quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

E mais sopas


Como escrevi antes, tanto me perco por um refinado consomê como por uma boa sopa de “enfarta brutos”. Pelo meio, coisas mais específicas, a encher uma refeição mas sem ser tudo ao monte, como por exemplo uma açorda alentejana, uma canja com bastantes fiapos de carne e pedaços de fígado, uma sopa rica de peixe (com destaque para a sopa de agraço de S. Miguel, cuja receita de especialista, um amigo de patuscadas do meu avô, vem no meu livro), uma sopa de função do Espírito Santo terceirense ou, nas estranjas, a sopa de cebola parisiense.
Nas “enfarta brutos” incluo como exemplo da cozinha continental, mesmo que relativamente recente, a sopa de pedra, com expoente turístico em Almeirim. Claro que há muitas mais deste tipo por este país fora (sopa da panela da Beira Baixa, variados caldos de unto, sopa seca, sopa de grão e rabo de boi, muito mais e até, se quisermos considerar como sopa, os ranchos ou, nos peixes, as caldeiradas ou as sopas transmontanas de bacalhau). Mas esta sopa de pedra começa a ser emblemática e já vejo muitas pessoas - até muito próximas - a esmerarem-se a fazer “a sua” sopa de pedra. Até testemunho que podem ser mesmo coisa de boa cozinheira.
Isto leva-me a dar a conhecer (embora já as tenha escrito) algumas sopas açorianas deste tipo. Algumas vêm em recolhas como a de Augusto Gomes. A última que vou descrever é a que me diz mais, minha coisa de criança em casa micaelense com muita cozinha terceirense.
Lembro, sem voltar a dar receita, a sopa da função e a excelente sopa de funcho. Esta, cuja receita publiquei algures (googlem...), faço-a cá com o funcho em rama que agora se vende nos supermercados mas não é nada a que se faz lá com funcho selvagem, do campo, não só as folhinhas terminais mas também os talos. Também não vou falar da sopa de nabos de S. Maria, de que já publiquei a receita, mas que tem o contra de depender essencialmente da especificidade da variante local de nabo, que nunca vi vender cá. Ficam outras duas.
Couves aferventadas. É uma sopa rústica com a característica comum a todas de ser um retrato da situação económica. O meu povo de pé descalço comia só as couves com um pouco de toucinho. O “remediado” acrescentava umas carnes de vez em quando. Portanto, como base, o caldo de couves. 
1 molho de couves (cerca de 750 g), 250 g de repolho, 2 batatas médias, 2 batatas doces médias, 1,5 c. sopa de banha ou toucinho derretido, 1 cebola, 2 dentes de alho, 1 folha de louro pequena, 1 c. sopa de massa de malagueta, 1 c. chá de colorau, 3 cravinhos, sal e pimenta preta, 3 l de água.
Como se vê, em relação a tantas sopas de hortaliça continentais, a diferença caracteristicamente açoriana do uso generoso de temperos. Ripar a couve, sem talos grandes, e o repolho. Esfregar a couve, entre as mãos e escaldar as hortaliças, durante 1 minuto, em 1 l de água já a ferver (isto de escaldar previamente é meu, não é hábito popular). Escorrer, passar por água fria e cozer em mais 1 l de água, também já a ferver, com os restantes legumes e a banha.
A versão mais rica leva carnes: 1 chispe (nos Açores diz-se chanco), 150 g de carne de cozer (cachaço), 80 g de toucinho, 70 g de linguiça. Deixar esfregados com sal grosso, de véspera, o chispe e o toucinho. Lavar bem por água corrente e demolhar mais 1 hora. Cozer em 1 l de água as carnes, a cebola picada com os cravinhos, o alho, o louro, a banha e os temperos (sal moderadamente). Reservar as carnes e escumar, desengordurar e coar o caldo. Neste caso, a couve e o repolho são cozidas como disse, com os outros legumes, mas à parte. No fim, misturar as hortaliças, as carnes cortadas em pedaços pequenos e a linguiça às rodelas. Juntar 1 l do caldo de carnes e 4 dl do caldo de hortaliças. Rectificar o tempero de sal.
Melhor ainda é juntar netos, simples bolos esféricos, relativamente pequenos, de farinha grossa de milho amassada com caldo de carne e cozidos no fim da cozedura da sopa.
Sopa de cavador, terceirense. Tendo base no feijão, legumes e enchidos, pode parecer mais próxima da sopa de pedra. Mas vejam, principalmente, a diferença subtil e de grande classe dos temperos.
300 g de feijão rajado (no continente, feijão catarino) ou, na falta, de feijão vermelho, 300 g de abóbora, 2 batatas doces, 4 batatas grandes, uma linguiça, 125 g de toucinho, um chispe, uma cebola grande, 3 dentes de alho, uma folha de louro, 6 grãos de pimenta da Jamaica, sal, 6-8 grãos de pimenta preta e uma c. café de canela. A linguiça açoriana não é a de cá. É mais próxima de um bom chouriço de carnes, mas mais temperada e picante.
Fazer a sopa com o feijão, as carnes e os legumes cortados em pedaços pequenos e os temperos, com água só a cobrir tudo. A canela só se junta quando a sopa estiver pronta. Sendo um tempero pouco vulgar em sopas, aconselho que se experimente a quantidade de canela a gosto. Mas que marca enorme diferença para qualquer sopa que conheçam não me parece haver dúvida.
Apostila - Já tenho escrito sobre as especiarias na(s) cozinha(s) açoriana(s). Esquecendo agora as ervas, não conheço nenhuma cozinha regional portuguesa que tão bem use as especiarias. Creio que há duas razões seculares, que são da cultura geral dos meus leitores. Primeiro, a importância e custo das especiarias tem muito a ver com uma coisa elementar, não haver frigoríficos. Os produtos comiam-se mesmo quando já começavam a ficar imprestáveis e as especiarias disfarçavam os estragos. Segundo, a única alternativa, desde tempos em que nórdicos, fenícios e depois romanos já o vinham comprar a Portugal, era o sal, para a conservação por salga.
Nos Açores, combinaram-se ambos os fatores. Sal não se podia lá produzir, com costas alcantiladas sem zonas baixas para evaporação da água do mar. Todo o sal era importado e caríssimo. Em contrapartida, por venda legal do quinhão dos tripulantes ou por contrabando, as especiarias das naus da carreira das Índias eram acessíveis, todas as armadas lá passavam. Era a obrigatória volta do largo, no regresso da Índia, a tomar nos Açores a latitude de Lisboa (nada mais do que Colombo também fez e agora justifica teorias mirabolantes sobre o seu ofício de espião de D. João II).

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