“Éme, pélo-me por ostras, podês qu’ê comia”, diria eu se tivesse mantido, erro meu que não o fiz, o meu falar vernáculo açoriano, de quatrocentos, fóssil vivo de linguística.
Ostras para o jantar, não é todos os dias. Não porque sejam abusivamente caras, mas principalmente porque não me aparecem muito, apesar de hoje a produção ser razoável. Como não se podem conservar longamente, tenho de ir de propósito a um hipermercado, que não me fica à mão. Mas devia ir mais, porque sou perdido por ostras, tanto é que, havendo excelentes maneiras de as cozinhar - e até também minhas - continuo a privilegiar aquilo que só faço com elas e com as suas primas de baixa condição, as lapas: comê-las sem mais nada e nem sequer cozedura, vivas e naturais, como Deus as pôs no mundo, "incouro e sin cueiros". Nisto não tenho problemas de companhia e partilha do prato, em relação às ostras mas, sem razão lógica - quem quer exigir lógica às mulheres?… - nunca em relação às lapas.
Como tantas outras coisas que não havia nos Açores e que nem chegavam lá por importação, ostra foi coisa que só conhecia da Alice no tal país até as ter provado, deliciado, nesta minha grande descoberta do mundo que foi a minha vinda para a universidade, apesar do primarismo de vida cá em 1960. Nessa altura, ainda se falava com orgulho da ostra portuguesa, que a poluição do Tejo, principalmente as tintas despejadas pela Lisnave, dizimou a partir de 1970. De facto, as razões não são tão localizadas, porque as nossas ostras desapareceram de toda a costa, onde as havia, com destaque para o estuário do Sado e a costa da Ria Formosa.
Isto de “ostra portuguesa” nem é patrioteirice nossa. É mesmo uma espécie distinta (Crassostrea angulata) e ganhou fama no grande país das ostras, obviamente a França, quando as conheceram, lá por 1868, em virtude de um navio em aflição ter despejado ao mar, ao largo da costa gascã, o seu carregamento de ostras. Até então, a ostra francesa era apenas a ostra plana ou chata (Ostrea edulis), que passou a conviver com a portuguesa até ter sido dizimada por uma praga, por volta de 1920 (a “doença das guelras”). A coexistência da ostra portuguesa, resistente à epizootia viral, salvou a ostricultura francesa. Acabou por desaparecer também, nos anos 70, mas já com a ostricultura francesa recomposta depois da introdução da ostra japonesa, como digo a seguir.
A ostricultura recuperou em ambos os países, muito antes em França, mais recentemente em Portugal. Em França, cultiva-se em toda a costa ocidental, desde a Bretanha até aos Pirinéus, mas com destaque para Marennes-Oléron, a meia latitude do golfo da Gasconha, e para Arcachon, perto da foz do Loire. Ainda se pode encontrar a ostra chata tradicional, redonda e grande, chamada de “belon” na Bretanha e de “gravette” em Arcachon, recuperada depois da praga mas hoje novamente muito limitada à Bretanha, depois de nova doença nos fins da década de 70. Por isto, a enorme maioria da produção de ostras francesas é feita com uma espécie importada de origem japonesa (Crassostrea gigas). Parece-se com a portuguesa em ser encurvada, com as valvas diferentes, mas é muito maior (cerca de 10 cm, para 7 cm da portuguesa). Quanto ao sabor, que digam os puristas. Julgo preferir a portuguesa, mas nada como fazer uma experiência que ainda não fiz, comprar ambas e comparar em ensaio cego. Com controlo de quem bem sabe o que são as normas dos ensaios clínicos...
Em Portugal, assiste-se ao reflorescimento da criação de ostras, infelizmente não conseguida no Tejo. Compensam as ostriculturas bem sucedidos dos estuários do Sado e do Mira. E, felizmente, se não estou em erro, tudo feito essencialmente com ostra portuguesa, sem necessidade de introdução da japonesa. Tanto quanto sei, depois da extinção da ostra portuguesa em França nos fins de 70, ela só é cultivada em Portugal, coisa que bem devíamos valorizar. O que não impede que estejamos a ser invadidos nos supermercados por ostras japonesas, um pouco mais baratas, de origem galega.
E como comê-las? Em qualquer caso, verificando primeiro se estão bem vivas, com a concha fechada e retraindo os cílios salientes quando tocados. Compradas o mais tarde possível antes de as comer e guardadas no frigorífico. Vá lá, não sejamos tão exigentes, podem aguentar até 5 ou 6 dias no frigorífico, na gaveta dos legumes, de preferência embrulhadas num pano. Tradicionalmente, nunca nos “meses com r”, o que hoje já não faz sentido, com a técnica da ostricultura.
Variantes de cozinha de ostras são mais que muitas, desde uma bem antiga receita de pato com ostras e molho de trufas (no século XVII…). Escoffier regista 15 receitas e até há 16 no Livro de Pantagruel. Receitas modernas conheço de bifes com ostras, de vários tipos de espetadas, escalfadas, gratinadas nas suas conchas com molhos diversos, até fritas embrulhadas em polme, muitas mais. Às vezes faço-as com alguma elaboração, outras vezes faço-as simplesmente assadas (no forno ou na chapa, como calha), sem a valva superior, e molhadas em manteiga derretida com limão, um toque muito suave de alho, pimenta e uma erva a gosto, mais alguma fantasia de momento, como uma ponta de gengibre, ou uma gota só de leite de coco ou uma quase invisível pitada de açaflor.
Mas nada chega a pegar numa ostra com a mão esquerda segurando-a bem na horizontal para que nada se perca, retirar a valva superior, com “alavancagem” de ponta de faca, descolar a ostra da valva inferior, levar à boca de uma só vez o bicho e toda a água que ficou guardada na valva inferior. Sem sal, sem pimenta, sem limão, sem nada! Puro sabor natural.
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