abastecimento das naus da Índia, a tomar a latitude de Lisboa.
Essencialmente, as morcelas açorianas, com variantes de ilha para ilha, levam os ingredientes que referi, mais frequentemente o pão, inclusive de milho, mas também o arroz ou farinha de arroz. Frequentemente, cebola de rama em vez da cebola normal. A mais, vinho branco e aguardente ou vinho do Porto e, sobretudo, os temperos, que lhes dão um toque distintivo notório: cominhos, erva doce, canela, cravinho, massa de malagueta (pimenta da terra).
Cada produtor rivalizava na qualidade das morcelas e as pessoas escolhiam-nos com fidelidade. Na minha infância era a charcutaria Cardozo, que até ia a casa recolher as encomendas e entregá-las. Muito mais tarde, já indo lá só a férias, passei a comprar do Costa, um supermercado na Calheta, ou do Cavalo Branco, um restaurante nos Mosteiros. Desaparecidas as do Costa, passei para as do Borges ou as do Viveiros, nas Capelas, também muito boas. Por tudo isto, sabem-me a muito pouco as que cá compro nas lojas dos Açores, de uma salsicharia Ideal. No entanto, para quem não conhece as morcelas açorianas, mesmo que não as supra-sumo, recomendo estas. Há dias, comprei muito boas da Charcutaria Açoriana (Azores Gourmet), num espaço temporal que o Corte Inglês dedicou a produtos açorianos. Agora, já não as encontro lá.
Comiam-se as morcelas de todas as formas. Cortadas em rodelas grandes (cerca de 5 cm), eram habitualmente fritas em banha, embora o restaurante Castelo Branco tenha popularizado, e bem, as morcelas assadas no forno de lenha. Hoje frito-as em frigideira só untada com banha (azeite não!). Havia quem gostasse delas ainda em papa, outros, como o meu primeiro sogro, comia-as como se fossem pedaços de carvão aromático. Frequentemente, comem-se com ovo estrelado. Para acompanhar, muitas vezes batatas fritas ou arroz branco, mas eu habituei-me sempre ao inhame cozido, cuja textura e suavidade (e até cor) se ligam magnificamente com as morcelas.
Decididamente não vou é com a moda de algumas poucas dezenas de anos, em todos os restaurantes, da morcela com ananás. Lembro-me bem de onde isto veio. Nessa altura, surgiu na Madeira a confecção dos filetes de espada preto com banana. Fica muito bem, porque são sabores suaves e compatíveis, valorizando-se mutuamente. Algum esperto micaelense lembrou-se do ananás para a morcela. A meu ver, não só não adianta nada ao excelente enchido como estraga o também excelente fruto, abafado pelo sabor intenso da morcela. Mas há gostos para tudo. Ou razões, como um amigo que me diz que assim consegue vencer a sua dispepsia.
NOTA – Falei de inhame. Sempre que possível, sugiro alternativas locais para os produtos açorianos. No meu livro, até sugeri um sucedâneo da coisa mais característica, a massa de malagueta, hoje à venda nas lojas dos Açores. O mesmo, por exemplo, para a batata doce, que cá temos muito boa. Não consigo dizer o mesmo é do inhame. O que cá se vende nos hipermercados, da América latina, é para mim incomestível. Valha que há quase sempre à venda nas lojas dos Açores (R. S. Julião, R. da Madalena ou R. Viriato) genuíno inhame açoriano.

1 comentário:

  1. Essas duas outras morcelas que recomenda das Capelas, onde costuma comprar em S. Miguel?
    Obrigado

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