quinta-feira, 5 de setembro de 2013

À lagareiro

Há quem me acuse de ser demasiadamente purista em relação à nomenclatura da cozinha tradicional. Não se confunda isto com coisas que aceito muito bem, aprecio e até faço, desde pequenos toques de personalização da receita tradicional até francas desconstruções ou, como digo em alguns casos, reconstruções (o que, para mim, tem significado um pouco diferente). Se não houvesse uma margem razoável de variação da cozinha tradicional não poderíamos dizer que tal prato é melhor feito por A do que por B, coisa importante para emulação e para auto-estima das nossas avós.

Neste mês de férias dentro, andei por tascas e restaurantes de petiscos (alguns bem pretensiosos e com preços de chefe que não consegue manter o restaurante de 1ª e julga que petisco “à chefe” é grande criação). Na Baixa, a oferta deste género e de cozinha classe-baixa para turistas é francamente má. Cartas banalíssimas, repetidas esplanada a esplanada. Pior, má confecção e desrespeito pelos padrões convencionais. Disse e repito: deve-se inovar (quando se sabe) mas deve-se avisar o estrangeiro – e até o portuga – de que se está a inovar. O consumidor que leu que o bacalhau à Gomes de Sá é um bom prato português (e concordo plenamente) tem o direito de o experimentar como ele é, não, por exemplo, como já vi, um mixórdia quase desfeita que é tirada do tacho sem ir ao forno e sem levar ovo cozido e salsa.

Isto vem a propósito de um exemplo característico, visível por todo o lado, o bacalhau à lagareiro (e agora o seu homólogo polvo). Exemplo que mostra como, por vezes, é difícil ter-se uma base sólida de definição mínima de uma receita tradicional. Julgo que é designação recente; tenho excelente memória e é coisa de que não me lembro, há 20 ou 30 anos. Confesso que não conheço a origem e não percebo o nome (a não ser que tenha a ver com o azeite; já lá voltarei). Dos compiladores clássicos e fiáveis de receitas tradicionais, só Maria de Lourdes Modesto o refere, como característico do Minho (? onde não se produz azeite e lagares só de vinho). 

Segundo MLM, é um bacalhau mais complexo do que se vê habitualmente com esse nome. O bacalhau, em cubos grandes, é marinado em leite com sumo de limão e alho. É escorrido, passado por ovo batido e pão ralado e assado no forno, com azeite e um pouco da marinada, servindo-se com batata cozida.

Mas já outras fontes (hoje principalmente da net e nem sempre identificáveis, como um sítio conhecido de receitas de bacalhau) o consideram um prato das Beiras, cozinhado em fornos dos lagares de azeite (há fornos nos lagares? Digam-me, porque creio que nunca estive num lagar). Seria um bacalhau assado simples, coberto com azeite e alho e acompanhado com batatas e cebolas pequenas, assadas ao mesmo tempo. Também se refere à Beira a receita do sítio conhecido “Mar da Noruega” (comercial?), com a diferença de omitir a cebola. 

Quanto à cebola, serve-se por aí para todos os gostos e feitios: crua, alourada em azeite, cortada em gomos estreitos e assada sobre o bacalhau. Ainda outra variante frequente de acompanhamento é o pimento vermelho, habitualmente assado mas que já me serviram cru.

Assim, nesta versão simples que hoje toda a gente encontra em qualquer tasca ou restaurante de bairro - e não só – porquê a designação “à lagareiro” que, ao que me lembro, não tem mais de 20 anos? Antes, era simplesmente bacalhau assado, ou no forno, ou na chapa ou na grelha. Normalmente, só com azeite, alho, batatas a murro e grelos. Será hoje para distinguir este bacalhau assado no forno de outros bacalhaus assados, na chapa ou na grelha? É útil, em época em que os assados no forno – excepto leitão, cabrito e pouco mais – andam tão desprezados e mal tratados. No entanto, uma churrasqueira razoável minha vizinha faz sempre o bacalhau à lagareiro nas brasas. Em que ficamos?

