Em alguns textos sobre cozinha açoriana falei bastante de uma das suas coisas mais características, o uso amplo e imaginativo de temperos e especiarias, quase a fazer da(s) cozinha(s) açoriana(s) - já o testemunhei com amigos, na minha cozinha - cozinhas exóticas. Há dias, um meu patrício, Daniel de Sá, escritor e estudioso micaelense mas com muita vida de S. Maria, enviou-me um comentário amável e muito instrutivo. Alerta-me para a conveniência de distinguir três ciclos.
O primeiro caracterizaria a ilha do povoamento inicial, S. Maria, em que ainda hoje a sua cozinha tradicional usa temperos simples e tipicamente continentais, de antes das descobertas: louro, salsa, hortelã, funcho (e também aneto).
A mais típica marca micaelense é da malagueta (ou simplesmente pimenta, porque pimenta branca em grão diz-se pimenta do reino, como no Brasil). Seria o segundo ciclo. A malagueta vem para Portugal (e para S. Miguel, direta ou indiretamente?) do Benim. É um dos muitos pimentos capsicum, com cerca de 12 cm, comprido e achatado, com sabor intenso e não obrigatoriamente muito picante. Só séculos depois, com os militares e colonos regressados de África, é que entra o piripiri, a malagueta pequena, muito picante e com pouco sabor.
Terceiro ciclo, que marca mais as ilhas “de baixo”, especialmente a Terceira, é o das especiarias asiáticas, que relacionei com a volta do largo, a que voltarei adiante, sem ser de largo. Ou será de largo, sei lá, porque isto de conversa de açoriano pega, repega, volta e revolta. "Onde é que eu ia?", é coisa que os meus alunos ouvem frequentemente, e creio que divertidos. O ilhéu pode ser tosco ("private joke") mas bisonho é estereotipo injusto.
A mais típica marca micaelense é da malagueta (ou simplesmente pimenta, porque pimenta branca em grão diz-se pimenta do reino, como no Brasil). Seria o segundo ciclo. A malagueta vem para Portugal (e para S. Miguel, direta ou indiretamente?) do Benim. É um dos muitos pimentos capsicum, com cerca de 12 cm, comprido e achatado, com sabor intenso e não obrigatoriamente muito picante. Só séculos depois, com os militares e colonos regressados de África, é que entra o piripiri, a malagueta pequena, muito picante e com pouco sabor.
Terceiro ciclo, que marca mais as ilhas “de baixo”, especialmente a Terceira, é o das especiarias asiáticas, que relacionei com a volta do largo, a que voltarei adiante, sem ser de largo. Ou será de largo, sei lá, porque isto de conversa de açoriano pega, repega, volta e revolta. "Onde é que eu ia?", é coisa que os meus alunos ouvem frequentemente, e creio que divertidos. O ilhéu pode ser tosco ("private joke") mas bisonho é estereotipo injusto.
O esquema dos três ciclos é sugestivo e produtivo como base de elaboração, mas as coisas são mais complicadas. Em todas as ilhas, mais ou menos, os ciclos vão-se sobrepondo, de forma particular a cada cozinha de ilha (insisto, há nove cozinhas açorianas! Se querem simplificar, mas com algum abuso, 6: S. Maria / S. Miguel / Terceira / Graciosa e S. Jorge / Pico e Faial / Flores e Corvo).
A cozinha ainda de grande raiz portuguesa antiga, a tal do primeiro ciclo, dos legumes e cozidos, da galinha, do porco, das açordas, das ervas, tem variantes em todas as ilhas, mas mais em S. Miguel e S. Maria. Recolhi mais variantes de açordas micaelenses do que vejo descritas no Alentejo. O meu pai, doido por açordas da sua excelente cozinha familiar de pequena elite rural micaelense, provou-as todas, feitas por mim. O funcho, ícone do primeiro ciclo, é base de uma excelente sopa em todas as ilhas, não só da S. Maria desse ciclo inicial de povoamento.
Quanto à malagueta, é verdade, é mesmo tipicamente micaelense, por isto possivelmente anterior à mais larga entrada das especiarias nos Açores. Como sou híbrido, "corisco" (micaelense) e "rabo torto" (terceirense), sei que, na minha casa em que a cozinha era dominada por mulheres terceirenses, o uso da malagueta era concessão ao meu pai, embora cada vez mais interiorizado nos hábitos familiares. Em contrapartida, como direi logo a seguir, o meu pai habituou-se à Jamaica em detrimento do seu cravinho tradicional.
As naus da Índia aportavam era a Angra. Não vou discorrer fantasiosamente sobre como se fazia o negócio, se legal se de contrabando, mas não há dúvida de que muita especiaria entrou na cozinha terceirense e das ilhas mais a oeste, não tanto em S. Miguel. Mesmo assim, pondere-se: a típica "mistura de temperos" de S. Miguel inclui cravinho, pimenta preta e canela, a par dos cominhos, da erva doce e da açaflor.
