Tenho sido criticado por mostrar uma cozinha de “autor-amador” reveladora de pessoa que tem tempo e dinheiro disponível para alguns requintes técnicos e de qualidade de produtos. Admito a crítica, mas não se ela significar alguma suspeita de enfado meu ou desinteresse pela cozinha tradicional. Gosto imenso de a comer e de a fazer. Também de descobrir por este país fora restaurantes desse género de que já tenho dado aqui larga notícia.
O que pode talvez iludir os meus leitores é que não dou habitualmente receitas de cozinha rústica (meu termo, nada pejorativo, para uma coisa que mistura cozinha popular ou pequeno-burguesa, cozinha tradicional, cozinha da avó, cozinha comercial de outros tempos até hoje, da casa de pasto e da tasca ao restaurante de bairro). Não se justifica dar receitas porque, quando a faço, sou o mais conservador possível, não inovo (às vezes só tecnicamente). Tenho respeito reverencial pelas avós cozinheiras, a começar pelas minhas e pelas que agora herdei de memórias e de proveito de boas receitas que não conhecia, de paragens distantes mas tão próximas e que me encheram dois anos longínquos de vida.
Diferente é inspirar-me na cozinha tradicional, relembrar os meus sabores de infância, para “reconstruir”. Mesmo isto não é linear, há reconstrução e há “falsificação honesta”. Geralmente, faço uma reconstrução que deixa bem patente que o tradicional é só a base de sustentação e de legitimação, como os esboços classicistas que Picasso desenhou antes de pintar o Guernica. É assim que já posso anunciar - já não dá tempo para ser ultrapassado - um novo livro de cozinha pessoal, de reinvenção da cozinha tradicional açoriana (será gratuito, “e-book”). Não tem um único ingrediente ou condimento que não seja genuinamente tradicional nas minhas ilhas. Foi a minha regra de ouro.
Não estava para anunciar ainda isto, mas fui provocado por um “post” da Alexandra Prado Coelho, a quem dou razão, dizendo que os visitantes aos Açores regressam maravilhados com as paisagens e desencantados com a comida nos restaurantes. Eu até vou dar aos restaurantes locais a total liberdade de usarem essas receitas que publicarei em breve.
Outra coisa que me diverte, como foi neste fim de semana, é a tal "falsificação honesta". Mantem-se ao nível e estilo da cozinha rústica, mas inventando coisas que já podiam ter sido inventadas há muito por cozinheiros populares anónimos mas não calhou. Nada de elaborado, de reconstrução ou inspiração erudita, é mesmo o gosto de um falsificador. Desta vez foi uma sopa rústica de carne e legumes (tricolores!).
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