quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Ai, a técnica

A net está infestada por coisas da maior banalidade culinária, mas com muitas tias a dizerem que “querida, que bom”. Confesso que tenho tendência para me irritar com isto. Não devia, o meu nível é outro, o mundo das tias da cozinha devia ser-me estranho. Claro que não figuram, neste sítio, na minha lista das recomendações. 

Mas penso em muitos leitores que querem mesmo aprender e que estão a ser aldrabados. Penso também em blogues de pessoas que até parecem ser bons cozinheiros e gastrónomos mas que pactuam e propagandeiam cozinha de revista de cabeleireiro. 

Faz-me mais impressão ter de recomendar, com inteira justiça, um ou outro blogue de qualidade, mas que alinham em propaganda, jogos ou brincadeiras com outros de qualidade mediana ou até completamente medíocre.

Afinal, isto é como na literatura. Leitor exigente, que obviamente não compra Margaridas e Zés, porque é que se há de preocupar com o equivalente de escrita culinária na net, de tias? É só chafurdar na porcaria.

Hoje tenho razões para dar um exemplo. Se calhar o bom cozinheiro esmera-se na saudade da sua companheira de boa boca, temporariamente ausente. Homem sozinho tem de compensar a sua solidão. Ai, quando um homem gosta a sério da vida! Epicuriano mas também hedonista, a embrulhar nestas clacicisses coisas de banalidade. 

Aproveito porque estou a preparar um livro sobre “cozinha açoriana elaborada” e tenho de testar as coisas que vou inventando. Nem todas, como esta de hoje, se ajusta ao propósito e perfil do livro, mas ficam como "produtos colaterais". Já vão por centenas, um dia tenho de dizer que já chega. O que fiz hoje, sendo um prato banal, parece-me exemplo, muito simples e desafiador, do que é o rigor da técnica culinária, muito mais do que de imaginação criativa. Aqui vai, coisas de minuto a minuto, que só não leva prescrição de temperatura porque nunca um fogão é igual a outro. 

O meu jantar de hoje, coisa banalíssima, arroz do mar, muito simples. Só lhe vale em qualidade é a técnica, neste caso visivelmente inspirada na de um bom risoto. Claro que não é nenhuma técnica exigente, à Adriá. Apenas a bem conhecida gestão dos tempos – tenho quatro cronómetros de cozinha junto ao meu fogão e muitas vezes estão a funcionar simultaneamente, para coisas diferentes. Publico esta nota só como exemplo de coisa básica mas desprezada por muitas pessoas. É com estas coisas básicas, mais do que com esquisitices pretensiosas para amador, que muitos leitores ganharão o prazer de ouvir os seus convivas também amadores dizerem que aquilo está muito bom.
Mistura de garoupa, cherne ou mero, amêijoas, lapas, polvo, caranguejo, cavaco, a perfazer 750 g. 4 c. sopa de manteiga (de facto, usei óleo cremoso de cozinha 70%), 50 g de linguiça de S. Miguel (ou chouriço picante alentejano), 1 cebola pequena, 2 dentes de alho, 250 g de arroz carolino, 4 dl de “fumet”*, 2 dl de vinho branco. 100 g de polpa de tomate. 2 limões galegos, 12 uvas brancas verdes, 50 g de nozes. Malagueta, açaflor, sal (compensando o “fumet”), pimenta branca, preta e da Jamaica, salsa.
Cozer separadamente até ½! de cozedura os peixes e mariscos, em água salgada (melhor se for água do mar!, que não tinha) e arranjá-los em pedaços bem visíveis.

Cortar a linguiça em rodelas finas e alourá-la na gordura, até colorir e dar bom sabor, em tacho largo ou frigideira alta com tampa. Rejeitar. Na mesma gordura, refogar medianamente a cebola e o alho e saltear bem o arroz, até ficar translúcido. Juntar a polpa de tomate e mexer bem. Entretanto, ter bem quente o fumet e o vinho.

Considerar este momento o tempo 0 e a partir daqui: de 3 em 3 minutos, juntar uma porção da mistura de fumet e vinho, incorporando bem, até quase secar; aos 9 minutos, juntar o resto do líquido (cerca de metade), tapar e baixar o lume ao mínimo; a 2 minutos (a partir do tempo 0), juntar o polvo, em rodelas; a 5 minutos, as lapas descascadas; a 8 minutos, as amêijoas e a polpa de caranguejo; a 12 minutos, os pedaços de peixe. A 15 minutos, as uvas e as nozes.

Aos 18 minutos, corrigir o tempero, envolver com 2 c. sopa de manteiga e 1-1,5 c. sopa de sumo de limão galego, apagar o lume, com o tacho tapado e aguardar 2 minutos. Servir com salsa ou coentros acabados de picar.

Julgam que isto é mariquice de cozinheiro chanfrado? Então baralhem os tempos e logo verão a diferença. 

* Fumet: Para um "fumet", há uma decisão estratégica. Pode-se comprar bons peixes, para receitas em que só se vai usar os lombos. Não é preciso comprar mais nada, porque o resto do peixe, cabeça e espinha, vai fazer o caldo. Se não, é preciso comprar à parte cabeças de peixe e uns tantos peixes "ordinários", carapaus e seus primos, se possível com "tripas". Hoje cresceram-me cabeças e espinhas. Geralmente, uso coisa que congelo, preparada semanalmente:
Restos de peixe (cerca de 1 kg), 1 dl de azeite, 2 cebolas médias, 2 alhos franceses, 250 g de cogumelos, 3 dentes de alho, 1 folha de louro, 2,5 dl de vinho branco, 1 ramo de salsa, sal marinho, pimenta branca, 1 l de água de nascente ou filtrada por carvão ativado). 
Aquecer o azeite, numa panela e colocar uma camada de cebola às rodelas, alho francês às rodelas finas, cogumelos em lascas, dentes de alho cortado às lascas, com o louro. Alourar, não mais do que 2 minutos, mexendo. Juntar o vinho branco, misturar e juntar os restos de peixe, com as ervas e temperos. Cobrir bem com água de nascente e cozer a lume baixo, cerca de 30 minutos. Escoar e coar (conforme o uso a dar ao fumet, pode ser melhor filtrar).
NOTA –  E façam três testes básicos à honestidade desses blogues de queridas. 1. Em relação a uma receita "inventada" de raiz tradicional, vão aos clássicos e lá a verão chapada. 2. Quando são "adptadas", significa que levam mais uns cogumelos ou coisa a despropósito, a perverter a receita original. 3. Se colocarem um comentário crítico, claro que a autora nunca o publicará.

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