A pimenta preta é coisa usada no continente só desde que há uma cozinha um pouco educada, de há 30 anos para cá. Nos Açores, é ubiquitária. A canela não é só para arroz doce. Entra nos temperos de carne e na feijoada calafona de S. Miguel, muito mais profusamente na caçoila jorgense, na sopa de muita coisa à cavador terceirense, mas fazendo principal combinação com um dos seus ingredientes principais, a abóbora. Noz moscada, aqui só coisa de quem conhecia cozinha francesa, sempre foi lá obrigatória no puré de batata, nos fricassés, nas sopas de leite e cebola (vichysoisses rústicas ilhoas), etc.
A pimenta preta é coisa usada no continente só desde que há uma cozinha um pouco educada, de há 30 anos para cá. Nos Açores, é ubiquitária. A canela não é só para arroz doce. Entra nos temperos de carne e na feijoada calafona de S. Miguel, muito mais profusamente na caçoila jorgense, na sopa de muita coisa à cavador terceirense, mas fazendo principal combinação com um dos seus ingredientes principais, a abóbora. Noz moscada, aqui só coisa de quem conhecia cozinha francesa, sempre foi lá obrigatória no puré de batata, nos fricassés, nas sopas de leite e cebola (vichysoisses rústicas ilhoas), etc.
No entanto, porquê diferenças grandes entre ilhas tão próximas (é certo que com muito mau mar a separá-las)? Em S. Miguel, usa-se muito o cravinho, ninguém conhece a Jamaica. Na Terceira, o contrário, com a bizarria de a pimenta da Jamaica, esférica, ser chamada pau de cravo, nome mais adequado ao cravinho.
E os outros temperos? Desde logo a açaflor (em S. Miguel, açafroa). É um preparado dos filetes (estames e carpelos) de uma flor da família dos cártamos, que não tem o valor de mercado do açafrão usado na paella mas que, de qualquer forma, tem um excelente sabor refinado, sem comparação com a aspereza da curcuma, o açafrão amarelo indiano. De onde vem a açaflor açoriana?
É planta introduzida por missionários regressados do oriente, no séc. XVI, constando das mais antigas crónicas que na zona de Portalegre, onde ainda hoje se usa, em famílias antigas, para o “arroz amarelo”. Quando se fala de Alto Tejo e Açores, fica-se sempre na dúvida se de cá para lá ou se de lá para cá. Povoamento altoalentejano e baixobeirão dos Açores, ou povoamento do Alto Tejo por açorianos importados por Pina Manique? Vou mais pela segunda hipótese, apoiado em Avelino Meneses, historiador e meu caro amigo. O povoamento dos Açores resulta provavelmente de uma mescla de contributos de todo o país. Há muito de algarvio e muito de minhoto. E o Espírito Santo é do eixo Alenquer-Tomar. Foi para as ilhas tudo o que de aventureiro havia por este país fora. Será esta a grandeza do ilhéu?
Com a história, as coisas mantêm-se num lado, diminuem noutro. Quase que não há vestígios da açaflor na cozinha alentejana. Nos Açores, está presente em tudo, desde o molho de salsa verde para mariscos e peixe frio até ao tempero da fava rica micaelense e da fava de molho de unha terceirense, desde “todolos tamperos” dos torresmos de molho de fígado até à simples carne guisada.
E com esta dos temperos lembrei-me de outra coisa. Será que o tempero típico micaelense de malagueta, como diz Daniel de Sá, e açafor, acrescento eu, é tão limitado e empobrecedor da cozinha micaelense? Vejam só o que são os ingredientes dos tais típicos “todolos tamperos”: colorau, erva doce, pimenta preta, cravinho, canela, cominhos. Há mistura de sabores tão rica em alguma outra parte de Portugal? Os açorianos são malucos!
P. S. (13.3.2012) - Em carta posterior, lembra-me Daniel de Sá uma coisa muito importante. Tudo isto de temperos é de casas burguesas ou de domingos e festas populares. Na nossa ilha, quando meninos - somos da mesma idade - cavadores e até operários iam para o trabalho com cesta só com pão e malagueta. Não diz ele, mas lembro-me eu, também com bastante vinho de cheiro, calorias baratas a serem chamadas à boca pelo ardor da malagueta.
P. S. (13.3.2012) - Em carta posterior, lembra-me Daniel de Sá uma coisa muito importante. Tudo isto de temperos é de casas burguesas ou de domingos e festas populares. Na nossa ilha, quando meninos - somos da mesma idade - cavadores e até operários iam para o trabalho com cesta só com pão e malagueta. Não diz ele, mas lembro-me eu, também com bastante vinho de cheiro, calorias baratas a serem chamadas à boca pelo ardor da malagueta.
Curiosamente e talvez a última utilização do açaflor no Alentejo, encontrei-a no arroz amarelo, de festa, na região de Alpalhão e Nisa, que tão grande importância teve na colonização dos Açores.
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