Ao contrário de outros casos em que tendo a invocar a autoridade dos mestres, creio que neste MLM vai ficar a perder. O bacalhau à lagareiro corrente generalizou-se de tal forma que ninguém se vai lembrar do que MLM descreve no seu livro de referência.

NOTA – Não me repugna nada o uso de uma qualificação de prato que evoca uma actividade ou um lugar de trabalho. Em França e na Suíça, as muitas coisas com vinho tinto, à “vigneron” (aqui, à vinhateiro), ou com produtos de salsicharia, à “charcutière” (aqui, à salsicheiro), desde a Bélgica a Espanha os bivalves à marinheiro, entre nós o bife à cortador ou a caldeirada à fragateiro, etc.

3 comentários:

  1. Não me custa nada a aceitar a plausibilidade da sua hipótese, João.
    Sou beirão e, embora o azeite não se dê nos 900 m+ da minha terra, calcorreei de pés e de conversa os caminhos que traziam as mulas de cujos odres a minha avó escolhia o azeite, provando-o e dando-mo a provar.
    Que me conste, os lagares nunca tiveram fornos: para que serviriam fornalhas em tais engenhos?
    Mas - os de azeite - usavam os meios tradicionais para aquecer a água que fazia parte do processo produtivo. Havia fogo de lenha, havia brasas portanto.
    Nesses tempos que já lá vão, o pessoal rogado para a apanha e fabricação do azeite comia no local. Era costumeira a refeição comunitária, cozinhada na casa do patrão e levada à cabeça em cestos, ou confeccionada ali mesmo, para o que se usava o mesmo lume. Era muitas vezes um borralho propício a amornar ou torrar ligeiramente as batatas cozidas com pele e a assar o popular bacalhau, que se lascava e, com aquelas e regado com azeite (aquecido com alho, quantas vezes), era servido em vastos alguidares de que cada um se servia directamente usando o seu garfo, tal como levava a mesma botelha à boca, cuidando apenas de depois lhe passar a mão pelo bocal, fútil cerimónia.
    Pode ser que no extremo norte transmontano o polvo fizesse as vezes do bacalhau, mas não acredito muito. Seco, passava a raia como excelente contrabando, e era uma delícia, mas nunca foi dado, como o eram, quase, o fiel amigo e a sardinha, igualmente apreciados. Por isto, inclino-me para a ideia de que com a adopção do processo de assadura o cefalópode tenha sido crismado impropriamente.
    Comem-se igualmente bem, mas nada têm a ver com fornos, tal como os conhecemos.

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  2. Vocês desculpem, mas ambos incorrem em erros capitais. Tenho 49 anos e ainda hoje salivo ao pensar nos bacalhaus assados que saíam da fornalha da caldeira do lagar da aldeia onde cresci. Era ali que se selava a maquia e que muitas vezes o pagamento era feito ao dono da azeitona. Era uma ocasião solene. O meu avô (e muitos outros), levavam as batatas, o azeite era por norma do dono do esmagamento (o orgulho, senhores, o orgulho), e o bacalhau fornecido pelo lagareiro (que, segundo o meu avô, era ele mesmo que acabava por pagá-lo nas contas da maquia). Abraços

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  3. Registo com muito gosto, o testemunho vale pela sua autenticidade, acreditada pela saliva que ainda brota.
    Não me importaria com o capitalismo do meu erro, se o visse. A minha hipótese usa os mesmos ingredientes... com uma nuance também capitalizante (a meu ver): é que os bacalhaus (à lagareiro) não sairiam das fornalhas, o que sairia delas seriam as brasas (a madeira já em combustão lenta, o borralho) sobre as quais as postas eram "assadas" - que é como quem diz, grelhadas.
    Que tal um workshop sobre o tema, com um tinto jeitoso?
    Abraços.

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