domingo, 4 de novembro de 2012

Saia uma estrela, já

Nunca fui ao antigo Belcanto e ainda não tinha ido ao novo, de ópera regida por José Avillez. Também não conhecia a cozinha de Avillez, porque não calhou ir no seu tempo ao para mim sempre deslumbrante Tavares. Afinal, minto ao dizer que não conheço a cozinha de Avillez: em dia de cinema semanal, quando no Colombo, obrigatoriamente uma empada da Empadaria do Chefe, coisa que julgo ser iniciativa conjunta com outro “fast food” notável, português, o H3.

Ontem foi dia especial, com 68 anos em cima, a terminar obrigatoriamente com grande jantar a dois, no Belcanto. Duas salas, fumadores e não fumadores separados, como dita a lei. A de entrada, dos fumadores, tem uma aparência mais moderna. A outra, no fundo, é de um restaurante queiroziano, possivelmente reproduzindo o tempo em que lá ia o meu saudoso professor João Cid dos Santos, o dos ovos à professor, hoje dieteticamente proibidos. Pelo meio, passa-se por um corredor envidraçado, a deixar ver a cozinha e o ar sério e compenetrado da equipa de doze cozinheiros.

Nem vale a pena falar de amesendação, serviço, preliminares, nível de informação dos empregados de mesa e do escanção, tudo impecável. Aliás, não vou fazer crítica. Nada houve de minimamente criticável nesse jantar. Só não gostei de uma coisa, problema meu: como pré-sobremesa, uma framboesa glaceada com uma manchinha de wazabi. O mal é que eu detesto wazabi, mesmo uma cabeça de alfinete é demais, mas Avillez não tem culpa.

Avillez tem óbvias influências de Adriá, mas só posso dizer isto por ouvir, porque não tenho o termo de comparação. Nunca fui ao El Bulli e até tenho algum preconceito, por simpatizar mais com o estilo de cozinha de Santamaria, que polemizou com o seu colega, como muitos sabem e leram. A cozinha de Santamaria é mais simples, mais natural, usa mais temperos tradicionais e com maior mistura em cada prato, é mais guarnecida; diria, como há dias, que é mais “sinfónica”. Gosto muito, é mais a minha prática. Mas se Avillez é bom discípulo e fiel intérprete de Adriá, rendo-me.

Um dos pontos mais fortes do Belcanto é a conjugação de um grande bom gosto na imaginação das receitas com uma excelente confeção, como raramente tenho visto. Mesmo que coisas de moda, são “ares” que são mesmo ares, esferificações “explosivas”, molhos aparentemente normais que sobem de volume quando regados com um pouco de outro molho espesso a meter-se por debaixo, uma manteiga perfumada com fumo, etc. Em alguns casos, como neste último exemplo, topei a técnica e os sabores, em outros nem por sombras. 

Vamos então à descrição do jantar, sem crítica. A acompanhar tudo até aos pratos, champanhe “a copo” Billecar Salmon Brut (13 € a flute). Não conhecia; muito bom. “Amuse bouche” em ondas sucessivas. Se adicionadas como couvert ao pão e manteigas, 6 €. Primeiro um trio de azeitonas: uma esfera, uma azeitona descaroçada frita em polme também com pasta de azeitonas, mais uma coisa surpreendente, que não percebo - um “dry martini” invertido, com sabor predominante de azeitona, mas também a saber ao cocktail tradicional, apesar de terem dito que não tinha álcool. Evaporado?

Depois, um Ferrero Rocher com bacalhau com grão. Claro que o nome era brincadeira. Era uma bola de pasta de foie gras com manteiga de cacau e avelã, sabores subtis mas adivinháveis, forrada com chocolate amargo e farrapos dourados. O bacalhau misturado com pasta de grão vinha sobre um frito muito fino de arroz, ao estilo dos crocantes esponjosos orientais, e com amendoim (?) moído. 

A seguir, um “must”, simplesmente um lombo de cima a baixo de uma sardinha assada, sem mais nada. Via-se que num assado muito bem controlado e passagem, em incubação prolongada, por tempero de um azeite condimentado com qualquer coisa ligeiramente agreste. Com um toque de anchovas? Ou de alcaparras? Ou até de um enchido? Ou de pimentos, porque entre enchidos e pimentão não há zanga? Não consegui perceber, tão subtil era.

Entretanto, o pão, de que ressaltava uma excelente broa, da Nutriva. Quase parecia um bolo. Feita de farinha muito fina, com o fermento a levar um pouco de açúcar. Três manteigas: para mim a melhor, a tal temperada com sal fumado, mas a saber mesmo a excelente fumo aromático; manteiga de avelã; e manteiga simples dos Açores, não podia deixar de ser.

Duas entradas partilhadas. “Rebentação” (23,50 €), servida numa peça de porcelana em forma de concha, muito bonita, é uma mistura de bivalves com molho e "areia" de algas e “ar” de água do mar. Uma delícia. Também lebre com feijão (28,50 €). Vem um pastel de massa tenra todo inchado, quase esférico, a explodir, com um pouco de recheio do feijão. Como é que se faz? Injeta-se ar no pastel? Ao lado, a lebre em pequenos pedaços embrulhada num molho cremoso excelente, em que ressaltava quanto baste (e para mim é baste muito) o sabor do fígado, talvez também um pouco de sangue.

Mudando de vinho, Meruje tinto 2008, um Douro muito elegante e leve (copo a 11 €), a ir bem com tudo, do salmonete ao pombo. E foi isto que comemos. Podíamos também ter escolhido outros pratos que já ouvi gabar: robalo com algas e bivalves ("mergulho no mar"), lavagante em dois serviços, lombo de bacalhau cozido em azeite com guisadinho de favas, raia à Jackson Pollock, cordeiro com puré de escabeche de legumes, bife à Belcanto, leitão revisitado.

O salmonete, o meu peixe predileto, é de repetir, quando lá voltar. Um lombo frito em fundo de gordura, com duas pequenas bolas de espuma de morango e coberto com muito bons mini-gnóquis de tinta de choco. Excelente o molho, uma recriação da típica mistura setubalense de fígados do peixe, laranja e limão. Magnífico. 35 €.

Boa reconstrução é também o pombo à Convento de Alcântara. Como se sabe, a receita canónica é de perdiz, recheada com foie gras e trufas, estufada em vinho do Porto. No Belcanto, é um pombo estufado suavemente, a meio ponto (ainda a carne avermelhada), com molho do tipo da velha receita dos frades, pareceu-me que aligeirado com um pouco de nata, que liga bem com o Porto. Vem acompanhado por uma rodela grossa de foie gras coberta com lâminas de trufa e embrulhada em alface escaldada, e ainda mais, ao lado, o lombinho estreito do pombo muito bem frito, crocante, a contrastar a textura. 35,50 €.

De sobremesa, que não é a secção favorita dos meus jantares, comemos “laranja e xisto”. 13,75 €. Outra surpresa. Para além de laranja com vários sabores, uma grande bolacha de xisto, a pedra cinzenta da ardósia, a saber a chocolate e mais qualquer coisa. Como se faz aquela coisa cinzenta? Será só coisa de corante?

Estranhei o número apreciável de convivas. Na nossa sala, pequena, nós os dois, mais duas mesas cada uma com três pessoas. Na sala maior, à entrada, talvez 15 a 20 pessoas. Para época de crise, nada mau. 

180 euros, duas pessoas. Claro que não é barato, mas já tenho comido por mais em restaurantes estrelados inferiores. E termino com o título. Venha a estrela, que o Belcanto bem merece.

NOTA - Nunca tendo eu ouvido falar de uma receita à Jackson Pollock, perguntei como era. Trouxeram-me uma fotografia do aspeto da raia, exatamente um quadro do mestre americano. Como é que se faz sobre uma raia todo aquele traçado de cores? Inimaginável!

P. S. (24.11.2012) - E saiu a estrela. Parabéns a Avillez.

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